Resumo: Este estudo buscou identificar e discutir problemas éticos vivenciados por farmacêuticos na atenção básica à saúde. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com 19 farmacêuticos, no município de Florianópolis/SC. O conteúdo das falas foi analisado por abordagem temático-categorial, à luz de referenciais teóricos da bioética. Identificaram-se dez problemas éticos ligados à dimensão política do trabalho e da produção do cuidado, envolvendo questões relativas à estrutura dos serviços, a processos de gestão e à forma de organização da atenção à saúde. Conclui-se que a análise ética comprometida com a resolução dos problemas apontados é importante estratégia para qualificar os serviços farmacêuticos na atenção básica à saúde.
Palavras chave: Atenção primária à saúdeAtenção primária à saúde,Assistência farmacêuticaAssistência farmacêutica,BioéticaBioética,Ética farmacêuticaÉtica farmacêutica,Saúde públicaSaúde pública.
PESQUISA
Ética e assistência farmacêutica na atenção básica: desafios cotidianos
Recepção: 5 Junho 2019
Revised document received: 7 Janeiro 2020
Aprovação: 8 Janeiro 2020
Embora conflitos éticos sejam constantes na atenção básica à saúde (ABS) – com suas complexas relações entre trabalhadores, usuários e o próprio sistema –, a discussão sobre esse tema é relativamente recente 1 - 7 . O debate na bioética custou a contemplar os serviços da ABS, vez que focavam o ambiente hospitalar e procedimentos de alta complexidade, priorizando situações-limite em detrimento de ocorrências cotidianas 1 .
Neste trabalho, a bioética é compreendida para além da biomedicina e da clínica. Assume-se que o campo deve necessariamente incluir questões sociais e agenda voltada a temas públicos e coletivos, em vez de se debruçar sobre questões específicas, privadas e individuais 8 .
Partindo desses pressupostos, problemas éticos são definidos como desafios cuja abordagem deve prescindir de postura dilemática, que percebe apenas dois cursos possíveis de ação: extrema ou inconciliável. Assume-se aqui a postura problematizadora, baseada na multiplicidade de alternativas prudentes e responsáveis 9 . Portanto, para enfrentar problemas éticos deve-se considerar conflitos de valores e deveres, bem como as situações que os geram 2 , 10 , como resultado da produção social, e não como fenômenos isolados. Dessa forma, torna-se necessário o diálogo entre bioética e saúde coletiva 11 .
No Brasil, o foco das pesquisas tem sido investigar a prática dos profissionais das equipes de saúde da família (EqSF), principalmente médicos, enfermeiros e agentes comunitários, e em menor medida técnicos de enfermagem e equipe de saúde bucal (cirurgiões-dentistas e auxiliares). Problemas vivenciados por outros profissionais de saúde inseridos na ABS, dentre eles o farmacêutico 12 , não têm sido explorados.
Uma incipiente produção científica tem abordado os aspectos éticos da prática farmacêutica 13 . Especialmente na última década, pesquisadores vêm se dedicando principalmente ao contexto das farmácias que atendem à comunidade e no setor privado 14 - 22 .
No Sistema Único de Saúde (SUS), ao longo da última década, maior número de farmacêuticos foram inseridos na ABS, principalmente a partir da criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) – estratégia inovadora no âmbito do SUS, com objetivo de ampliar o trabalho multiprofissional e interdisciplinar na ABS. Assim, expandiram-se as oportunidades de atuação farmacêutica nas EqSF, o que contribuiu para a resolutividade das ações 23 . Não obstante, a integração da assistência farmacêutica à política nacional de saúde é relativamente recente, e não está isenta de conflitos de interesses, em jogo de tensões marcado por avanços e retrocessos 24 . Nesse sentido, ainda são muitos os obstáculos a superar a fim de qualificar tal assistência, especialmente quanto à atuação clínica e à necessidade de integrar os serviços de dispensação de medicamentos ao cuidado dos usuários 25 , 26 .
Dadas as lacunas na literatura, este trabalho busca identificar e discutir os problemas éticos vivenciados por farmacêuticos de uma rede municipal de atenção à saúde, com foco naqueles que surgem da relação dos profissionais com o sistema de saúde, considerando as formas de organização e gestão do SUS.
