Resumo: A decisão compartilhada é processo colaborativo que inclui preferências individuais na elaboração do plano de cuidados. Este estudo examina como esse tipo de decisão é contemplado nas diretrizes terapêuticas para o câncer do Sistema Único de Saúde, buscando nos sites do Instituto Nacional de Câncer e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias documentos que citassem a participação do paciente. Foram analisados 29 documentos e, dentre eles, dez abordavam decisão compartilhada ou ideias relacionadas. Esses textos tratavam da possibilidade de rastrear alguns tipos de câncer e estabeleciam critérios para a interrupção do tratamento. Os resultados revelaram que ainda há grandes desafios para promover a autonomia, o respeito a valores individuais e a parceria em ambientes clínicos.
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PESQUISA
Análise documental sobre decisão compartilhada nas diretrizes clínicas de câncer
Recepção: 27 Maio 2019
Revised document received: 7 Janeiro 2020
Aprovação: 26 Janeiro 2020
Em busca da melhor conduta para os indivíduos sob seus cuidados, profissionais de saúde recorrem a suas habilidades e experiências e ao conhecimento científico 1 , 2 . No que concerne ao processo de tomada de decisão, a literatura apresenta três modelos: o paternalista, o de decisão informada e o de decisão compartilhada.
No paternalismo, com base na premissa de não causar danos, o profissional aconselha o indivíduo e decide pela conduta que acredita ser a mais apropriada 3 . Nessa abordagem – a mais usual –, o médico indica a intervenção a ser feita, e o paciente, de forma passiva, apenas a acata. Não há deliberação conjunta, e a opinião do usuário não é devidamente considerada 4 . No segundo modelo, de decisão informada, o indivíduo é esclarecido sobre sua situação, mas não necessariamente incluído no processo deliberativo 5 .
Já a terceira abordagem, de decisão compartilhada, visa romper a assimetria de poder a fim de garantir que preferências individuais sejam respeitadas. Esse modelo propõe que a relação de cuidado seja colaborativa e consensual, com maior participação do paciente 3 . A tomada de decisão compartilhada preconiza a participação ativa do profissional e do paciente, podendo envolver ainda outros atores da rede familiar e social 6 . O modelo implica acordo entre as partes, que decidem juntas a melhor opção, considerando tanto fatores científicos como valores individuais 7 .
A participação do paciente baseia-se em métodos da clínica centrada na pessoa idealizados nos anos 1980 e fortalecidos na década de 1990, quando a tomada de decisão compartilhada é descrita pela primeira vez 8 . A proposta busca contrapor-se ao modelo hegemônico biomédico ao valorizar a autonomia do indivíduo, reconhecendo sua participação como essencial para elaborar o plano de cuidado. O objetivo é garantir que valores e preferências sejam respeitados, para além do consentimento informado, incluindo princípios mais amplos, como autonomia, igualdade de poder na relação clínica e controle sobre decisões que afetam o bem-estar 4 , 5 .
No Brasil, os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) subsidiam a tomada de decisão a partir das principais evidências disponíveis, apontando a ação mais indicada segundo sua eficácia, segurança e custo 9 . A Lei 12.401/2011 10 dispõe sobre a incorporação de tecnologia no Sistema Único de Saúde (SUS) e determina a utilização dos PCDT para padronizar condutas.
A medicina baseada em evidências usa métodos probabilísticos para apontar a intervenção mais adequada em cada situação, pesando prós e contras. As preferências individuais, no entanto, variam conforme experiências prévias, valores, medos e crenças 11 . Para aliar conhecimento científico às especificidades de cada pessoa, a tomada de decisão compartilhada busca incluir o paciente na deliberação clínica, de modo a alcançar a opção mais apropriada ao seu contexto de vida 12 .
Em doenças como o câncer, que impactam diretamente o estilo de vida, essa abordagem é especialmente relevante, pois diferentes opções influenciam o bem-estar físico e psicológico de forma distinta. Em 2019, estima-se que houve mais de 600 mil novos casos de câncer no Brasil, e a tendência é que este número cresça, dado o envelhecimento populacional acarretado pelo aumento da expectativa de vida 13 .
Reconhecendo a magnitude desse problema de saúde, este estudo analisa como documentos que orientam a prática médica consideram a necessidade de incorporar as preferências do paciente na tomada de decisão. Mais especificamente, analisa-se como a decisão compartilhada é abordada nos PCDT relacionados ao câncer no SUS.
