Resumo: O objetivo deste trabalho foi avaliar o conhecimento de médicos de unidades de terapia intensiva de Campo Grande/MS acerca dos conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia. A pesquisa, transversal e qualiquantitativa, envolveu 80 médicos que responderam a um questionário autoaplicável com perguntas fechadas e abertas, as quais visavam aferir o conhecimento do entrevistado sobre os três conceitos. A análise dos dados demonstrou que 32% dos entrevistados definiram inadequadamente eutanásia, 75% e 61,2% definiram com exatidão os conceitos de distanásia e de ortotanásia, respectivamente, e 46,2% tinham conhecimento adequado dos três termos e práticas. Notamos que o tempo de formado foi inversamente proporcional ao conhecimento dos conceitos.
Palavras chave: EutanásiaEutanásia,MorteMorte,Doente terminalDoente terminal,Unidades de terapia intensivaUnidades de terapia intensiva,Atitude frente a morteAtitude frente a morte.
PESQUISA
Finitude da vida: compreensão conceitual da eutanásia, distanásia e ortotanásia
Recepção: 29 Junho 2017
Revised document received: 5 Novembro 2018
Aprovação: 25 Abril 2019
A humanização da medicina envolve prática integral, que considera o paciente e os aspectos biopsicossociais e espirituais abrangidos pelo binômio saúde-doença. No que se refere à finitude da vida, a medicina humanizada denota, além do respeito à pessoa, maior interação entre equipe e paciente, com melhores resultados na escolha de condutas e tratamentos, de modo a promover o bem-estar 1 .
O desenvolvimento tecnológico tem possibilitado intervenções que, ao adiar a morte, provocam debates e questionamentos éticos sobre condutas que submetem o paciente a sofrimentos desnecessários e indesejáveis 1 . Diante da terminalidade, principalmente em unidades de terapia intensiva (UTI), há três caminhos possíveis: eutanásia, distanásia e ortotanásia. A escolha por um deles passa pela humanização da medicina, vez que a decisão deve considerar fatores psicossociais que, no momento de proximidade da morte, são tão ou mais importantes do que aspectos biológicos.
Distanásia é a tentativa de manter a vida a qualquer custo, com atos médicos desproporcionais que tornam a morte mais difícil, infligindo mais sofrimento ao paciente e seus familiares 2 , sem perspectiva real de recuperar a vida e o bem-estar. A eutanásia, por outro lado, é a abreviação intencional da vida a fim de aliviar ou evitar o sofrimento do enfermo cuja morte é iminente. Por fim, ortotanásia é a morte em seu processo natural e inevitável, respeitando o direito da pessoa de morrer com dignidade, amparada por cuidados paliativos.
A fim de salvaguardar o direito inviolável à vida e sua inalienabilidade, o Conselho Federal de Medicina (CFM) elaborou a Resolução 1.805/2006 3 , que assegura a dignidade do doente terminal, permitindo a suspensão de tratamentos desde que garantidos os devidos cuidados para alívio do sofrimento. Posteriormente, por meio da Resolução CFM 1.931/2009 4 , que aprova o Código de Ética Médica (CEM), o Conselho reforçou a obrigação do médico de oferecer cuidados paliativos. Embora a primeira dessas resoluções descreva e permita a prática da ortotanásia, não menciona o termo em si, assim como o CEM. Além disso, a falta de lei que regule a prática propicia divergências entre as esferas médica e legal, gerando incerteza entre os profissionais.
Percebe-se ainda carência de informação sobre essas práticas entre profissionais de saúde 5 , acarretando não apenas infrações deontológicas e jurídicas 6 , mas também desrespeito à dignidade do paciente. Com base nessa realidade e considerando a relação constante com a morte no trabalho em UTI, o propósito desta pesquisa é verificar o conhecimento de intensivistas sobre distanásia, eutanásia e ortotanásia, uma vez que compreender esses conceitos é fundamental para humanizar o atendimento e abrandar a dor e o sofrimento do enfermo 3 .
Trata-se de pesquisa primária de campo, observacional e transversal, com abordagem qualiquantitativa, realizada com médicos intensivistas de três instituições: Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, Santa Casa de Campo Grande e Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian. A pesquisa ocorreu entre julho de 2015 e novembro de 2016, com coleta de dados entre maio e agosto de 2016.
Foram incluídos na pesquisa médicos que cumpriam plantão exclusivamente na UTI e que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), excluindo-se aqueles que realizavam apenas procedimentos esporádicos no ambiente, que não desejaram participar ou não concordaram com o teor do TCLE. Ao todo, a amostra contou com 80 profissionais, considerando, por conveniência, nível de confiança de 95% e erro amostral de 5% para evitar vieses de seleção na pesquisa 7 .
