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Infância e práticas alimentares: estudo bioético sobre vulnerabilidade e risco
Camila Blanco Guimarães; Camila Claudiano Quina Pereira
Camila Blanco Guimarães; Camila Claudiano Quina Pereira
Infância e práticas alimentares: estudo bioético sobre vulnerabilidade e risco
Revista Bioética, vol. 28, núm. 2, pp. 288-296, 2020
Conselho Federal de Medicina
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Resumo: Trata-se de estudo de campo, qualitativo, exploratório e transversal, desenvolvido com pais de alunos de duas escolas de cidades do interior de Minas Gerais, totalizando 27 participantes. Foi realizada oficina em que os entrevistados responderam questionários e assistiram a palestra informativa. Buscou-se evidenciar os efeitos da persuasão da indústria alimentícia sobre a dieta das crianças, visto que o Brasil vem enfrentando aumento expressivo de sobrepeso, obesidade e doenças crônicas não transmissíveis também na infância. Ficou claro que a publicidade se aproveita da vulnerabilidade e falta de conhecimento de pais e responsáveis para influenciar suas escolhas. Para enfrentar esse problema, o artigo demonstra a necessidade de proteger a população por meio de educação nutricional, leis e regulamentação.

Palavras chave: CriançaCriança,Indústria alimentíciaIndústria alimentícia,Vulnerabilidade em saúdeVulnerabilidade em saúde,BioéticaBioética.

Carátula del artículo

PESQUISA

Infância e práticas alimentares: estudo bioético sobre vulnerabilidade e risco

Camila Blanco Guimarães
Universidade do Vale do Sapucaí, Brasil
Camila Claudiano Quina Pereira
Universidade do Vale do Sapucaí, Brasil
Revista Bioética, vol. 28, núm. 2, pp. 288-296, 2020
Conselho Federal de Medicina

Recepção: 8 Julho 2019

Revised document received: 2 Fevereiro 2020

Aprovação: 3 Fevereiro 2020

Sobrepeso, obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) têm aumentado muito entre a população brasileira, atingindo também crianças, de acordo com o Guia alimentar para a população brasileira do Ministério da Saúde 1 . Esse grupo vem sendo precocemente exposto a guloseimas ultraprocessadas cujo consumo é estimulado pela indústria alimentícia por meio de mecanismos publicitários muitas vezes dissimulados 2 .

Notícias desencontradas, informações científicas deslocadas do contexto e rótulos confusos são exemplos de estratégias da indústria para conquistar novos e fiéis consumidores, determinando seu comportamento e induzindo necessidades. Confundidas por tais estratégias, muitas famílias tendem a consumir alimentos ultraprocessados pensando se alimentar bem 3 .

Neste século, a liberdade humana convive com a vulnerabilidade – algo aparentemente contraditório, mas congruente ao se considerar que as pessoas se tornaram peças descartáveis de um incansável mercado, e que grandes conglomerados industriais crescem impulsionados pela ignorância da população. Desta forma, este artigo busca evidenciar como esse processo se efetiva no caso específico da indústria alimentícia, que persuade pais e responsáveis e gera com isso uma epidemia de DCNT na infância que põe em risco esta geração e as futuras 4 . A bioética fundamenta as reflexões do estudo, visto que as questões ligadas à infância são pertinentes a sua abordagem interdisciplinar, que integra família, sociedade, saúde, educação, justiça, risco e vulnerabilidade.

Método

Este trabalho apresenta resultados de estudo de campo qualitativo, exploratório e transversal realizado em duas escolas de duas cidades do Sul de Minas Gerais. A amostra foi composta por 27 pais de alunos, e os dados foram coletados por meio de questionário com perguntas abertas referentes à alimentação familiar.

Buscando aprofundar as informações, além de aplicar esse instrumento, realizou-se oficina com segundo questionário, contendo imagens de alimentos, para conhecer as escolhas dos participantes e seus critérios. Ademais, foi realizada palestra para identificar a reação dos pais quando confrontados com informações nutricionais dos alimentos apresentados no segundo questionário. O áudio da palestra, com os comentários dos participantes, foi gravado e transcrito.