Trata-se de estudo exploratório-descritivo, de abordagem qualitativa, realizado em Florianópolis/SC, cidade de médio porte e capital do estado, na região Sul do Brasil. No município, há farmácias em todos os Centros de Saúde, que disponibilizam medicamentos do componente básico da assistência farmacêutica – itens contemplados na Relação Municipal de Medicamentos Essenciais que atendem aos agravos prioritários e mais comuns no âmbito da ABS. Excetuam-se dessa dispensação os psicotrópicos e outras drogas sujeitas a controle especial, encontrados somente em sete farmácias de referência distritais – únicas a contar com farmacêuticos em período integral.
Pessoalmente ou por telefone, foram convidados a participar deste estudo todos os 23 farmacêuticos que, no momento da pesquisa, estavam integrados à rede de ABS. Destes, três estavam afastados do trabalho, e houve dificuldade de conciliar a agenda com um quarto profissional. Assim, 19 farmacêuticos participaram da pesquisa. O perfil desses profissionais é detalhado na Tabela 1 .
Após o consentimento livre e esclarecido de cada um dos participantes, os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas 27 . Com base em Zoboli e Fortes 1 , o roteiro de entrevista foi elaborado de forma a abordar especificamente os problemas éticos vivenciados na relação com usuários, com outros profissionais e, sobretudo, com a organização e gestão do SUS, foco deste artigo.
Entrevista-piloto foi conduzida com um farmacêutico atuante na ABS com o objetivo de testar e aperfeiçoar o roteiro. As demais entrevistas foram feitas no último trimestre de 2015, em hora e local agendados previamente com o participante, em ambiente privativo, sem a presença de terceiros. Com exceção de um encontro, realizado em uma universidade, o local de trabalho foi o lugar escolhido pelos participantes. As falas, que tiveram duração média de 30 minutos, foram gravadas e integralmente transcritas. Neste artigo, para garantir o anonimato, os participantes foram identificados por um código alfanumérico, contendo a letra “F” (de “farmacêutico”) e numerais de 1 a 19.
O pesquisador que conduziu as entrevistas e analisou os dados é também farmacêutico, com experiência de dez anos na ABS. Presume-se, assim, sua afinidade com os entrevistados e com a temática do estudo, o que aguça sua sensibilidade para nuances talvez ignoradas por olhar externo, permitindo ao pesquisador constantemente revisar sua interpretação e confrontá-la com a realidade.
O software ATLAS.ti 7.5.11 foi utilizado para tratar os dados obtidos, analisados segundo o método de análise de conteúdo temático-categorial 27 , 28 . As unidades de registro para codificação foram compostas por trechos de entrevista que relatavam situações envolvendo problemas éticos e o modo como os entrevistados tentaram solucioná-los.
Considerando as relações com a organização e gestão do sistema de saúde, foi possível identificar dez problemas éticos centrais, listados no Quadro 1 . Na sequência, discute-se cada um desses problemas, com exemplos extraídos da fala dos entrevistados.
As deficiências na estrutura do serviço, que prejudicam o trabalho do farmacêutico, são um dos principais problemas relatados:
“A questão da estrutura física já é um problema ético pra mim… Enfim, tu não consegues ter um local legal pra trabalhar” (F7).
Os entrevistados descrevem cenário comum em serviços de ABS no Brasil 29 , relatando deficiências de estrutura física nas farmácias, como espaço insuficiente (no ambiente interno e na sala de espera); disposição inadequada dos guichês de atendimento, o que dificulta a comunicação e não garante a privacidade do usuário; riscos ergonômicos; e localização da farmácia em áreas com grande fluxo ou concentração de usuários que aguardam outros atendimentos, próxima a recepções, consultórios ou salas de vacina, por exemplo. Evidenciou-se que essas limitações físicas produzem barreiras para a assistência às necessidades do usuário, acarretando prejuízos ao cuidado:
“A condição de trabalho dos farmacêuticos que estão na saúde pública, que é o meu caso, ela é muito precária e não favorece essa questão da orientação (…) Eu entrego o medicamento por uma janela, com pacientes em pé, na fila, sem privacidade” (F16).
