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Ciências cognitivas e neuroética
Revista Bioética, vol. 28, núm. 2, pp. 257-264, 2020
Conselho Federal de Medicina

ATUALIZAÇÃO


Recepção: 8 Junho 2019

Revised document received: 7 Janeiro 2020

Aprovação: 10 Janeiro 2020

DOI: https://doi.org/10.1590/1983-80422020282387

Resumo: O artigo parte da discussão entre a visão representacional computacional da cognição contraposta ao enfoque enativo da ciência cognitiva, que defende que o conhecimento é fruto da afetação do corpo pelo ambiente. Discute as consequências dessa visão enativa para a compreensão da neuroética, entendida não como conjunto de parâmetros éticos para as experiências científicas nas neurociências, mas como compreensão neuronal científica do agir moral. A explicação neuronal da ética parte de neuroimagens como expressões de emoção, mas reduzir a moralidade às emoções é discutível, pois juízos emocionais, baseados na proximidade afetiva, destoam de normas éticas de base universal. Outro ponto crítico dessa visão é o artificialismo de suas experimentações, devido ao esquecimento do mundo cotidiano de afetações do corpo, enfoque trazido pelo enativismo da ciência cognitiva.

Palavras chave: Ciência cognitiva, Neurociências, Meio social, Ética.

No final da década de 1950 e início da década de 1960, pequenos grupos de pesquisadores, principalmente das áreas de linguística, neurociência, psicologia, antropologia, filosofia da mente e, de forma destacada, inteligência artificial, se propuseram a responder em que consiste a mente ou a cognição. Para isso, tiveram que ultrapassar as fronteiras dos seus próprios saberes específicos e assumir perspectiva multidisciplinar, assentando as bases conceituais e metodológicas para a compreensão interdisciplinar da mente e dando origem à assim chamada “ciência cognitiva” 1 , 2 .

A década de 1990 trouxe a contribuição de Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch com a obra The embodied mind: cognitive science and human experience3 . Nesse livro, os autores apresentam o modelo computacional da mente como origem do cognitivismo, passando pelo modelo conexionista e buscando apresentar o que surgia como nova abordagem para as ciências cognitivas: o “enfoque enativo”.

Baseado no conceito de enação, entendido como algo que emerge ou brota, o modelo questiona o entendimento tradicional de cognição como representação do mundo externo totalmente distinto do sistema cognitivo, propondo substituí-lo pela compreensão da ação corporificada. Os autores se preocupavam em estabelecer diálogo entre as ciências, especialmente a sofisticada ciência cognitiva, e a experiência humana, de modo a não resultar em uma cultura científica dividida e irreconciliável com a autocompreensão cotidiana 4 .

O enfoque corporificado inspira-se na proposta fenomenológica de Merleau-Ponty 5 , que considera os corpos simultaneamente estruturas físicas e estruturas experienciais vividas. Diversas áreas apropriaram-se desse enfoque antes mesmo que se estabelecesse programa bem definido, como se demonstra pelo uso de variados termos relacionados à noção de corpo, como corporização ( embodiment ), mente incorporada, ação ou cognição corporizada etc. Contemplando a variedade semântica desses termos, a noção de “mente incorporada” é usualmente utilizada de forma mais abrangente.

Dada ainda a influência da teoria da autopoiese, desenvolvida por Maturana e Varela 6 (este último, fundador do enfoque), o enativismo foi por vezes compreendido como coextensão entre sistema vivente e sistema cognitivo, pela similitude entre vida e cognição. Observa-se nesses casos a necessidade de melhor revisar os conceitos de autopoiese e as implicações e modificações de sua recepção enativa.

Outra discussão, já em plano epistemológico, é o grau de homogeneidade e integração entre o enfoque enativo e o marco teórico metodológico da ciência cognitiva – em outras palavras, debate-se a compatibilidade entre cognitivismo clássico e enativismo. Nesse contexto, Clark 7 propôs distinguir posturas enativas simples, nas quais é possível conjugar enfoque enativo e ciências cognitivas, posturas mais radicais, que possibilitam modificar o objeto de estudo, e o marco teórico das ciências cognitivas.

