ATUALIZAÇÃO
Recepção: 28 Dezembro 2018
Revised document received: 7 Janeiro 2020
Aprovação: 24 Março 2020
DOI: https://doi.org/10.1590/1983-80422020282386
Resumo: O objetivo desta reflexão é contribuir com a aplicação do cuidado centrado no paciente no manejo da dor em contexto hospitalar. Trata-se de estudo de natureza teórica que busca estimular a discussão sem esgotar os argumentos, considerando assuntos como as dimensões do sofrimento, a negligência da dor e suas consequências, a relevância da abordagem interprofissional e os direitos humanos do paciente. Conclui-se que é preciso haver equipe interprofissional para lidar com a dor e o sofrimento humano no contexto hospitalar, e que o planejamento da assistência deve considerar aspectos emocionais, econômicos e culturais, proporcionando bem-estar físico e mental. A proposta interprofissional caminha paralelamente à proposta do cuidado centrado no paciente.
Palavras chave: Bioética, Assistência à saúde, Manejo da dor, Imperícia, Direitos humanos.
Enquanto o sofrimento é tido como sentimento vasto, universal, existencial, a dor pode ser descrita como processo fisiológico 1 , 2 . Ela pode ser, no entanto, física ou emocional, relacionada ou não a alguma ferida “real” 3 . A palavra que a designa tem origem no latim dolor , usualmente definida como impressão desagradável ou penosa, decorrente de alguma lesão ou contusão, ou de um estado anormal do organismo ou de parte dele4 .
Segundo Pessini, a Associação Internacional para o Estudo da Dor a define como experiência sensorial e emocional desagradável, associada a lesões reais ou potenciais, ou descrita em termos de tais lesões5 . A dor é o quinto dos sinais vitais – sendo os outros quatro pulso, respiração, temperatura e pressão arterial – e um dos principais fatores do sofrimento 6 . Relaciona-se diretamente à qualidade de vida e, a depender de sua severidade, pode levar quem sofre com ela a pedir pela própria morte 1 , 7 .
Dor e sofrimento destroem a integridade do corpo e a unidade da pessoa, mas vêm sendo negligenciados na assistência à saúde 1 , 7 , 8 . Essa negligência é tanto mais grave pois impede a efetivação dos direitos humanos no sentido de promover o cuidado centrado no paciente. Tal cuidado melhoraria a qualidade da assistência, uma vez que, quando as ações dos profissionais se adequam às necessidades dos usuários e seus familiares, há colaboração, e as decisões podem ser tomadas em conjunto 9 .
Com base nisso, este estudo, de natureza teórica, percorre os seguintes passos: descreve as dimensões da dor e do sofrimento humano, enfatizando a importância da equipe interprofissional em seu manejo; expõe, com foco na questão ético-profissional, a negligência do sofrimento; e, por fim, propõe formas de promover o cuidado centrado no paciente.
Identificando as dimensões de dor e sofrimento
O sofrimento humano vai além de fatores fisiológicos. Por exemplo, quando o doente se sente fragilizado, o modo como se alimenta, se movimenta e interage consigo e com outros indivíduos é alterado. O humor é afetado por enfermidades, e muitos doentes crônicos chegam a entrar em depressão 7 . Portanto, a dor do paciente não pode ser vista apenas pela ótica biomédica. É preciso compreendê-la do ponto de vista ético, considerando suas dimensões psíquicas, sociais, espirituais e físicas 10 .
A dimensão psíquica remonta à saúde mental, a múltiplos fatores de alta complexidade. Dentre as várias situações críticas que podem desencadear esse tipo de sofrimento, pode-se destacar o enfrentamento da dor no processo de terminalidade da vida 1 .
Já a dor social é caracterizada pelo isolamento em determinada situação e pela dificuldade de comunicar o sofrimento 1 . Ela pode ser desencadeada por perda do papel na organização familiar, medo da separação, sensação de abandono, luto antecipatório etc. Em sociedade, os indivíduos estão sujeitos a diferentes condições (sociais, culturais, étnicas, de gênero) que influenciam o modo como experimentam e percebem a dor 1 , 7 , 11 .
Dor e sofrimento são vivências que precisam ser mais bem definidas. Embora muitas vezes se apresentem como questão individual e meramente física, envolvem aspectos mais amplos. Como experiências socioculturais, dor e sofrimento se inserem em tempos e contextos determinados – mais do que ser geradas por condições sociais, elas fazem parte de processos históricos 12 .