A análise foi dividida em duas etapas. Na primeira, os dados foram tratados estatisticamente, com auxílio do software Microsoft Excel, e as respostas ao questionário, agrupadas em categorias de acordo com a pergunta, geraram gráficos. Na segunda etapa, as transcrições do áudio da oficina foram submetidas a análise de conteúdo, método que descreve sistematicamente e reinterpreta o teor de textos, permitindo ir além da leitura comum 5 . A pesquisa seguiu as determinações da Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, que define procedimentos éticos para a pesquisa com seres humanos6 .

Resultados e discussão

As Figuras 1 e 2 apresentam as motivações para as escolhas dos participantes. Na primeira, que se refere a alimentos destinados a toda a família, percebe-se que o item “preço” se destaca, seguido por “marca”. Na segunda, relativa a alimentos exclusivos para as crianças, as respostas mudam de contexto, ganhando caráter relacionado à saúde em quase todos os elementos mencionados.


Figura 1
Elementos considerados na compra de alimentos, de maneira geral, conforme número de menções


Figura 2
Elementos considerados na compra de alimentos para crianças, conforme número de menções

Os resultados referentes a compras para crianças confirmam pesquisa de Pinheiro e colaboradores 7 , que destacou crescente preocupação de consumidores com a saúde e consequente busca por produtos considerados saudáveis. Ao verificar a mudança de critério de um gráfico para outro, fica evidente a preocupação dos pais com a alimentação dos filhos, apesar da ascensão alarmante de DCNT entre crianças. Essa divergência é intrigante, mas pode ser explicada, como se verá, pelas ideias equivocadas sobre o que é um produto alimentício saudável.

É o que demonstra a análise de conteúdo da fala dos participantes, que viam imagens e declaravam suas escolhas, explicitando os critérios utilizados. As respostas foram organizadas em eixos temáticos, identificados a partir de semelhanças entre as opiniões. Os eixos são apresentados e comentados nas subseções a seguir.

Sobre o alimento ser saudável

O termo “saudável” foi relacionado a diversos alimentos do questionário, geralmente associado a ausência ou teores reduzidos de “gordura”, sem detalhamento de tipo ou procedência (vegetal, animal ou artificial). O adjetivo também foi frequentemente vinculado a produtos light :

“Em casa uso só o [leite] desnatado mesmo, até para as crianças, porque tem menos gordura. Para elas já se acostumarem a não consumir muita gordura (…). Usamos margarina, mas é a light, ou aquela que vem adicionada de uma substância para coração. Dizem que essa não faz mal, e aí as crianças gostam, acabo comprando” (Participante 7).

“Compro mais requeijão, por ser mais prático, principalmente pra fazer o lanche da escola, mas dou preferência pro light, pra ter menos gordura” (Participante 3).

“Em casa, como é correria, acabo comprando aquele [suco] concentrado que só dilui também, e o de pozinho. Mas esse eu compro light, porque já ouvi alguma coisa que ele tradicional não é tão saudável assim” (Participante 6).

“Compro só peito de peru defumado lá para casa, porque sei que desses é o melhor. Feito de peru, e não de porco, né?! Tem menos gordura” (Participante 2).

“Uso margarina pelo fato de ser diabética, aí compro aquela margarina que faz bem para o coração. Todas as crianças comem também. Tem algo nela lá escrito que diz isso. Uma gordura boa, parece” (Participante 10).

“Inclusive o que a gente usa lá também é o [leite] semidesnatado, porque tem menos gordura. Porque esse leite integral tem mais gordura e, dependendo da pessoa, faz um pouco de mal essa gordura, aí a gente está optando por usar esse” (Participante 12).

“Salsicha, pela praticidade mesmo. O produto já está quase pronto, né? Não dá trabalho. Aí a gente compra de frango para ficar mais leve, com menos gordura” (Participante 15).

Os relatos mostram um padrão de escolhas alimentares quando o critério principal é saúde. A percepção negativa da “gordura”, considerada sinônimo de obesidade e doença cardíaca, não é recente, enquanto “pouca gordura” e “sem gordura” remetem à ideia de “saudável”.