Além dos prejuízos ao usuário, as deficiências na estrutura do serviço favorecem o adoecimento dos profissionais. Alguns entrevistados relatam o problema das frequentes licenças para tratamento de saúde em razão de lesões por esforço repetitivo ou distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho. As consequências se somam a outras questões levantadas pelos farmacêuticos: “ A gente tem um problema forte de RH em todos os serviços de farmácia da rede ” (F15).
A afirmação se refere principalmente à composição da equipe, pelo fato de que não há no município cargo de técnico ou auxiliar de farmácia. Normalmente, quem ocupa essa função são técnicos de enfermagem vinculados às EqSF. O principal problema é que esses profissionais, na maioria das vezes, compõem a equipe de farmácia em esquema de rodízio, o que dificulta a capacitação:
“Eles [técnicos de enfermagem] estão de má vontade ali [na farmácia]; fazem de qualquer jeito… Não todos, é claro, mas a maioria… Então você estava sempre refazendo seu trabalho… Você ia lá e explicava, e no outro dia tava errado de novo, tava bagunçado de novo” (F12).
Para aprimorar os serviços farmacêuticos na ABS, a Organização Pan-Americana da Saúde 30 recomenda número suficiente de farmacêuticos e equipe de apoio (auxiliares e técnicos), com competência e formação adequada, bem como motivação e comprometimento. A dificuldade para compor a equipe de farmácia sobrecarrega os trabalhadores e prejudica o atendimento ao usuário:
“É um paciente atrás do outro, né? Você não consegue, às vezes, nem cumprimentar a pessoa porque já tem uma fila enorme (…) E daí vai indo, a gente não consegue estabelecer um cuidado mais qualificado” (F12).
Os entrevistados explicitam o conflito de sentir que negligenciam as necessidades dos pacientes porque precisam reduzir o tempo de atendimento: “ Muitas vezes eu tenho que fechar os olhos para uma situação que merece um cuidado especial, porque eu tenho que atender à demanda, porque eu tenho que apagar a fogueira ” (F16).
Como causa de angústia, destaca-se a incompatibilidade entre a estrutura e capacidade dos serviços e as demandas da população, como quando ainda há usuários na fila da farmácia no horário de fechamento da unidade de saúde. Nesse sentido, os profissionais sentem-se pressionados tanto pela população como institucionalmente, cobrando-se para atender, independentemente das condições, todos os usuários que chegam à farmácia. De fato, a ABS deve garantir o direito de acesso dos usuários, de modo que é positivo, legítimo e necessário que os cidadãos reivindiquem o atendimento a suas necessidades. No entanto, o problema ético se estabelece exatamente na (in)compreensão quanto às limitações do serviço, que ultrapassam a responsabilidade individual dos profissionais de saúde.
Os farmacêuticos também relatam dificuldades no trabalho dos NASF, apontando a fragmentação das equipes. Uma das explicações seria a própria estrutura de alguns centros de saúde, que não favorece a interação entre profissionais no mesmo período. Impede-se, portanto, a integração efetiva para o trabalho colaborativo.
Em apenas três centros de saúde há farmácias de referência distritais com farmacêuticos presentes durante todo período de funcionamento. Ou seja, as demais unidades da ABS possuem farmácia, mas não contam com o suporte de profissional farmacêutico. Em razão dessas deficiências, um dos entrevistados comenta que “ trabalha muito com redução de danos ” (F14), demonstrando a impossibilidade do farmacêutico do NASF atender às demandas reprimidas, que exigiriam sua presença contínua, e não apenas em alguns períodos. A situação força o profissional a encarregar-se prioritariamente do papel de auxiliar de serviços técnico-gerenciais, prejudicando o apoio matricial às EqSF, que possibilitaria ampliar a clínica na ABS. Ademais, às vezes é preciso descontinuar o trabalho no NASF para dar suporte a farmácias de referência distritais, durante as férias de outros farmacêuticos, por exemplo.