Há ainda a espiritualidade, fenômeno que responde a necessidades humanas com crenças potencialmente transformadoras. A dor pode se manifestar na perda de propósito e na desesperança do indivíduo que sofre. Por isso, a espiritualidade pode melhorar a qualidade de vida daqueles que se voltam ao sagrado. Um relato de caso demonstra a influência dessa dimensão na avaliação de dor de difícil controle, refratária a tratamento farmacológico 13 .
Em sua dimensão física, a dor surge em decorrência de ferimento, doença ou deterioração progressiva que impede o funcionamento fisiológico ideal e indica disfunção corporal 1 , e pode ser classificada como aguda ou crônica.
Dor aguda e crônica
A dor aguda é mecanismo de alerta do organismo em resposta a agressão mecânica, química ou térmica, enquanto a crônica provoca desequilíbrios orgânicos que diminuem progressivamente as capacidades funcionais da pessoa 2 , 14 . A dor aguda é um dos principais motivos da busca por serviços de emergência, sendo sintoma valioso na investigação e definição do diagnóstico do paciente 2 .
A tipologia fisiológica da dor inclui as formas somática, visceral e neuropática. A primeira resulta de danos à superfície corporal, e a segunda é interna, como nas cólicas abdominais. Ambas são de ordem nociceptiva, ou seja, experiência sensorial causada pela resposta de neurônios sensoriais periféricos a estímulos nocivos agudos. Já a dor neuropática resulta de disfunção crônica no sistema nervoso 14 , devendo seu tratamento considerar procedimentos de bloqueio neural e uso de antidepressivos tricíclicos 15 .
A dor aguda tem início com sinais físicos objetivos e subjetivos associados a atividade exagerada no sistema nervoso. A partir de afecções traumáticas, infecções ou inflamações, algumas substâncias endógenas são sintetizadas e liberadas, estimulando as terminações nervosas. As principais repercussões da dor aguda não aliviada são taquicardia, arritmia, diminuição de oxigenação dos tecidos, agitação, sudorese, aumento do débito cardíaco (volume de sangue bombeado pelo coração por minuto), da pressão arterial e da contração muscular, sangramento, ansiedade e medo 16 . A evolução natural da dor é a remissão, mas com a ativação prolongada de várias vias neurais ela pode se modificar e tornar-se crônica 14 .
Procedimentos operatórios, por exemplo, ocasionam traumas agudos, com alterações fisiológicas e emocionais que precisam ser adequadamente controladas. O pós-operatório imediato compreende as primeiras 24 horas após a cirurgia e, neste período, é provável que ocorra desconforto e alterações no metabolismo do paciente 2 . As complicações desencadeadas pela dor nessas circunstâncias são diminuição do sono e do apetite, desidratação, dificuldade para deambular e se movimentar na cama, para respirar profundamente ou tossir, aumento no tempo de internação e riscos tromboembólicos e infecciosos 16 . A ciência trata a fisiopatologia da dor crônica pós-operatória como transformação de sintoma para afecção específica e, por isto, deveria conscientizar profissionais da saúde quanto a práticas de prevenção e controle imediato e eficaz 8 .
A dor crônica é contínua, e o sistema nervoso se adapta a ela gradativamente. Em pacientes com esse tipo de dor, nem sempre sinais objetivos estão presentes. Há, no entanto, mudanças evidentes de personalidade, estilo de vida e habilidade funcional 1 – atividade física, vida sexual, humor, autoestima, relações familiares, trabalho e lazer podem ser alterados de diversas formas 14 , 16 . O desconforto constante gera sofrimento crescente, pois o paciente tende a se sentir um fardo para seus familiares ou cuidadores 13 .
É comum que pacientes terminais que sentem dor mesclem sofrimento com culpa e medo do abandono 7 . Entender a dor e seus efeitos é imprescindível para os cuidados paliativos, que buscam tratar causas e consequências também psicológicas e sociais 1 , 17 . A abordagem promove a qualidade de vida de pacientes e familiares que enfrentam doenças potencialmente letais, aliviando o sofrimento físico, psíquico, social e espiritual.