Como descreve Pollan 8 , indivíduos mudam radicalmente seu pensamento e modo de lidar com a alimentação por influência não só de propagandas, mas também de ações governamentais e de autoridades da ciência, da nutrição e da saúde pública. No caso das gorduras, a estigmatização teve início na virada da década de 1980 para 1990, quando grupos de pesquisa da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, recomendaram que as pessoas reduzissem o consumo de gorduras saturadas – provindas de animais –, trocando, por exemplo, a manteiga pela margarina. Essa teoria, conhecida como “lipídica”, sustentava que a substância estaria ligada a doenças cardíacas.

Só três décadas depois desse período de aversão à gordura – que repercute até hoje – ficou claro que as pesquisas da “teoria lipídica” não tinham rigor científico equivalente à dimensão que ganharam nos Estados Unidos e no mundo. Como mostram Hu, Manson e Willett, hoje, cada vez mais se reconhece que a campanha por baixos teores de gordura se baseou em poucas provas científicas e pode ter produzido consequências não intencionais9 .

A teoria lipídica acabou promovendo produtos como a já citada margarina e os óleos vegetais de cozinha, levando a maioria dos consumidores que leem rótulos de produtos alimentícios a procurar por “gordura” como primeira informação de interesse 10 . Esse comportamento instigou indústrias a desenvolver uma série de artifícios para convencer o comprador de que determinado produto tem quantidades reduzidas de gordura.

Moss 10 cita o exemplo do leite, cujas vendas foram vertiginosamente reduzidas quando a preocupação com a gordura chegou ao auge. Expressões como “baixo teor de gordura” ou “2%” foram respostas da indústria à crise, e então os tipos semidesnatado e desnatado ganharam popularidade. No entanto, o que há de insidioso neste exemplo é que o “2%” leva a crer que 98% da gordura foi retirada do produto para benefício do consumidor, quando a verdade é que o leite integral apresenta só 3% a mais da substância. Assim, a indústria consegue manter um supostamente baixo teor lipídico adicionando maiores quantidades de açúcar ao alimento 11 .

Os produtos light também são resultado desta aversão à gordura, que diversificou o mercado e garantiu mais lucros à indústria. Esses “amigos” da saúde de fato têm teores menores de gordura ou açúcar em comparação com os produtos tradicionais a mesma marca. Todavia, para manter o sabor ou a consistência, essa redução é acompanhada de aditivos químicos, como aromatizantes, flavorizantes e sobretudo sódio, que aumenta a pressão arterial. Na embalagem do produto, porém, essa informação não tem o mesmo destaque da palavra “ light ”. Assim, o comprador pensa que adquire algo realmente saudável, mas, na verdade, está consumindo substâncias que desconhece, muitas delas relacionadas a doenças crônicas 12 .

Na fala dos participantes, foi recorrente também a menção ao açúcar e aos conservantes, considerados motivo de preocupação no momento da escolha. Os entrevistados, porém, não explicitaram como essas substâncias interferem negativamente na saúde. Nota-se ainda que informações nas embalagens sobre “adição de vitaminas”, sabor de “legumes” ou proteína de aves são utilizadas como indicativo de alimento saudável:

“Do mesmo jeito que o achocolatado, usamos o suco em pó, aí diluímos mais. Acho que assim não fica tão doce, né!?” (Participante 6).

“Em casa só deixo entrar bolacha normal mesmo, sem recheio, porque a com recheio tem muito açúcar, né?!” (Participante 1).

“Em casa, quando é de pó, uso o achocolatado light, pra ter menos açúcar, e aí pro lanche dos meninos é o de caixinha pronto, também light, por ser mais fácil mesmo” (Participante 7).

“Compro salsicha, mas a de frango, e linguiça caseira mesmo, do açougue, porque acredito que seja mais saudável a de frango do que de vaca por ter menos conservante” (Participante 2).

“Em casa só o de pó, porque só minha menina que gosta de suco, então ela mesma que faz, e é também o mais barato. Aí a gente compra aqueles light por ser mais saudável” (Participante 12).

“[Macarrão instantâneo] é mais prático e gostoso, e se for o de legumes acho que não faz muito mal. Até as crianças gostam” (Participante 20).