Foi realizada análise documental 14 de PCDT relacionados ao câncer nos sites da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e do Instituto Nacional de Câncer (Inca). A página da Conitec foi selecionada por ser esta instituição responsável pelo recebimento e avaliação de diretrizes e protocolos a serem incorporados ao SUS 15 . Já o Inca foi selecionado por ser o órgão do Ministério da Saúde (MS) especializado na doença, tendo ainda a atribuição de auxiliar no desenvolvimento e na condução de protocolos e diretrizes sobre o tema 16 .
Foram incluídos no estudo todos os documentos encontrados cuja finalidade era orientar a conduta dos profissionais em qualquer etapa do cuidado relacionado ao câncer. A última busca foi realizada em abril de 2019, sem delimitação temporal como filtro, dada a intenção de captar o maior número possível de dados – ademais, a principal base utilizada (Conitec) foi criada recentemente, em 2011, de modo que não haveria o risco de excesso de textos para análise. Todos os protocolos e diretrizes relativos ao câncer disponíveis no repositório da Conitec foram selecionados, enquanto no site do Inca foi necessário avaliar minuciosamente a finalidade de cada documento.
Para coletar os dados aplicou-se a cada documento ficha de extração, contemplando: ano, fonte, características e se o texto considera ou não a tomada de decisão compartilhada. Para análise, foram avaliados os seguintes atributos: presença de orientações/indicações sobre decisão compartilhada; atenção a preferências, valores, vontades ou opiniões do paciente no momento da decisão clínica; e respeito à decisão do indivíduo de manter ou suspender qualquer ação em saúde 17 , 18 .
Os documentos selecionados foram comparados ao modelo descrito por Elwyn e colaboradores 19 em 2012 e atualizado em 2017 20 , o mais usado pela literatura atualmente. Os autores propõem três princípios para operacionalizar as ações dos profissionais, aqui traduzidos livremente como “conversa em equipe” ( choice talk ), “conversa de opções” ( option talk ) e “conversa de decisão” ( decision talk ). O primeiro princípio compreende trabalho conjunto entre profissional e paciente, esclarecendo as opções de cuidado e os resultados esperados. Durante a conversa de opções as alternativas são discutidas, evidenciando-se os principais riscos e benefícios de cada opção e comparando possíveis desfechos de acordo com os riscos correspondentes. Finalmente, no terceiro passo, conversa de decisão, as preferências são esclarecidas de acordo com as opções apresentadas, indicando-se a decisão mais apropriada.
Neste estudo, os documentos foram lidos integralmente e analisados por um primeiro avaliador seguindo as etapas da pesquisa documental 14 : apreciação de contexto, fonte dos dados, natureza do texto, interesses e conceitos-chave relacionados à decisão compartilhada. Dúvidas relativas à presença ou não de alguns atributos foram sanadas por consenso após exame do documento por um segundo avaliador.
Documentos que, após a avaliação, foram considerados pertinentes seguiram para segunda análise, com leitura individual por dois avaliadores e posterior categorização baseada no modelo conceitual adotado. Nessa etapa, os documentos foram discutidos pelos avaliadores até que se chegasse a um consenso. A subjetividade inerente ao olhar dos avaliadores se destaca como limitação deste estudo. Entretanto, com a padronização e descrição dos critérios, acredita-se que esse viés é minimizado.
Foram encontrados 30 documentos nas bases referenciadas. Um deles foi excluído por apresentar apenas posologia medicamentosa, restando 29 dentro dos critérios de inclusão – 24 provenientes da Conitec e cinco do Inca. Quanto à temática abordada, 24 eram sobre diagnóstico ou tratamento e cinco sobre detecção precoce.
As características de cada um dos 29 documentos estão detalhadas no Quadro 1 . A data de publicação variou de 2012 a 2019, com maior volume em 2014. Vinte e três textos trazem recomendações direcionadas a adultos, e seis a crianças e adolescentes (sendo considerados nesta categoria indivíduos com menos de 19 anos de idade). Quanto ao tipo de tumor, nove são relacionados a câncer hematológico e os demais a órgãos específicos.

A maioria dos protocolos e diretrizes está organizada em tópicos que se repetem entre os documentos. Entre os tópicos, aquele sobre esclarecimento e responsabilidade apresenta texto padrão, ressaltando a importância de informar potenciais riscos, benefícios e efeitos adversos das intervenções. Entretanto, o texto não destaca a necessidade de considerar a opinião do paciente durante a tomada de decisão.
Seis documentos 23 - 25 , 27 , 38 , 46 também contêm o tópico “termo de esclarecimento e responsabilidade”, que exige assinatura do paciente ou responsável legal declarando ciência das consequências do uso de quimioterápicos. Esse termo é parte do processo burocrático para a dispensação do medicamento e, por si só, não estimula a participação do indivíduo na escolha do tratamento.