Em oncologia, é frequente a dor irruptiva, intensa e idiopática, sem relação com pauta analgésica determinada nem com funções ou movimentos corporais, sendo considerada de difícil controle 15 . Pacientes, cuidadores e familiares que convivem com câncer avançado apresentam sintomas físicos e psicológicos relacionados à doença e frequentemente se envolvem em discussões sobre preferências de cuidados 17 . Vários estudos randomizados demonstram que o envolvimento desses agentes na assistência paliativa em atendimento ambulatorial contribui com desfechos positivos 17 . O tratamento paliativo melhora a qualidade de vida, o humor, a percepção do prognóstico e a comunicação de preferências por parte do paciente. São descritas, também, menores taxas de depressão entre cuidadores e familiares.
Esses cuidados se relacionam à ortotanásia – morte natural e digna, no “tempo certo” –, que pode ocorrer quando o fim da vida é iminente e sem possibilidade de cura. Essa abordagem exclui o intervencionismo médico-hospitalar, mantendo apenas procedimentos cuja finalidade seja amenizar a dor e o sofrimento. Na ortotanásia, a morte é compreendida como processo natural, e portanto deve respeitar a dignidade da pessoa humana 18 .
O adequado manejo da dor pode minimizar e eliminar o desconforto, facilitando a recuperação do paciente, prevenindo efeitos colaterais e diminuindo os custos do tratamento; além disso, pode-se evitar complicações que intensificam a morbidade 16 , 17 , 19 , 20 . Em medicina paliativa, a postura do profissional de saúde deve se pautar no amparo e no cuidado, visando aliviar o sofrimento do paciente em momento marcado por muito desconforto, angústias, incertezas e até mesmo agonia 18 , 19 .
Negligência da dor e sofrimento no ambiente hospitalar
A dor e as alterações somáticas e psíquicas que acarreta se relacionam à morbidade e mortalidade no ambiente hospitalar. No geral, as queixas álgicas são conduzidas de forma tardia e ineficiente, o que constitui clara negligência em cuidados físicos, emocionais e sociais 8 . Simões 15 relata que milhões de pessoas pelo mundo sofrem de algum tipo de dor desencadeada por falta ou insuficiência de tratamento. A autora estima que de 70% a 80% dos pacientes oncológicos experimentam dor de moderada a intensa, muitos morrendo sem que ela seja controlada. Ainda segundo Simões, em 80% dos casos seria possível controlá-la completamente, e as evidências são suficientes para promover cuidado de excelência nessas situações.
A literatura destaca a dificuldade dos profissionais em manejar a dor e o sofrimento, o que envolve desconhecimento do real impacto para a saúde dos pacientes 8 . Diversas intervenções são eficazes para prevenir, controlar e aliviar a dor, como uso de analgésicos específicos, técnicas inovadoras em anestesiologia, dispositivos para administração de medicamentos, protocolos de atuação e unidades específicas 15 .
A negligência se caracteriza pela falta de atenção a determinada circunstância, dada a omissão do profissional em ofertar assistência. A dor acarreta complicações físicas, psicológicas e sociais 1 , 15 , 16 , e negligenciá-la é infração ética passível de penalidade. A deontologia das profissões da saúde versa sobre essa premissa moral.
O Código de Ética Profissional do Psicólogo 21 veda atos que caracterizem negligência, violência ou crueldade, quer sejam praticados pelo próprio profissional ou com sua anuência. Com isso, é preciso que o psicólogo lance seu olhar sobre processos subjetivos do paciente sem desconsiderar manifestações somáticas 21 . A psicologia social, por exemplo, deve enfocar as condições de vida e o contexto em que os indivíduos estão inseridos. Sentimentos como humilhação, vergonha, medo e culpa têm causas sociais específicas que podem gerar formas intensas de sofrimento 22 .
No Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem 23 destacam-se os direitos humanos e a importância de comunicar informações de forma clara e fidedigna, respeitando a autonomia do paciente em todo o ciclo de vida e processo de morte. O documento ainda enfatiza que o profissional não pode ser conivente com qualquer forma de negligência, seja ela praticada individualmente ou pela equipe de saúde.
O Código de Ética Médica24 preconiza a valorização do paciente como cidadão portador de direitos e deveres, ressaltando a responsabilidade do profissional em mantê-lo informado sobre tratamento, opções existentes, possíveis complicações e riscos. É vedado causar qualquer tipo de dano, seja por ação nociva ou por omissão, caracterizadas como imperícia, imprudência ou negligência.