“Utilizo em casa [alimento pré-cozido adicionado de vitaminas e minerais] porque minha menina gosta de tomar vitamina com ele. Acho que é saudável para ela. Diz na lata que tem muitos cereais e vitaminas, né?” (Participante 8).

“Uso [tempero pronto em sachê] porque ele é mais prático e deixa a comida mais gostosa também. Aí uso o de legumes em vez do de carne por achar que é mais saudável” (Participante 13).

Os relatos são reflexo de campanhas governamentais em todo o mundo, que alertam sobre o consumo excessivo de açúcar e conservantes – principalmente o sal – por causarem doenças como diabetes e hipertensão arterial, respectivamente. Açúcar e sal desde muito fazem parte da alimentação humana, mas em suas formas originais, e não escondidos sob outros nomes, como em quase todos os alimentos ultraprocessados. Hoje há sal em doces (chocolate, refrigerante, iogurte) e açúcar em salgados (lasanha congelada, ervilha e milho em conserva, peito de peru defumado e frango temperado).

Como relata Moss 10 , até o início da década de 1980 o açúcar era promovido pela indústria de alimentos como fonte de prazer: “adoçado com mel”, “camada açucarada” ou “cremoso e cristalizado”. E o mesmo ocorria com o sal, que aparecia em propagandas que o denominavam “sal da terra”. Esse tipo de publicidade permaneceu até que se explicitaram as consequências das epidemias de obesidade e hipertensão arterial 12 .

O Brasil aderiu às campanhas sobre o uso excessivo dessas substâncias porque vem sofrendo com seu impacto negativo na saúde. O Guia alimentar para a população brasileira1 é taxativo em defender uma alimentação saudável que seja mais do que a ingestão de nutrientes. Contudo, quando o consumidor vai às prateleiras do supermercado, rótulos e embalagens enfocam justamente os “nutrientes”.

Munido da falsa sensação de conhecimento, o consumidor busca e adquire produtos aparentemente sem açúcar e sal ou com teores reduzidos dessas substâncias. Todavia, o que ele não sabe é que tais ingredientes, graças à tecnologia de alimentos, têm diversos nomes e apresentações que facilitam sua permanência nos produtos sem que apareçam nas embalagens. Para o sal, temos diversos componentes à base de sódio, como ciclamato monossódico, um adoçante artificial presente em produtos light.

Esse é também o caso dos “açúcares de adição”, extraídos da cana de açúcar, da beterraba, do milho etc. para uso em preparações culinárias ou processadas. Dentre eles estão xaropes como o de frutose, causador de esteatose hepática (popularmente conhecida como “gordura no fígado”), patologia observada em 42,9% de uma amostra com 77 crianças obesas na pesquisa de Duarte e Silva 13 .

Esses exemplos mostram que há como ocultar determinada substância em produtos alimentares, prejudicando a autonomia dos pais que gerenciam a própria saúde e a das crianças. Em meio a tantas informações desencontradas, a tarefa de se conscientizar torna-se árdua.

A seguir são apresentadas as reações dos participantes às informações ministradas na palestra, referentes aos alimentos, seus ingredientes e aditivos químicos. Com base nos elementos mais mencionados pelos entrevistados, foram elencadas as principais categorias de análise: “ingredientes e aditivos químicos” e “rotulagem e mídia”.

Sobre ingredientes e aditivos químicos

Os componentes químicos adicionados aos produtos alimentícios foram o principal objeto dos comentários, gerando diversas reações nos participantes:

“Nossa! Não sabia que edulcorante era adoçante. Inclusive já dei para o meu filho um iogurte [light] com esse tal de edulcorante que agora eu não lembro o nome, mas se soubesse não daria. Não acho que criança tenha que tomar adoçante” (Participante 3).

“Fiquei feliz e aliviada agora, porque eu tentei muito dar aqueles sucos concentrados ou de xarope para a minha filha, mas ela não gosta. Só aceita natural mesmo. E tentava porque achava que não fazia nenhum mal e é prático, né?” (Participante 6).

“É! Nossa! Meus filhos só comem pizza de calabresa! Eu dou muito para eles… Nossa! Não daria com a frequência que dou se soubesse disso, juro” (Participante 1).