A diversidade e o aumento do número de pesquisas de diversas áreas focadas na interação entre fatores corporais, ambientais e comportamentais demonstram o interesse nesse enfoque corporizado. Considera-se, portanto, pertinente aproximar os princípios do enfoque enativo, que aborda a relação conceitual entre vida, mente e mundo, como paradigma plausível para as ciências cognitivas, servindo-se de suas consequências para compreender a neuroética.

Em vista disso, esboçam-se as principais características do cognitivismo como enfoque a ser superado pelo enativismo, cujas características são então apresentadas como contraponto ao modelo anterior. Posteriormente, explicita-se o significado da neuroética para a identidade da ética, analisando criticamente as tendências que reduzem o agir ético a funções cerebrais, por fim possibilitando aplicar o princípio enativo para a compreensão das decisões morais na neuroética.

Cognitivismo

O cognitivismo surge com o intuito de compreender os princípios da cognição – os mecanismos que produzem suas funções, como memória, aprendizagem, linguagem etc. Com o surgimento dos computadores e o desenvolvimento da teoria da computação, a mente passou a ser entendida como computação de representações simbólicas de caráter linguístico, representações que adquirem realidade física na forma de um código simbólico no cérebro ou em uma máquina8 . A cognição humana seria, portanto, a representação mental, compreendida como manipulação de símbolos que representam o mundo externo.

Os avanços tecnológicos possibilitaram compreender os processos cognitivos humanos de forma análoga aos processos computorizados, fortalecendo e potencializando o enfoque cognitivo clássico. Consequentemente, o computador digital se tornou a metáfora-guia deste enfoque cognitivista, entendendo-se a relação corpo-mente como hardware-software .

As neurociências contribuíram consideravelmente para essa compreensão computacional da mente, porque como ciência experimental objetivam explicar como funciona o cérebro. Utilizando tecnologias de neuroimagem para localizar as diferentes regiões desse órgão, procuram comprovar como distintas áreas se especializam em determinadas funções, concomitantemente ligando-se entre si. Assim, seria possível determinar as bases cerebrais dos diferentes tipos de conhecimento, como economia, arte, religião e moral, identificando as áreas responsáveis por cada um. Essa perspectiva alicerça o surgimento da neuroética 9 .

O processo de conhecimento, ou processamento de informação, é compreendido em três etapas. Na primeira, a percepção, toda informação é considerada e inscrita como elemento do mundo externo, sendo depois, na segunda etapa, registrada e armazenada como representação mental. Nessa etapa, a mente calcula os dados, assim como um computador. Finalmente, a terceira etapa, a ação, é o resultado da manipulação desse processamento simbólico: a ação resultante é algo concreto, uma ação motora do corpo no mundo 10 .

A centralidade da representação foi desenvolvida pela psicologia cognitiva, e filósofos da mente como Pylyshyn 11 , Newell e Simon 12 e Fodor 13 , do campo da inteligência artificial, deram origem ao computacionalismo, ao representacionismo e ao simbolismo, os quais concordam em considerar a mente como processador abstrato de símbolos 10 . Cabe destacar que o conceito de representação de que tratam esses estudos comporta não apenas a ideia de que a mente constrói e representa o mundo exterior, admitindo, em sentido ontológico e epistemológico, três pressupostos fundamentais: 1) o mundo é predeterminado; 2) nossa cognição é sobre esse mundo – mesmo se apenas parcialmente e 3) o modo pelo qual nós conhecemos esse mundo predeterminado é representando suas características e então agindo com base nessas representações14 .

No enfoque cognitivista, a mente é entendida como um lugar diferente e apartado do mundo. Essa visão apresenta um compromisso, por vezes oculto, de como é o mundo, como o conhecemos e o que somos. As ciências cognitivas exploram predominantemente o cognitivismo computacional, que apresenta programa de investigação forte e definido, sendo consequentemente considerado o núcleo desse campo. Contudo, no final da década de 1990, esse enfoque começa a ser alvo de críticas, principalmente pela consideração dada aos símbolos como o meio mais apropriado para representar o mundo, entendida como “intencionalidade”. Em outras palavras, a cognição é representação mental, pois o comportamento inteligente pressupõe a habilidade de representar o mundo como sendo de determinadas formas15 .