Os relatos confirmam a realidade observada em estudo sobre o trabalho de farmacêuticos no NASF, em que se discute o dilema do profissional (...) na definição das atividades a serem realizadas, ora sendo um apoiador das [EqSF] , ora sendo um farmacêutico mais restrito às farmácias31 . A pesquisa também destaca as limitações impostas pelo cotidiano dos serviços, haja vista a impossibilidade de o farmacêutico responsável por múltiplas EqSF e centros de saúde realizar as atividades e atribuições preconizadas nas diretrizes do NASF para a assistência farmacêutica.
Trabalhando sob modelo biomédico ainda hegemônico, os farmacêuticos sofrem os impactos de uma estrutura organizacional que prioriza apenas a disponibilidade dos medicamentos:
“Eu me sinto um entregador de remédio (…) A gente nunca tem a tendência de diminuir esse medicamento… A gente nunca trabalha com isso…” (F18).
“Nós somos um instrumento de medicalização das pessoas” (F2).
Alguns farmacêuticos se percebem como parte do fenômeno de medicalização da sociedade 32 , caracterizado pela prescrição de terapias farmacológicas ou procedimentos médicos inapropriados ou desnecessários, com maior potencial para danos que benefícios. Assim, os profissionais vivem o conflito ético de sentir que colaboram com a medicalização enquanto não conseguem, em razão da estrutura do serviço e das condições de trabalho, estimular o uso seguro e apropriado de medicamentos. Como relatam os entrevistados, por vezes o acesso aos fármacos prolonga ciclos de dependência e alienação. É o caso, por exemplo, do uso abusivo de medicamentos que amenizam sintomas, mas não tratam as causas da doença e podem gerar efeitos adversos graves.
Para além de questões referentes à realidade local, discutir o problema da medicalização exige reconhecer sua ligação a processo sociocultural complexo que propaga a ideologia do medicamento como bem de consumo, privilegiando o lucro da indústria farmacêutica e do complexo médico-industrial em detrimento das necessidades da população 33 . Nesse sentido, a bioética compreende o processo saúde-doença de forma mais ampliada, bem como chama atenção para a necessidade intervir nos determinantes sociais de saúde8 , 11 , 34 . Assim, a consciência manifestada por alguns farmacêuticos quanto ao predomínio da prática de medicalização é necessária, pois não se trabalha para transformar o que ainda não se pode perceber.
A disponibilidade de alguns medicamentos apenas em farmácias centralizadas também foi identificada pelos profissionais como um problema ético: “ A questão das farmácias de referência (…) . As pessoas precisam pegar às vezes dois, três ônibus pra ter acesso a esse medicamento ” (F3).
No município, duas farmácias de referência distritais atendem a programas específicos, como o de doenças sexualmente transmissíveis, e há uma farmácia que atende o componente especializado da assistência farmacêutica – o qual contempla medicamentos indicados na linha de cuidados para determinadas doenças de acordo com critérios definidos nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Assim, há usuários que precisam se deslocar por até quatro farmácias para conseguir todos os medicamentos. Isso ocorre porque, embora todas as farmácias estejam sob responsabilidade do município, há serviços em que parte do gerenciamento logístico é feito pelo governo estadual ou federal, com sistemas informatizados distintos – e incomunicáveis – de gestão do estoque.
Os farmacêuticos destacam que, além das dificuldades de acesso a medicamentos por falhas de comunicação entre serviços, há o problema da fragmentação do cuidado. Por exemplo, com a falta de integração entre a ABS e as outras farmácias, é possível que um centro de saúde dispense medicamentos sem saber que se destinam a uma pessoa com HIV, em tratamento com antirretrovirais. Dessa forma, a avaliação da prescrição fica comprometida, e o paciente pode não receber as orientações necessárias. Ou seja, as farmácias da ABS não estão organizadas para atender, junto com as EqSF, as diretrizes de coordenação do cuidado, de acompanhamento e organização do fluxo de usuários entre os diversos serviços da rede.