“Eu estou chocada de saber que até em algumas fórmulas infantis tem esses componentes que fazem mal para a criança. Porque você vai comprar e não imagina um negócio desses” (Participante 5).

“Sobre o [nome do produto], foi bem impactante saber que tem xarope de açúcar. Não fazia ideia e dou todo dia para o meu filho” (Participante 10).

“Não sabia que o peito de peru era embutido. Jurava que era saudável, até porque é mais caro do que os outros. Tem até o glutamato, né?! Nossa, a gente não sabe o que está comendo” (Participante 3).

“Fiquei chocada com a lista de ingredientes dos pães e bolachas integrais. Meu menino apresentou diabetes e triglicerídeos alto e está há um ano achando que está se tratando comendo isso, mas continuam do mesmo jeito os exames dele” (Participante 2).

“A composição da salsicha também me deixou impressionada. Porque minha menina, nossa! Se deixar ela come todo dia e em todas as refeições” (Participante 13).

Percebe-se a diferença nas falas antes e depois de os participantes receberem informações sobre os produtos. Destacam-se as expressões de admiração e surpresa. Com conhecimento adequado, muitos dos alimentos descritos como parte da rotina das crianças estariam ausentes da dieta, ou seu consumo seria menos frequente.

Nota-se a forte atuação dos meios de comunicação, que veiculam propagandas cujo objetivo é estimular o consumo de determinado produto, evidenciando alguns de seus aspectos e omitindo outros. Moss 10 chama atenção para a habilidade excepcional da indústria em transformar adversidades em vantagens, dando como exemplo a estratégia de uma empresa multinacional fabricante de batatas chips e salgadinhos de milho ultraprocessados. Encurralada por descobertas científicas sobre os malefícios do alto consumo de sódio, essa empresa viu na epidemia de obesidade que despontava nos anos 1990 uma saída engenhosa para manter suas vendas e até aumentá-las. Com o domínio das informações sobre o excesso de peso da população, a empresa substituiu suas embalagens, destacando informações sobre calorias e dissimulando o sódio, rebaixado de personagem principal a mero coadjuvante.

É pela publicidade que o consumidor é convencido a adquirir determinado alimento sem se dar conta de que está sendo manipulado. Em geral, essas ações promovem produtos supérfluos, fontes de calorias vazias, reforçando padrões de consumo relacionados à prevalência de doenças crônicas. Por isso, como mostram as reações dos participantes, a educação nutricional é extremamente importante 14 .

É parte desse processo educativo confrontar a influência da publicidade e da mídia nos hábitos alimentares, desenvolvendo abordagens que permitam tratar do problema em todas as suas dimensões, biológica, social e cultural. É importante também apontar a deterioração do meio ambiente e da qualidade de vida gerada pelas “soluções” da tecnologia de alimentos como problema da bioética global 15 . Por isso, a oficina com os participantes da pesquisa buscou informar sobre questões do cotidiano, mas sempre remetendo a discussões mais profundas: direitos humanos, cidadania, consumo, ética e democratização do saber 16 , 17 .

Lima, Oliveira e Gomes 18 enfatizam a educação nutricional como ferramenta de empoderamento e mudança de hábitos de grupos vulneráveis a fim de eliminar práticas equivocadas influenciadas pela indústria alimentícia. Trata-se de problema moral que gera danos e carências concretas, e que só pode ser resolvido protegendo-se os mais afetados, sempre com o objetivo de desenvolver suas potencialidades, de modo que deixem de precisar desse suporte e sejam capazes de fazer suas escolhas de maneira informada 19 . Em outras palavras, a educação nutricional protege ao promover a autonomia do consumidor, delineando um perfil de cidadão que conhece, pensa e transforma a sua realidade 20 . Para isso, no entanto, é preciso garantir alternativas reais e boas condições de escolha.

Na fala dos participantes, percebe-se a falta de autonomia, pois a capacidade de optar conscientemente entre alternativas se vê limitada. Manter essa capacidade diante do alto investimento da indústria para alterar hábitos pode ser difícil, mas é necessário21 .