Diante de possível negligência em cuidados assistenciais, os códigos deontológicos apontam a necessidade de avaliar se a conduta é intencional ou se outras circunstâncias que excedem as capacidades do profissional o impediram de exercer suas funções. Só então as penalidades necessárias podem ser definidas.
Souza e colaboradores 25 afirmam que o paciente com dor pode ter sua autonomia reduzida. Isso ocorre quando se nega à pessoa o direito de escolher entre os tratamentos disponíveis ou de ser esclarecida sobre a experiência dolorosa e seu manejo, ignorando sua participação ativa na terapêutica. A situação é frequente, pois, em âmbito hospitalar, o paciente tende a concordar com a equipe médica. Para evitar esse cenário, é preciso estimular a autonomia e considerar as queixas e opiniões dos indivíduos 9 , 26 .
Equipe interprofissional e manejo da dor
O profissional de saúde convive com o sofrimento, e o manejo da dor é uma de suas principais atribuições no ambiente hospitalar 1 . Proporcionar analgesia ao paciente e acompanhar a evolução do quadro clínico não devem ser atividades mecânicas, mas sim tornar o ambiente mais humano 1 , 7 . Por isso, além de avaliar meticulosamente intervenções a serem realizadas, deve-se oferecer tratamento individualizado com base em evidências científicas. A preservação de valores éticos que sustentam a qualidade de vida da pessoa fragilizada é fator crucial para a prática da equipe interdisciplinar 27 .
Barr 28 afirma que os preceitos da assistência integral estão intimamente associados à interação entre profissionais de diferentes campos da saúde e áreas do conhecimento. Abordagens fundamentadas nessa interação têm sido desenvolvidas, como no caso da medicina complementar, ou alternativa, cujas terapias usam saberes tradicionais com o fim de aliviar a dor e o sofrimento. Nessa mesma perspectiva, Otis‐Green e colaboradores 29 propõem modelo de tratamento da dor que integra vários profissionais: psicólogos, enfermeiros, oncologistas, psiquiatras, assistentes sociais e religiosos.
O movimento interprofissional prospera onde as condições são favoráveis, quando há abertura ao diálogo e apoio mútuo no local de trabalho, quando se reconhece a necessidade de melhorar a assistência e quando, nas universidades, o tema é discutido democraticamente entre as diferentes áreas, com posição crítica a corporativismos 28 .
Na Dinamarca, por exemplo, a colaboração interprofissional remonta ao início da década de 1960 e é descrita em regulamentos deontológicos 28 . No Canadá, a primeira iniciativa nesse sentido também data da década de 1960, na University of British Columbia, quando se propôs que os profissionais da saúde e da assistência social fossem formados pelos mesmos professores. No entanto, devido à falta de apoio e a mudanças na regulação dos cursos, o projeto não teve sucesso. Em 2010, porém, com a criação do Canadian Interprofessional Health Collaborative e da Accreditation of Interprofessional Health Education, as instituições que promovem a educação interprofissional no país se organizaram. Após extensas consultas, foram formulados padrões e princípios básicos consagrados em um guia 30 .
Na abordagem interprofissional em saúde, todos devem ter os mesmos objetivos, trabalhando unidos para um resultado comum: a recuperação ou melhora da qualidade de vida do paciente 20 . É essencial existir concordância entre métodos utilizados e comunicação efetiva sobre benefícios e malefícios de cada decisão 12 . Por isso, é de suma importância instituir equipe que entenda a complexidade da dor e do sofrimento.
Mensuração da dor no ambiente hospitalar
Discernir as particularidades da dor permite investigar suas causas e identificar os melhores tratamentos 3 , 19 . Atualmente, no contexto hospitalar, diferentes métodos são utilizados para avaliar o tipo e a intensidade da dor, representados por escalas uni ou multidimensionais 19 , 31 .
Um exemplo de escala unidimensional é aquela de estimativa numérica, em que o paciente avalia a dor e a classifica de 0 a 10 (0, “sem dor”, e 10, “dor insuportável”). Outros exemplos são a escala analógica visual, que usa uma linha reta para graduar o nível de desconforto, e a verbal, em que o paciente se expressa com palavras. Há, ainda, a escala de faces, que utiliza expressões faciais 19 , 32 .
Já as escalas multidimensionais recorrem a representação gráfica para localizar a dor nas regiões do corpo. O Questionário de McGill avalia as esferas sensorial, avaliativa e afetiva, e o Prontuário da Percepção da Dor usa técnicas psicofísicas para quantificar a dor 19 , 32 .