Nos últimos 30 anos surgiram abordagens não objetivistas, que compreendem a cognição não apenas como representação de um mundo predeterminado, mas como resultado de interações realizadas nele. Buscam, de alguma maneira, “corporificar”, “incorporar” a mente em um mundo, um entorno complexo, defendendo uma cognição situada e corporificada. Antes de desenvolver o enfoque enativo, interesse principal deste artigo, parece apropriado assinalar de modo geral outros conceitos – o de mente estendida e o de mente corporizada – dos quais o enativismo se serve.

O paradigma da mente estendida (externismo) considera que a mente não se encontra na cabeça, mas surge das interações com o entorno. Assim, o mundo externo está incluído na cognição, pois os processos informacionais e computacionais se encontram inseridos no mundo e, por vezes, poderiam ser confundidos com ele 10 . O externismo e o cognitivismo têm em comum o caráter computacional, a perspectiva do cérebro como processador de símbolos. Porém, o externismo se distancia do cognitivismo na medida em que não reconhece um espaço interior onde se codifica a informação para posterior manipulação representacional, no qual acontece a cognição, considerando que a constituição dos estados mentais está mediada pelas diferenças do entorno.

Essa compreensão será modificada por outro enfoque que investigou a articulação dos intercâmbios cognitivos entre mundo e cognição, o chamado “paradigma da mente corporizada”. Segundo ele, a mente (…) processa atividades cotidianas, nas quais estão incluídas rotinas com alto grau de controle sensório-motor e maior sensibilidade às condições de cada situação16 . Para esse enfoque, o agir no mundo precisa de mais do que modelos internos; necessita estar ancorado no mundo, e isso se dá por meio do nosso corpo. O desafio seria deixar a concepção centrada na visão em favor de outra centrada na motricidade do corpo. Essa é a contribuição do enativismo.

Enfoque enativo

O termo “enativo” deriva do inglês “ to enact ”, que significa “pôr em execução”, mas também “representar”, “atuar”. As edições espanhola 17 e portuguesa 18 da obra de Varela, Thompson e Rosch traduzem a palavra “ enact ” por “ enacción ” e “enacção”, respectivamente, e a edição brasileira 4 utiliza o termo “atuação”. Portanto, “enativismo” significa o mesmo que “atuacionismo”, e enfoque “enativo”, “atuacionista”. Para insistir na originalidade do termo, pode ser preferível usar o anglicismo “enativo”.

Inserido em abordagens mais subjetivistas, o enativismo representa o processo de crítica ao cognitivismo duro do período inicial ao entender que os processos cognitivos abarcam diversas causas nas quais intervém o cérebro, em íntima interação com o corpo e o entorno, que conformam o seu funcionamento. Apropriando-se dos princípios de mente estendida e corporizada, o enfoque enativo vai além ao considerar a mente como atuação.

A inovação do modelo inativo está no entender a percepção intimamente vinculada à ação. Esse enfoque considera, por exemplo, que o corpo atua para perceber uma flor no jardim assim que a decisão de aproximar-se para fazê-lo é tomada. Isso implica que mundo e sujeito não estão separados, ou seja, a base dessa proposta é a relação, a continuidade, o entre-deux (entre o eu e o mundo ou o interior e o exterior) de que fala Merleau-Ponty 5 .

Essencialmente, essa teoria concebe a cognição não como representação, mas como ação no mundo, ou seja, o contexto e a situação seriam elementos constituintes da cognição. O enativismo considera a cognição como atividade contínua, moldada pelos processos auto-organizados da participação ativa no mundo e pela experiência e autoafetação do corpo animado. Propõe assim superar o cognitivismo, que entende a cognição como pura projeção do mundo 19 , 20 .

O termo “enativo” busca destacar que a ação é “incorporada”, significando duas coisas: primeiro, a cognição depende de dois tipos de experiência decorrentes de se ter um corpo com várias capacidades sensório-motoras e, segundo, que essas capacidades sensório-motoras individuais estão, elas mesmas, embutidas em contexto biológico, psicológico e cultural, mais abrangente21 .