Sobre rotulagem e mídia

Nesta categoria, observaram-se as reações dos participantes quanto às estratégias da indústria de alimentos para vender seus produtos:

“Nossa! Isso deveria ser ensinado no ensino médio! É um absurdo nós não sabermos ler rótulo e ter acesso ao que são essas coisas todas aí com esses nomes estranhos, né?! Absurdo. Estou indignada aqui!” (Participante 1).

“Posso tirar uma foto [da lista dos diversos nomes para gordura trans] para quando eu for no supermercado? Porque eu estou chocada aqui com a quantidade desses nomes, que são todos a mesma coisa, e a gente não sabe de nada. Nossa Senhora!” (Participante 4).

“Nossa! Olha aqui! Eu estou me sentindo uma ignorante vendo essas coisas! Nunca tinha escutado nada sobre isso…” (Participante 7).

“Eles [mídia] estão aí para fazer o que é a meta deles, ganhar, lucrar, fazer tudo pra chamar atenção da criança, aí os pais não fazem seu papel, porque também ficamos perdidos (…). Ai, gente! Parece que eles usam essas propagandas para estimular mesmo a gente. Para a gente colocar junto com uma salada, para parecer saudável. Triste” (Participante 5).

“O que acho interessante é que eu estava vendo um documentário esses dias falando sobre isso, da indústria alimentícia. Então, ela não está preocupada com a nossa saúde, da população, ou seja, ela quer injetar esses produtos aí para nós consumirmos, né?! Ela quer que quanto mais a gente coma… [A indústria] vai crescendo e a saúde nossa vai para o ralo” (Participante 1).

As reações de revolta se direcionam principalmente às várias nomenclaturas possíveis para um mesmo ingrediente e à pouca ou nenhuma divulgação de informações, o que possibilita a ação ardilosa da propaganda. Depois de conhecer a composição dos alimentos, os participantes constatam que o interesse basilar dos fabricantes de ultraprocessados – o lucro – é escondido atrás de slogans altruístas que destacam a praticidade e a saúde.

Indústria e consumidor se conectam, no ato da compra, pela embalagem dos produtos, onde coexistem a publicidade e informações reguladas por normas. O incentivo ao consumo por meio de frases, imagens, cores ou design tira a atenção de tabelas nutricionais e listas de ingredientes, que oferecem dados fundamentais. O direito pleno à informação depende da facilidade com que o conteúdo do rótulo é transmitido ao consumidor, de modo a ajudá-lo a fazer escolhas mais saudáveis 22 . Essa função, contudo, é subordinada a poderosas estratégias de marketing , pois os rótulos falam por meio das marcas. E as marcas falam muito, e em voz alta, com métodos pirotécnicos de promoção de vendas. Métodos que funcionam para seus objetivos: eles vendem porque o público escuta o que eles dizem23 .

O Código de Defesa do Consumidor estabelece como direito básico, no inciso III de seu artigo 6º, o acesso a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem24 . Esse princípio, no entanto, quase nunca é seguido. Ao contrário, o consumidor é constantemente assediado e ludibriado por propagandas enganosas, assumindo, nessa relação em que supostamente detém o maior poder (de compra), o papel mais vulnerável. Diante desse cenário, a educação nutricional pode capacitar os cidadãos a escolher sem depender de instrumentos subordinados aos interesses da indústria 25 .

Os meios de comunicação têm o potencial de informar o que é nutritivo, saudável e adequado, mas também podem direcionar o comportamento do consumidor para o lado oposto. Por isso é preciso fortalecer o discurso da saúde, capacitando a população. A bioética pode contribuir com esse objetivo, pois nela se encontram perspectivas teóricas e metodológicas que visam aprimorar e consolidar a cidadania e a autonomia, desrespeitadas no cenário apresentado. Essas perspectivas ajudam a enfrentar o mecanicismo em torno das escolhas alimentares, que desumaniza, e a modificar práticas estabelecidas pelo modelo econômico dominante 21 , 26 , 27 .

A mídia certamente continuará exercendo extraordinário poder de persuasão, e por isso é preciso proteger a saúde da população e sobretudo das crianças, duplamente vulneradas pelo simples fato de dependerem da escolha de seus responsáveis, também vulnerados. A análise crítica das possibilidades de uma bioética que atue concretamente na realidade é extremamente útil nesse esforço 12 , 25 , 28 .