Mensurar a dor é grande desafio, e as escalas devem ser aplicadas criteriosamente para que se evitem tratamentos ineficazes. Em paralelo, à medida que a dor é desmistificada, aumenta-se a medicalização 33 . No entanto, cada organismo reage de forma específica a fármacos e procedimentos, e aspectos cognitivos e emocionais, bem como fatores externos, interferem na recuperação ou exacerbação da dor 19 , 32 . Por isso, a assistência deve ser a mais individualizada possível.
O tratamento depende do quadro clínico e do tipo de dor. No caso agudo, o objetivo é reduzir a dosagem de analgésicos opioides e anti-inflamatórios não esteroides. Já na dor crônica, o tratamento é instituído com intervalos regulares para prevenir a “memória da dor”, utilizando doses adicionais de medicação quando necessário 34 .
As complicações da dor estão relacionadas a subavaliação, tratamento medicamentoso inadequado (uso insuficiente de analgésicos opioides, por exemplo), despreparo dos profissionais, crenças e valores distorcidos em relação à analgesia e falta de sistematização das avaliações 3 , 19 , 32 . Enfrentar esses entraves é fundamental para combater a negligência do sofrimento humano nos serviços de saúde. É preciso valorizar a escuta qualificada, a sensibilidade, o respeito e a empatia para romper a tendência de se atentar apenas aos sintomas físicos, como se fossem a única raiz das angústias do paciente 10 .
Perspectiva do cuidado centrado no paciente
O modelo terapêutico biomédico evoluiu após a revolução científica do século XIX e se hegemonizou durante o século XX. Ele trouxe grandes avanços para a ciência, mas conferiu demasiado poder ao médico, fazendo com que o diagnóstico da doença passasse a preponderar sobre a percepção do paciente. Ademais, o desenvolvimento tecnológico fragmentou a ideia de corpo, dividindo e subdividindo a medicina em áreas cada vez menores.
Mas se o tratamento de uma doença pode ser impessoal, o cuidado dispensado, não – ele deve ser individualizado. Assim, em contraponto ao modelo biomédico, em meados do século XX o modelo biopsicossocial ganhou forma e começou a se consolidar entre profissionais da saúde. Nessa abordagem, o ponto de partida do atendimento clínico é a pessoa, e não a doença 34 .
A medicina centrada no paciente transforma o modelo clínico tradicional 35 . Preconiza, por exemplo, a interpretação da doença com base na experiência do paciente, compreendida integralmente, o estabelecimento de objetivos comuns entre profissional e paciente, a adoção de medidas de prevenção e promoção de saúde e a consideração da viabilidade de custos e do tempo do tratamento. Suas principais vantagens são o aumento da satisfação do paciente e do profissional, adesão ao tratamento, menor número de exames complementares e a diminuição de encaminhamentos a outros especialistas, acarretando, consequentemente, menores custos para o sistema de saúde e para o paciente 34 , 35 .
A centralidade no paciente se baseia nos direitos humanos 9 . Nesse referencial, a pessoa doente é o agente principal do procedimento terapêutico, e sua participação é determinante para o resultado almejado. Além disso, devem ser respeitados direitos como a não divulgação da vida privada e o consentimento livre – direitos humanos do paciente, o que é diferente, no campo da saúde, dos direitos dos pacientes. Os primeiros são previstos em normas jurídicas de natureza vinculante, enquanto os outros estão presentes em declarações sem obrigatoriedade jurídica, mas que reconhecem a centralidade do paciente no tratamento.
O Institute of Medicine dos Estados Unidos classificou o cuidado centrado no paciente como um dos objetivos fundamentais do sistema de saúde 36 . Segundo Shaller36 , há consenso na literatura quanto aos principais atributos desse tipo de assistência: educação e conhecimento compartilhado; envolvimento de família e amigos; colaboração em equipe; sensibilidade a dimensões não médicas e espirituais; respeito pelas necessidades e preferências do paciente; e fluxo livre e acesso à informação. O cuidado centrado no paciente parte da premissa de que a negligência ao sofrimento humano é inadmissível, justificando com razões morais o respeito às preferências do paciente.