Apenas dez documentos 22 , 29 , 31 , 37 , 39 , 41 - 44 , 47 abordam o tema da decisão compartilhada, e todos eles trazem recomendações para adultos (suas características e a comparação com o modelo adotado são descritas no Quadro 2 ). Quatro se referem a cânceres passíveis de detecção precoce em adultos (mama, próstata e colo do útero) e ressaltam a necessidade de discutir os riscos dos exames de rotina (rastreamento) antes da tomada de decisão 41 - 44 . Os demais se referem ao diagnóstico e tratamento de tumores específicos – dois sobre o sistema digestivo (estômago 47 e esôfago 29 ), por exemplo, e outros sobre tumor cerebral 22 , pulmão 31 , linfoma folicular 37 e cabeça e pescoço 39 .

Outro ponto, destacado por três desses documentos, foi a limitação da evidência científica em relação ao âmbito individual, recomendando-se adequação das intervenções a valores e particularidades de cada pessoa 41 , 43 , 47 . As preferências individuais foram valorizadas em diretrizes que apresentaram opções de tratamento para cânceres em estágios iniciais ou assintomáticos 37 , 44 e trataram da interrupção do tratamento, valorizando a manifestação voluntária do indivíduo 22 , 31 . No entanto, apenas um texto, sobre detecção precoce do câncer de mama, apresentou o conceito de decisão compartilhada 41 .
Na comparação com o modelo teórico adotado 20 , observou-se que apenas duas diretrizes se mostraram em conformidade com os três princípios. Ideias relativas ao terceiro princípio (conversa de decisão) foram as mais frequentes, enquanto o primeiro (conversa em equipe) foi o menos abordado.
Os resultados demonstram que protocolos e diretrizes clínicas para diagnóstico e tratamento do câncer no Brasil reconhecem a importância de comunicar os riscos das intervenções, porém pouco se aprofundam na necessidade de incorporar valores individuais na tomada de decisão. Quando aparece, essa preocupação se expressa timidamente, em textos padronizados, que apontam riscos procedimentais específicos e destacam os termos de responsabilidade.
Esses termos são ferramentas burocráticas, que dão respaldo legal ao profissional, mas não estimulam ou facilitam necessariamente a interação com o paciente. A literatura considera esses documentos imprescindíveis à tomada de decisão informada em saúde 8 , mas tal modelo baseia-se apenas na transmissão de informação, podendo trazer ansiedade ao paciente ao colocar sobre ele toda a responsabilidade 5 .
Fundamentados na premissa ética da participação dos indivíduos, estudos recentes revelam que a abordagem compartilhada melhora a relação interpessoal, diminui as chances de litígio por negligência médica e reduz custos financeiros tanto para o paciente como para o sistema de saúde. Com a discussão de prós e contras, a decisão tende a ser moderada, evitando exames e tratamentos com efeitos colaterais mais graves e pouco benefício para o paciente 50 - 52 .
Esse ponto é especialmente relevante quando se trata de cânceres indolentes, cujo rastreamento ou tratamento podem trazer danos emocionais e físicos sem proporcionar benefício real. Essa preocupação é expressada em diretrizes, pois a aplicação de exames em indivíduos assintomáticos pode causar danos que impactam diretamente a qualidade de vida 53 , 54 . Os principais malefícios são resultados falso- -positivos e falso-negativos, que levam a mais exames e terapias desnecessárias, e o sobrediagnóstico e sobretratamento, que se referem à identificação e intervenção em cânceres que não evoluiriam a ponto de ameaçar a vida da pessoa 53 .
Alguns documentos recomendam ponderar a decisão com o paciente antes de iniciar o tratamento de cânceres assintomáticos e de baixo risco 37 , 44 . Essa orientação também aparece nos critérios para interromper a terapêutica em curso de cânceres em adultos com altas taxas de mortalidade, como pulmonar e cerebral 13 , 31 .
Poucos documentos, no entanto, referem-se à limitação de evidências científicas para padronizar recomendações. O conhecimento científico, resultante de estudos bem projetados, é certamente um dos fatores a se considerar no complexo processo de tomada de decisão, mas no cotidiano da clínica influem também questões individuais. A depender do contexto em que estão inseridas, mesmo quando confrontadas com as mesmas informações, pessoas podem fazer escolhas completamente diferentes 4 .
Observa-se descompasso entre as diretrizes e o modelo conceitual de decisão compartilhada no que se refere à valorização de preferências e valores individuais. Elwyn e colaboradores 20 , como visto, apresentam pontos essenciais para incluir o paciente na tomada de decisão, com transição fluida entre três passos. No entanto, os documentos pesquisados enfatizam a discussão dos riscos e benefícios das intervenções e a decisão em si, com pouco foco na conversa em equipe e no trabalho conjunto. Apenas dois textos se mostraram em conformidade com os três princípios, e o primeiro destes (conversa em equipe) foi o menos presente.