Considerações finais

Estimulada pelo objetivo de lucrar, a indústria alimentícia afeta negativamente a qualidade de vida e o poder de escolha dos consumidores. Isso ocorre tanto em grandes centros urbanos, como já registrado em diversos estudos, quanto em cidades menores, como as aqui pesquisadas. Nesses locais, já é possível perceber os mesmos riscos relacionados à alimentação presentes nos grandes centros.

A oficina desenvolvida por ocasião da pesquisa transformou a informação em ação, gerando resultados concretos por meio da aliança entre pesquisador e população estudada. Essa interação vai ao encontro dos referenciais bioéticos aqui utilizados, que propõem intervenções em defesa de princípios básicos. Ficou claro como pais mudam de comportamento quando tomam posse de conhecimento sobre a alimentação de seus filhos. Isso mostra como a educação nutricional é importante para enfrentar a lógica que transforma alimento em mercadoria, escondendo seu verdadeiro conteúdo em busca de lucros.

O resultado desta pesquisa certamente seria diferente caso a educação nutricional tivesse recebido a devida importância. Nesse sentido, é fundamental que a esfera pública desenvolva iniciativas, por exemplo, instituindo código de ética ou regulamentação rígida sobre informações veiculadas em propagandas e rótulos de alimentos processados. Isso beneficiaria não apenas os consumidores, mas também as empresas realmente preocupadas em garantir a boa qualidade de seus produtos e informar a população de forma honesta.

Também são necessárias políticas públicas direcionadas à educação alimentar da população, e neste processo têm papel fundamental profissionais da saúde e órgãos de defesa do consumidor. Essas políticas devem ser combinadas com a regulação de toda a cadeia produtiva, visto que só o conhecimento básico não garante o exercício pleno da autonomia, como demonstram os resultados desta pesquisa.

Um consumidor protegido e com postura crítica pode exercer sua autonomia usando o poder de compra para impugnar ou prestigiar determinado alimento, por consequência preservando a saúde das crianças pelas quais é responsável. A educação nutricional, portanto, ajuda a garantir o direito à saúde, fundamental para o pleno desenvolvimento infantil.

É preciso mostrar que por trás do aspecto sedutor das embalagens se escondem doenças de que muitos padecem sem entender sua origem. A educação nutricional deve estar comprometida com os princípios da bioética, pois essa união permite perceber, examinar e entender os múltiplos fatores do problema. Somente a partir de perspectiva que abranja a complexidade da questão será possível empoderar e proteger a população – e sobretudo as crianças – de modo realmente eficaz, reduzindo vulnerabilidades e garantido o direito à alimentação adequada.

Material suplementar
Referências
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25. Ishimoto EY, Nacif MAL. Propaganda e marketing na informação nutricional. Brasil Alimentos [Internet]. 2001 [acesso 12 abr 2019];(11):28-33. Disponível: https://bit.ly/2wjf0TZ
26. Lima FCC. Op. cit.
27. Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética [Internet]. 2005 [acesso 13 mar 2019];13(1):125-34. Disponível: https://bit.ly/2V0ZiFi
28. Garrafa V. Introdução à bioética. Rev Hosp Univ UFMA [Internet]. 2005 [acesso 6 abr 2020];6(2):9-13. Disponível: https://bit.ly/34cs7CW
Notas
Notas
Aprovado CEP-Univás CAAE 02065418.0.0000.5102
Autor notes
Participação das autoras

Camila Blanco Guimarães redigiu o texto sob orientação de Camila Claudiano Quina Pereira.

Camila Blanco Guimarães – Mestre – cablangui@gmail.com

Camila Claudiano Quina Pereira – Doutora – camilacquina@gmail.com

Declaram não haver conflito de interesse.

Correspondência Camila Blanco Guimarães – Rua Antônio Correa Cardoso, 111/2.023 CEP 37501-064. Itajubá/MG, Brasil.


Figura 1
Elementos considerados na compra de alimentos, de maneira geral, conforme número de menções

Figura 2
Elementos considerados na compra de alimentos para crianças, conforme número de menções
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