Assim, as características da cognição enativa, corporizada e estendida são i) que a mente está ancorada no mundo por intermédio do corpo; ii) as representações internas não são estruturas abstratas (…) , mas pré-conceituais, frutos da experiência corporal; iii) a situacionalidade [do conhecimento] envolve o corpo em todo o processo cognitivo; iv) a situacionalidade se relaciona a pessoas em ação; v) portanto, a cognição não depende de manipulação de representações, mas de padrões de conduta de um organismo em seu entorno22 .

A abordagem enativista/atuacionista implica que 1) a percepção consiste em ação perceptivamente orientada e 2) as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensório-motores recorrentes, que possibilitam à ação ser perceptivamente guiada21 . “Ação perceptivamente guiada” implica embasar ações futuras na análise das ações anteriores em determinada situação concreta. Quando o sujeito perceptivo modifica constantemente sua atuação na situação concreta em que se encontra, o ponto referencial para compreender a percepção/cognição é deslocado do mundo preestabelecido para a estrutura sensório-motora corporal do sujeito perceptivo.

Essa estrutura possibilita padrões perceptivos que se modificam em relação ao ambiente, que permitem ao sujeito agir no mundo, deixando-se afetar pelos acontecimentos do meio no qual se encontra. Ou seja, o organismo inicia o processo de percepção do mundo e é simultaneamente modelado pelo ambiente 4 , 23 . Quais são as consequências desse entendimento de cognição defendido pelo enfoque enativo/atuacionista para a concepção de ética?

Identidade e pressupostos da neuroética

O campo neurocientífico se relaciona de duas maneiras com a ética. Primeiro, a ética das neurociências discute a casuística da pesquisa sobre o cérebro e o sistema nervoso e a aplicação de seus conhecimentos em humanos. Nessa concepção, a neuroética faria parte da bioética. Segundo, a neurociência da ética reflete sobre as consequências do conhecimento neurocientífico para a compreensão da ética. A questão central seria discutir se o agir moral é conformado por processos neurofisiológicos ou, mais especificamente, se a moralidade tem bases neuronais.

A primeira definição preocupa-se com os parâmetros éticos da atuação científica nas neurociências, identificando os princípios fundamentais das investigações sobre o funcionamento neuronal do indivíduo, enquanto a segunda pretende explicar cientificamente o agir moral humano. Esse segundo caso não abarca a ética aplicada, referindo-se em vez disso à compreensão neuronal da racionalidade, liberdade, voluntariedade do agir moral, e é o que de fato interessa para esta discussão. Isso porque significa autêntica revolução, já que pretende explicitar os processos neurofisiológicos subjacentes às questões éticas. Essa visão permitiria teorizar uma ética universal, biologicamente explicável pelas bases neuronais, e viabilizaria, com isso, o aperfeiçoamento moral da humanidade por meio da intervenção neuronal 24 , 25 .

As bases neurofisiológicas da ética sustentam-se em pesquisas empíricas que usam neuroimagem para demonstrar a ativação de certas regiões do cérebro durante situações que exigem discernimento moral entre opções diversas e às vezes opostas. Pretende-se encontrar a ética universal integrada no cérebro como conjunto de respostas biológicas a dilemas morais, correspondendo a uma aquisição evolutiva com função adaptativa para sobreviver 26 .

Esse modelo de investigação foi a princípio muito aclamado, pois contribuiu para entender as bases neuronais de certas opções morais. No entanto, foi também criticado, pois as primeiras pesquisas a utilizá-lo se basearam em raciocínios morais ativados por cérebros caracterizados por anormalidades, desconsiderando ainda as influências culturais da moralidade e reduzindo-a ao seu fundamento biológico neuronal. Essa análise aponta a necessidade de incentivar diálogos interdisciplinares sobre a questão, discutindo-se ainda os desafios éticos de incluir nesse tipo de pesquisa indivíduos com lesões neurológicas 27 - 29 .