Com relação à gestão municipal da assistência farmacêutica, os entrevistados apontaram diversos problemas:
“Normas ou protocolos [são] decididos pela gestão de forma fechada, pouco democrática, mas você tem que assumir aquilo enquanto diretriz e repassar (…). Então é uma coisa que tem uma carga de que as decisões que a gestão toma repercutem muito no dia a dia, no nosso cotidiano” (F14).
“Eu acho que também a gente fica nessa questão de responder a uma chefia, a uma coordenação, e isso pode resultar em alguns problemas” (F8).
Nesse sentido, manifesta-se a pouca participação dos profissionais na tomada de decisões sobre ações, normas ou protocolos que incidem sobre a rotina dos serviços de farmácia. Mesmo a gerência técnica da assistência farmacêutica está subordinada a uma diretoria de ABS e, em alguns casos, há também interferência de processos burocráticos e políticos externos à Secretaria Municipal de Saúde, no que se refere, por exemplo, à liberação de recursos para adquirir medicamentos.
Esse contexto leva os entrevistados a confrontar seus princípios e modos de enxergar o trabalho com as diretrizes e decisões estabelecidas institucionalmente. Os profissionais relatam ainda ter pouca autonomia para sugerir modificações na organização do trabalho. Esse cenário explicita a necessidade de democratizar a tomada de decisões, de maneira a garantir maior participação dos farmacêuticos em espaços de discussão e planejamento.
Conforme os pressupostos da Política Nacional de Humanização, a indissociabilidade entre gestão e atenção implica construir novas práticas e processos no cotidiano dos serviços, com gestão participativa (ou “cogestão”), envolvendo profissionais, gestores e usuários 35 . Essa reorientação é essencial, pois a práxis em saúde demanda sujeitos trabalhadores com importante grau de autonomia e de responsabilidade com o outro e com as instituições36 . Ademais, há que se considerar o planejamento estratégico das equipes da ABS como uma exigência ética 37 – processo do qual os farmacêuticos não podem ser excluídos.
Também foram relatadas falhas na comunicação entre gestão, unidades de saúde e trabalhadores:
“O pior nó crítico é a comunicação, porque não chega a informação em quem tem que chegar” (F17).
A análise dos dados revelou falta de informações entre os profissionais sobre outros serviços da própria rede municipal, inclusive de farmácia, o que gera transtornos e potencializa conflitos com os usuários. Além das falhas de comunicação, falta transparência em alguns processos, também reflexo de um modelo de gestão tradicional e verticalizado. Os farmacêuticos referiram, por exemplo, ter pouco conhecimento sobre o andamento das licitações e o processo de aquisição de medicamentos, de modo que só tomam ciência do algum desabastecimento ao constatar que determinado item não chegou à farmácia no pedido mensal. A situação gera uma série de dificuldades no cotidiano dos serviços:
“Às vezes falta medicamento e é você que tem que enfrentar o usuário, não é a gestão que tem que enfrentar, né? Então, esse é um grande problema” (F12).
São notórios os transtornos gerados pela indisponibilidade de medicamentos na unidade de saúde, especialmente para usuários que precisam de analgesia ou tratamento imediato – como na terapia antimicrobiana ou antipirética. Independentemente da causa do problema, a indisponibilidade sempre viola o direito do usuário, e é ainda mais crítica quando não há alternativas terapêuticas ou quando os desassistidos são vulnerados, isto é, não são capazes de se protegerem sozinhos ou não possuem algum amparo que venha da família, do grupo ao qual pertencem, do Estado ou da própria sociedade38 .
Essas situações impactam a rotina de trabalho, prejudicando as relações com usuários e, ocasionalmente, com a equipe de saúde. Para suprir as necessidades do usuário, é preciso envolvimento do farmacêutico, verificando se há estoque disponível em outras unidades, analisando se há alternativas terapêuticas disponíveis ou discutindo o caso com a EqSF ou o médico prescritor. Quando os profissionais não conseguem atender a essas demandas adequadamente, conflitos são gerados, aumentando o rol de problemas éticos que advêm da estrutura dos serviços e da sobrecarga de trabalho.