Algumas perguntas podem estimular a participação: “Ajudei você a compreender tudo o que precisa entender sobre sua doença?”; “Você poderia repetir o que entendeu?”; “Posso ajudar a esclarecer o tratamento proposto?” 37 . Aceita-se que o paciente é o melhor juiz nessa interação. No entanto, tal premissa pode ser questionada, por exemplo, quando o paciente julga precisar de medicamento ou terapia específica inadequada ou contraindicada. Ao aceitar pedido por tratamento desnecessário, a conduta do médico não se centra no paciente 37 .
Algumas modificações estruturais, como registros eletrônicos de informações em saúde e agendamento de acesso avançado, ajudam a assistência a responder a exigências do século XXI, mas também não devem ser tratadas como cuidado centrado no paciente. A simples implantação de prontuário eletrônico não configura tal assistência, a menos que promova comunicação com o paciente e sua participação 37 .
A participação tende a ser menor entre os menos escolarizados. Assim, pacientes precisam ser treinados para se engajar nos cuidados de saúde e avaliá-los. Tal estímulo se opõe ao paternalismo profissional e busca tornar acessível o conhecimento antes concentrado em um diálogo assimétrico 37 .
A liderança e o feedback são fatores que contribuem para o atendimento centrado no paciente. A liderança é considerada o fator mais importante, pois transformações organizacionais não acontecem sem apoio institucional. Por sua vez, o feedback de pacientes e familiares, mediante pesquisas que avaliem os serviços de saúde, deve ser utilizado para melhorar a qualidade do cuidado 36 .
Conclui-se, portanto, que a resposta à negligência da dor e do sofrimento no ambiente hospitalar é o respeito aos direitos humanos do paciente, por meio da comunicação efetiva 18 , 26 , 38 , indo ao encontro dos pressupostos da interprofissionalidade 28 . Pois o mínimo necessário para que se respeite a dignidade humana é ver cada pessoa como única.
Considerações finais
A dor deve ser compreendida em suas dimensões psíquicas, sociais, espirituais e físicas. A pessoa que sofre com ela tem direito a tratamento adequado, que respeite sua avaliação individual, e o serviço de saúde deve ser capaz de identificar necessidades por meio da escuta qualificada, valorizando a percepção de pacientes e familiares.
Conforme afirmaram Fernandes, Veríssimo e Gama, para além da difícil resposta à questão do “porquê” da dor/sofrimento, o cuidado solidário, que alia competência técnico-científica e humana, (…) constitui uma valiosa oportunidade para (…) tocar nossa sensibilidade e nos humanizarmos nesse processo39 . É preciso analisar a negligência da dor e do sofrimento e o papel do profissional de saúde sob a ótica dos códigos deontológicos, e os direitos humanos devem ser usados como referência para reforçar práticas assistenciais voltadas ao cuidado centrado no paciente.
É necessário ter visão holística do paciente com dor e sofrimento. O planejamento assistencial deve considerar aspectos emocionais, econômicos e culturais, proporcionando bem-estar físico e mental. A proposta interprofissional caminha paralelamente à proposta do cuidado centrado: embora a boa relação profissional-paciente não assegure, por si só, que não haja negligência no cuidado, não há como negar que o diálogo e a consciência dos diferentes pontos de vista são fundamentais 38 .
O paciente tornou-se o centro de discussões sobre a qualidade do atendimento em saúde. Como mostram Epstein e Street Junior 37 , houve preocupações quanto a um possível desacordo entre o foco nas necessidades individuais e a medicina baseada em evidências. No entanto, hoje essa discussão parece concluída, sendo os bons resultados da abordagem individual aceitos, dado que ambas as vertentes aliam a ciência da generalização à ciência da particularidade.
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39. Fernandes DFV, Veríssimo FIL, Gama GM. Op. cit. p. 3.
Autor notes
Marcelo Moreira Corgozinho concebeu e revisou o texto. As demais autoras participaram da revisão bibliográfica e redação do texto original. Todos os autores reviram a versão final submetida para publicação.
Larissa Oliveira Barbosa – Graduada – larissaooliv@gmail.com
Isabela Pereira de Araújo – Graduada – isaaharaujo@hotmail.com
Gabriela Thomaz Ferreira de Araújo – Graduada – gabithomazfa@hotmail.com
Correspondência Marcelo Moreira Corgozinho – Universidade Católica de Brasília. Secretaria da Escola de Saúde. QS 7, lote 1, Águas Claras CEP 71966-700. Brasília/DF, Brasil.
Declaração de interesses