Pesquisas de neuroimagem que buscam fundamentar a base cerebral da ética pressupõem que decisões morais têm caráter emocional, ativando a área cerebral responsável por esse desempenho. Nessa perspectiva, em situações de opção de solidariedade, o agente moral decidirá ajudar a pessoa ou o grupo com o qual se sente emocionalmente mais próximo e identificado. Essa dimensão emocional é definida pelos diferentes autores como intuições, instintos, sentidos, competências – que têm significados diversos dependendo da tradição filosófica 25 , 30 .

O papel das emoções na vida moral sempre foi tema central da ética no Ocidente. Para Aristóteles 31 , o fim último de toda atividade humana é a felicidade, que pode ser alcançada pelo entendimento teórico do conhecimento ou pelo domínio prático das paixões, viabilizando uma relação harmônica com o mundo natural e o social. Nessa tarefa, o ser humano é ajudado pelas virtudes, capitaneadas pela virtude da sabedoria prática ( fronesis ), que permite equilibrar excesso e falta 31 .

O epicurismo compreende a moral como busca de felicidade entendida como prazer, como satisfação de caráter sensível, sendo sábio aquele que calcula a duração e intensidade dos prazeres advindos das atividades morais. Para o estoicismo, a moral se identifica com a ordem do universo e, por isso, a moralidade das ações é definida pela razão cósmica, que é a lei universal que tudo rege. Na época helenística, portanto, surgem dois caminhos para determinar as ações morais: satisfação sensível prazerosa ou razão cósmica universal 32 .

Para Hume 33 , nos tempos modernos a moral se refere a sentimentos subjetivos de agrado ou desagrado, resumindo-se o papel da razão ao conhecimento das circunstâncias da ação – sem, no entanto, ser suficiente para produzir efeitos práticos no agir. Para o autor, uma vez que a razão não está encarregada de estabelecer juízos morais, estes são delegados a outras faculdades, que seriam menos importantes que a razão: as paixões e o sentimento 33 .

No século XX, com o advento da análise dos enunciados morais, de Moore 34 , esse posicionamento de Hume foi reeditado com o emotivismo de Ayer 35 e Stevenson 36 , que afirmam que os enunciados morais são aparentes, pois nada comprovam, expressando apenas aprovação ou desaprovação. Esses pseudoenunciados têm dupla função: expressam emoções subjetivas ou sentimentos e influenciam os interlocutores com a pretensão de motivar a atitude aprovada. Portanto, não pretendem descrever situações, mas provocar atitudes.

Para Kant 37 , as influências da sensibilidade emocional precisam ser superadas para que a decisão moral seja fruto de boa vontade movida pela racionalidade reta. O imperativo ético surge autonomamente de procedimentos apriorísticos racionais, tendo como critério a universalidade das máximas transcendentais, para além de qualquer particularidade situacional que o sujeito impõe para si. Portanto, para Kant, ser ético é não permitir que as emoções influenciem a vida moral do sujeito.

Assim, no final dos tempos modernos aparecem perspectivas diversificadas, aparentemente opostas, expressas nos dois modelos vigentes da ética atual: utilitarismo (satisfação sensível) e deontologismo (deveres apriorísticos). Segundo Bonete 38 , estudos mostram que juízos morais deontológicos se apoiariam em processos racionais, enquanto os consequencialistas responderiam a processos emocionais.

Contudo, a história da ética demonstra que a moralidade requer aportes tanto da sensibilidade, por meio das emoções, quanto da racionalidade, por meio de argumentos e juízos. Baseando-se em neuroimagens que apenas estudam as áreas cerebrais das emoções, a neuroética não consegue captar a interação entre sensibilidade e racionalidade. Por outro lado, reduzir certas atividades neuronais a áreas definidas do cérebro é esquecer de sua maleabilidade e conectividade, que permite, por exemplo, que as emoções sejam fruto de interfaces entre várias regiões do cérebro.

Por fim, os juízos emocionais aferidos no cérebro pela proximidade afetiva divergem das normas estabelecidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos39 como expressão de uma ética universal de respeito à dignidade humana. Na mesma linha, todas as éticas seculares e religiosas atualmente relevantes não apenas defendem os que estão emocionalmente próximos, mas propõem igual respeito a todos os seres humanos. Essas éticas se pretendem universais, mas de base sócio-contratual que supera a pura inclinação emocional.