Embora seja o menos reconhecido pelos documentos, o primeiro passo tem a valiosa intenção de diminuir a disparidade de conhecimento na relação clínica, propondo ampla discussão a fim de conhecer o que o paciente preza em relação a sua saúde 20 . O resultado da pesquisa, portanto, demonstra a negligência estrutural de expectativas e valores do indivíduo na definição dos desfechos clínicos.
Já as ideias relativas à conversa de decisão (terceiro passo) foram as mais presentes nos documentos, que reconhecem a necessidade de definir intervenções e tratamentos quando há mais de uma opção viável. Entretanto, esse passo, de forma isolada, não atende à complexa tarefa de incorporar o usuário no processo de decisão, pois quando se negligencia a parceria e o entendimento sobre o que é importante para o paciente, o resultado é um plano de cuidado discordante com o contexto de vida 19 .
A relação clínica deve estar baseada em confiança, sincronia e parceria entre os envolvidos, que juntos buscam entender o problema e pensar soluções. Nesse processo, é essencial que o profissional conheça o paciente, considerando os múltiplos aspectos que afetam sua percepção sobre saúde, como história de vida e influência do círculo social e familiar 55 .
A expressão “decisão compartilhada” – de uso relativamente recente no Brasil – foi citada por apenas um documento, que, embora a tenha definido, não traz orientações para colocá-la em prática 41 . Estudos referem que, nesse tipo de decisão, é necessário que o profissional empregue habilidades relacionais e se mostre disponível para conhecer desejos e preferências do paciente 56 , 57 , mudando mentalmente seu papel de decisor para parceiro 17 . Nenhuma das diretrizes analisadas, no entanto, demonstra como incluir o indivíduo na tomada de decisão.
No Brasil, a valorização da autonomia é descrita em políticas nacionais como as de humanização 58 , promoção da saúde, atenção básica e até na de prevenção e controle do câncer, de forma mais discreta 59 . Essa abordagem, contudo, esteve ausente da maioria dos documentos aqui analisados, que padronizam a conduta para o cuidado de pacientes com câncer no SUS.
Autores que apontam a decisão compartilhada como ainda pouco explorada no Brasil identificam como dificuldades a resistência dos profissionais de saúde e o pouco incentivo para a incorporação dessa prática 52 , 60 . Por outro lado, estudos que apresentam ações já consolidadas em outros países atribuem o sucesso a leis e políticas que estimulam a participação do paciente 61 . Desse modo, além da construção individual da autonomia, é preciso condições sociais favoráveis, como acesso à informação, leis democráticas, políticas públicas e cultura de participação ativa 61 , 62 .
O estudo buscou averiguar como a tomada de decisão compartilhada é tratada nos protocolos e diretrizes sobre câncer no país. No entanto, verificou-se que esses documentos, em sua maioria, refletem práticas paternalistas em que o médico assume o papel de único decisor, sem considerar crenças e valores do paciente ao planejar o cuidado. As poucas menções à decisão compartilhada se restringiam à prática do rastreamento – devido a seus riscos –, ao tratamento de cânceres indolentes e à interrupção do tratamento em curso.
Dessa forma, recomenda-se a futuras pesquisas ampliar o debate sobre a participação do indivíduo em decisões que o afetam, visto que este engajamento é premissa ética que, se cumprida, pode melhorar a adesão ao cuidado e aumentar a satisfação com os serviços de saúde. Além disso, é necessário romper com o modelo paternalista de cuidado, que desconsidera expectativas e preferências individuais, negligenciando o estímulo à parceria entre médico e paciente. Para que mudança cultural como essa ocorra, os documentos que orientam a conduta dos profissionais devem chamar atenção para a necessidade de participação ativa do indivíduo em todas as etapas do cuidado.
Renata Oliveira Maciel dos Santos concebeu o projeto, buscou e analisou os protocolos e as diretrizes, redigiu o artigo e realizou a revisão final. Mirhelen Mendes de Abreu revisou o conteúdo e escreveu as seções “Discussão” e “Resultados”. Elyne Montenegro Engstrom participou da elaboração do projeto, analisou os protocolos e as diretrizes e revisou todo o conteúdo.
Mirhelen Mendes de Abreu – Doutora – mirhelen.abreu@gmail.com
Elyne Montenegro Engstrom – Doutora – elyneengstrom@gmail.com
Correspondência Renata Oliveira Maciel dos Santos – Rua Marquês de Pombal, 125, Centro CEP 20230-240. Rio de Janeiro/RJ, Brasil.