O gerenciamento da falta de medicamentos traz ainda outros conflitos éticos, envolvendo decisões quanto a alternativas e recursos disponíveis. Por exemplo, quando há desabastecimento de um antibacteriano em cápsulas, pode-se optar por distribuir a suspensão, mas sob risco, por consequência, de prejudicar as crianças. Quando se sabe que determinado medicamento está em falta, mas ainda há estoque na farmácia, qual é a melhor conduta? É possível estabelecer critérios para racionar a dispensação e atender a casos prioritários? No município estudado, as decisões usualmente se dão de forma individual ou, no máximo, envolvem algum debate com a equipe da unidade de saúde. A gestão central não tem coordenado este diálogo.
A obtenção de medicamentos pela via judicial também é relatada pelos entrevistados como causa de conflitos:
“Um dos mais frequentes [problemas éticos] é, por exemplo, o paciente receber uma prescrição fora da lista de medicamentos padronizados no SUS e ser orientado pelo próprio prescritor, às vezes por outro funcionário do serviço, a entrar com uma ação judicial” (F13).
A fala explicita um dos resultados da pesquisa: a preocupação dos farmacêuticos com a judicialização da saúde 39 . Entendendo que a prática gera iniquidades e prejudica a integralidade dos serviços, os entrevistados mostram-se incomodados com o fato de que profissionais da própria rede municipal orientam usuários a entrar com ações na Justiça. Na rotina dos serviços de farmácia na ABS, não é fácil avaliar casos de prescrição de medicamentos não padronizados pelo SUS, pois é preciso analisar detalhadamente a condição de saúde e o histórico do usuário. Se por um lado persiste a lógica do medicamento enquanto bem de consumo, com influência de estratégias para promover e expandir vendas por parte do setor médico-industrial, por outro a judicialização também pode ser recurso legítimo para garantir assistência integral quando o medicamento não está disponível nos serviços do SUS 39 , 40 .
Quanto aos impactos dos problemas éticos explicitados, os dados indicam vivência de algum nível de distresse moral 41 por parte dos farmacêuticos:
“Se a gente for tentar fazer tudo conforme aquilo que está preconizado eticamente, a gente vai adoecer de vez, porque a gente não pode fazer muita coisa (…) A situação em que a gente trabalha é altamente antiética, altamente antiética!” (F16).
“Isso reflete também até na tua vontade de trabalhar, na tua produtividade, enfim… Acaba que tu perde… Tu vai se desvalorizando… Então tu diminui a vontade de fazer um trabalho que tu acha que é o correto; tem esse aspecto bem negativo tanto pro lado pessoal e mesmo profissional” (F17).
Astbury, Gallagher e O’Neill 41 , em artigo de revisão, mostram que desafios éticos na rotina dos farmacêuticos no Reino Unido são fatores para a ocorrência de distresse moral, ou seja, o sofrimento causado quando o profissional sabe qual é a ação correta do ponto de vista moral, ou seja, o sofrimento causado mas se sente incapaz ou impedido de realizá-la. Os autores afirmam que o tema é praticamente inexplorado na área, enfatizando a importância de pesquisas que identifiquem as causas do problema e seus impactos na prática farmacêutica.
Indo ao encontro dessa discussão, Crnjanski e colaboradores 42 , em pesquisa realizada na Sérvia, também identificaram problemas éticos relacionados à estrutura dos serviços e às condições de trabalho, sobretudo por conta da sobrecarga gerada pelo número insuficiente de profissionais. As autoras apontam esse e outros problemas como causa rotineira de distresse moral, corroborando os resultados do presente estudo.
Os conflitos éticos relatados pelos entrevistados aparecem também em situações descritas por estudos sobre as EqSF, principalmente no que se refere às limitações impostas pela estrutura dos serviços, pela sobrecarga de trabalho e pela demanda excessiva 1 - 5 . Tais problemas dos serviços farmacêuticos na ABS podem ser situados e compreendidos à luz do conceito de vulneração programática como categoria explicativa dos problemas éticos na ABS 43 . Para além da vulneração ocasionada pelas condições sociais vivenciadas pelos usuários, ocorre um acréscimo de vulneração em decorrência de falhas estruturais da rede de atenção à saúde e da fragmentação do cuidado. No presente estudo, fica explícito que esse tipo de vulneração não atinge apenas usuários, mas também profissionais, dada a interdependência entre sistema de saúde e contexto social.