Trata-se, portanto, de projetar a moral para além dos semelhantes e próximos, abrangendo desconhecidos e pessoas diferentes que não despertam emoções, mas cujos direitos universais é necessário respeitar. Esse tipo de ética é indispensável para a convivência no mundo globalizado e para a superação da xenofobia e de todos os particularismos identitários de base emocional.

É preciso ainda considerar o modelo investigativo pelo qual a neuroética pretende provar empiricamente seus achados. Nos estudos da área, o investigador submete o sujeito de pesquisa a situações controladas, retirando-o de seu ambiente habitual e apresentando-lhe decisões verificadas por instrumentos que não expressam verdadeiramente sua moralidade espontânea. Nesses cenários, a situação real do participante não é considerada, medindo-se apenas processos neurofisiológicos 25 , 30 . Para analisar esse modelo, convém observar que a moralidade pessoal se expressa nos desafios da vida cotidiana – não em situação controlada, mas em contexto sociocultural do qual o indivíduo retira os recursos necessários para decidir e responder ao desafio. A moralidade das pessoas não consiste em enfrentar dilemas artificiais, mas em projetar boa vida 40 .

A artificialização do experimento, prescindindo da situação normal e rotineira, típica da ciência moderna, é chamada por Heidegger 41 de “desmundanização” ( Entweltlichung ), que compromete tanto o investigador quanto o sujeito pesquisado porque modifica a perspectiva habitual. O indivíduo investigado perde o olhar situacional, confrontado com o outro, como acontece na vida real, dispondo em vez disso de um ver artificializado pelos processos de controle do experimento, possibilitado pela desmundanização. Já o olhar do investigador se restringe ao aspecto particular de interesse da investigação, pretendendo abstraí-lo do mundo contextual que conforma o seu ver. Essa desmundanização entifica a realidade, utilizando ainda a nomenclatura de Heidegger 41 , pois capta o real como presença representada – em outras palavras, a realidade está presente pela sua representação. A compreensão clássica do cognitivismo se baseia nesse pressuposto 30 .

A pretensão de dar base científica à moral pela constituição da neuroética significa assumir os pressupostos metafísicos do processo de desmundanização/entificação que caracteriza toda ciência moderna. Em outras palavras, a neuroética significa entificar a moralidade do ser humano. A filosofia de Heidegger buscou superar a entificação do ser humano por meio da análise existencial de sua inserção no mundo 30 . Com isso, o enfoque enativo/atuacionista das ciências cognitivas, antes explicitado, pode ser caminho para superar a compreensão representacional da realidade, presente nos pressupostos da neuroética.

Neuroética e enfoque enativo

O enfoque enativo da cognição pretende superar a visão representacional interna da realidade como base do conhecimento, defendendo a compreensão situacional corporificada. Segundo esse conceito, o contexto e a situação são elementos constituintes da cognição, entendida como ação no mundo e não como representação do mundo.

Entender a decisão moral como pura representação cerebral atestada pela neuroimagem tem, na sua base, a mesma insuficiência que a perspectiva questionada pelo enativismo. A decisão não é representação cerebral, mas fruto de atuação situada no mundo e, portanto, ela não pode ser desmundanizada e entificada pela representação. Assim como a perspectiva da epigenética veio para corrigir os exageros da pura determinação genética, a da cognição enativa pode ter esse mesmo papel em relação à redução da ética a processos neurofisiológicos. O ambiente é indispensável para configurar o funcionamento tanto das expressões do gene quanto das sinapses neuronais – assim como o genótipo não existe sem sua expressão fenotípica, o cérebro não funciona sem sua conformação intelectiva. Para exemplificar o argumento, o cérebro de pessoas de cultura oral e o daquelas de cultura digital são biologicamente idênticos, mas configurados de maneira diversa pelo ambiente sociocultural que as conforma. E a relação entre cérebro e ambiente é intermediada pelo corpo 7 .

O cérebro é a memória das afetações do ambiente sobre o corpo, conformadoras desse cérebro como individual, tornando-se a base do próprio self daquela pessoa. As diferentes funções e partes do corpo são dirigidas pelo cérebro, mas é necessário lembrar que esse corpo se torna próprio pela sua inserção no mundo, um ambiente particular e próprio de relações e afetações que o configuram 5 , assim como o cérebro que o comanda. Em outras palavras, a mente é o software do corpo sujeito, assumido como expressão de si e como base das relações com os outros e com o mundo, pois o cérebro expressa e explica o seu funcionamento e suas potencialidades. As experiências corporais do sujeito conformam o cérebro, que, por sua vez, possibilita o desempenho do corpo próprio.

O sistema nervoso faz parte da estrutura biológica do corpo, mas esse hardware neuronal precisa ser configurado por um software funcional que depende da constituição do corpo sujeito, cujo cérebro é conformado pelas afetações do ambiente como próprio, individualizado, como base de desempenho daquele corpo 42 , 43 . Esse é o significado do conceito de mente incorporada defendido por Varela, Thompson e Rosch 4 como fundamento do princípio enativo que explica a cognição.

Quais são as consequências dessa relação entre cérebro e ambiente intermediada pelo corpo para a compreensão do comportamento moral? Quais são as implicações para a explicação das bases cerebrais da ética? Se o cérebro é conformado pelas afetações do ambiente sobre o corpo, pois a mente é corporalizada, um dos elementos centrais desse ambiente é o contexto sociocultural. O que verdadeiramente configura o cérebro como mente situada é a cultura, entendida no sentido da palavra alemã bildung , isto é, cultura como formação. Isso explica por que pessoas de determinada cultura pensam, refletem e reagem em certas situações de maneira semelhante: porque elas fazem parte de uma mente coletiva. O núcleo dessa mente é o que Bourdieu chamou de ethos , entendido como

o conglomerado de evidências, símbolos, mitos, valores e práticas que fundamentam e regulamentam a vida individual e coletiva. É o ethos que, por um processo de acumulação, herança, tradição e práticas suscita e institui, em cada um, predisposições para as relações sociais. Essas predisposições podem ser definidas, com maior precisão, como sistemas de disposições duráveis e transferíveis que, integrando todas as experiências passadas, funcionam em cada momento como matriz de percepções, apreciações e ações. Essa matriz torna possível cumprir tarefas infinitamente diferenciadas graças à transferência analógica de esquemas. Permite resolver os problemas da mesma forma e graças às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidos por esses resultados 44 .

Onde está armazenada essa matriz de predisposições duráveis que explica o comportamento moral das pessoas? Ela está configurada nas interações neuronais do cérebro como fruto das afetações do contexto sociocultural sobre o corpo, conformada na mente corpórea de resposta aos desafios morais enfrentados por essa pessoa. Assim, o cérebro ético da pessoa é expressão da cultura moral da mente coletiva à qual ela pertence.

Considerações finais

As investigações das neurociências sobre a base neurofisiológica da ética podem trazer contribuições valiosas para o entendimento do comportamento moral das pessoas. Isso porque as ações morais resultam da execução de predisposições configuradas na matriz cerebral, fruto de afetações do contexto sociocultural sobre o corpo como mediação para o agir no mundo. Entretanto, o modelo investigativo que busca comprovar o fundamento biológico neuronal da ética por meio de pesquisas controladas sobre situações morais, verificáveis em neuroimagens, contradiz essa constatação, pois desconsidera a base cultural de toda moralidade, ativada pela mente corpórea conformada pelo ambiente.

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Autor notes

Participação dos autores

Ambos os autores discutiram o artigo e revisaram a versão final. Carolina Alejandra Reyes Molina desenvolveu a pesquisa e escreveu sobre ciências cognitivas. José Roque Junges investigou e escreveu sobre neuroética.

Carolina Alejandra Reyes Molina – Mestranda – carolinamolinareyes@gmail.com

José Roque Junges – Doutor – roquejunges@hotmail.com

Correspondência José Roque Junges – Rua Aloísio Sehnen, 186, Cristo Rei CEP 93022-630. São Leopoldo/RS, Brasil.

Declaração de interesses

Declaram não haver conflito de interesse.


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