Embora este estudo tenha investigado a realidade de um único município, presume-se que as situações identificadas ocorrem de modo mais ou menos semelhante na maior parte do país. Ademais, apesar das especificidades da assistência farmacêutica e da política pública de saúde brasileira, os dados aqui apresentados se aproximam de resultados de estudos estrangeiros, principalmente os realizados no continente europeu com farmacêuticos atuantes em farmácias comunitárias14 - 22 , 41 , 42 .
Com a ampliação de seu escopo de atuação na ABS, os farmacêuticos têm contribuído de modo significativo para o atendimento da população. Contudo, os diversos problemas que emergem de sua práxis evidenciam a complexidade da dimensão ética deste trabalho. Envolvendo questões relativas à estrutura e à gestão dos serviços, tais problemas se entrelaçam com a dimensão política do cuidado em saúde. Reconhecê-los, analisá-los e discuti-los é fundamental para qualificar a ABS. Os desafios precisam ser enfrentados com o fortalecimento da assistência farmacêutica como política pública e a defesa dos princípios de universalidade, integralidade e equidade 44 .
Os resultados da pesquisa também contribuem para a discussão acerca das deficiências na formação dos profissionais de saúde. Tendo em vista os diversos conflitos presentes no cotidiano da profissão farmacêutica, é fundamental promover o estudo da bioética, importante campo de reflexão e atuação no ensino superior.
Por fim, vez que a temática tratada ainda é pouco explorada, recomenda-se que mais estudos como este sejam realizados, colaborando para a produção de conhecimento sobre a dimensão ética da prática farmacêutica. Pode-se investigar, por exemplo, o cotidiano dos serviços de farmácia no SUS, em todos os níveis de atenção, incluindo auxiliares e técnicos, gestores e usuários, bem como demais profissionais do NASF. Para além de identificar problemas, no entanto, é importante explorar os valores morais envolvidos, a fim de compreender os fatores implicados nos conflitos éticos e na forma como são geridos.
Perfil do entrevistado
Gênero:
Idade:
Ano de conclusão da graduação:
Possui pós-graduação? Se sim, de que tipo e em que área?
Tempo de atuação no município:
Tempo de experiência na atenção básica:
Vínculo: ( ) estatutário ( ) farmacêutico-residente
Carga horária de trabalho semanal: ( ) 30 h ( ) 40 h
Local de trabalho e distribuição da carga horária (em caso de lotação em mais de uma unidade de saúde):
Questões norteadoras
1. Considerando sua rotina de trabalho e sua experiência de atuação na atenção básica, relate-me fatos, casos ou situações que envolvam dúvidas ou dificuldades para tomar decisão (ou até mesmo angústia ou outros sentimentos de desconforto) que podem se referir a suas relações com os usuários e/ou familiares; relações com a equipe de saúde; ou relações com a organização e o sistema de saúde.
2. Dentre todas estas questões já relatadas com relação ao seu cotidiano profissional, quais são as situações que você identifica como problemas éticos? (Explorar os motivos que levam a pensar desta maneira).
3. Como você costuma enfrentar ou que estratégias utiliza para resolver estes problemas?
4. Poderia me explicar um pouco sobre as influências ou possíveis impactos destes problemas para você e/ou para seu processo de trabalho?
5. E quais seriam as consequências destes problemas éticos para a qualidade da atenção à saúde?
Leandro Ribeiro Molina concebeu a pesquisa e atuou em todas as etapas. Juliara Bellina Hoffmann participou da discussão dos resultados. Mirelle Finkler contribuiu com delineamento da pesquisa e análise dos dados. Todos os autores redigiram o artigo.
Juliara Bellina Hoffmann – Doutoranda – juliara.odt@gmail.com
Mirelle Finkler – Doutora – mirelle.finkler@ufsc.br
Correspondência Leandro Ribeiro Molina – Rod. Tertuliano Brito Xavier, 688 CEP 88054-600. Florianópolis/SC, Brasil.