Os dados foram coletados por meio de questionário autoaplicável, elaborado com base em instrumento apresentado no estudo “Impacto da Resolução CFM 1.805/06 sobre os médicos que lidam com a morte” 8 . Foram avaliados o tipo de conduta já adotada pelos profissionais diante da terminalidade da vida, coerência em relação à conceituação dos termos e percepção dos entrevistados quanto ao desfecho da conduta adotada, se favorável ou desfavorável ao paciente ou à família. As respostas, tanto objetivas como descritivas, foram divididas em quatro eixos.
O primeiro eixo colheu dados sociodemográficos: idade, gênero e tempo de formação na área médica. Nos demais eixos foram abordadas questões relacionadas a eutanásia, distanásia e ortotanásia, respectivamente. Perguntou-se aos profissionais se já haviam praticado alguma dessas condutas, solicitando-se que as definissem para que os pesquisadores posteriormente analisassem a compatibilidade das explicações com a definição científica dos conceitos.
Considerou-se que a resposta sobre o termo “eutanásia” deveria conter ao menos duas das seguintes ideias: “prática para abreviar a vida do paciente” ou “provocar a morte do paciente”, “alívio do sofrimento” e “morte sem dor”. Foram consideradas inadequadas as respostas que continham apenas uma ou nenhuma dessas noções.
Para “distanásia”, a resposta deveria conter no mínimo uma das seguintes ideias: “obstinação terapêutica”, “prolongamento do processo de morrer”, “manutenção de tratamentos ineficazes que prologam de forma dolorosa a vida biológica do paciente, sem qualidade de vida ou dignidade” e “doentes sem prognóstico”. Foram consideradas inadequadas as respostas que não continham nenhum dos termos.
Por fim, para “ortotanásia”, a resposta devia conter uma das noções: “morte correta” ou “morte no tempo certo”, “não interferência da ciência”, “morte natural sem interferência”, “cuidados paliativos que proporcionem conforto ao paciente” e “não utilização de métodos desproporcionais de prolongamento da vida”. Foram consideradas inadequadas as respostas que não continham nenhum dos termos.
A análise estatística foi feita de forma descritiva, com o software Excel 2016, versão 1701 (Compilação 7766.2060). Utilizou-se o teste qui-quadrado para estabelecer o nível de significância (5%), e o intervalo de confiança foi de 95%.
O perfil sociodemográfico da amostra é apresentado na Tabela 1 . Dos 80 participantes, 76 responderam à pergunta sobre o termo “eutanásia”, dentre os quais 49 (61,3%) apresentaram conhecimento considerado adequado e 2 (2,5%), apesar de terem declarado conhecimento, não responderam quanto à autopercepção em relação ao termo ( Figura 1 ). Sobre “distanásia”, 71 responderam, 60 (75%) deles demonstrando conhecimento adequado ( Figura 1 ). Quanto à “ortotanásia”, 63 responderam, 49 (61,3%) dos quais com conhecimento adequado ( Figura 1 ). Dos 80 entrevistados, apenas 37 (46,3%) demonstraram conhecimento adequado das três práticas.
Oito médicos (10%) afirmaram já ter praticado eutanásia, 70 (87,5%) negaram e 2 (2,5%) não responderam. Dentre os que a praticaram, 6 (75%) consideraram a decisão benéfica ao paciente ou à família, 1 (12,5%) achou que não houve impacto e 1 (12,5%) não indicou sua percepção. Nenhum deles considerou a ação prejudicial.
Quarenta e cinco entrevistados (56,3%) afirmaram já ter praticado distanásia, 32 (40%) negaram e 3 (3,7%) não responderam. Dentre os que a praticaram, 10 (22,2%) a julgaram benéfica para o paciente ou a família; 31 (68,9%), prejudicial; e 3 (6,7%) declararam não ter observado impacto. Um dos participantes (2,2%) não respondeu à pergunta sobre percepção da conduta adotada.
Cinquenta e cinco participantes (68,8%) afirmaram já ter praticado ortotanásia, 18 (22,5%) negaram e 7 (8,7%) não responderam. Dentre os que a praticaram, 49 (89,1%) a consideraram benéfica, 2 (3,6%), prejudicial, e 3 (5,5%) declararam não ter observado impacto. Um dos entrevistados (1,8%) não respondeu à pergunta sobre percepção da conduta adotada.
Dos entrevistados que praticaram eutanásia (8 médicos), distanásia (45) e ortotanásia (55), respectivamente, 2 (25%), 3 (6,7%) e 11 (20%) não definiram adequadamente a prática que declararam ter adotado ( Figura 2 ). Os dados tiveram significância estatística ( p =0,04).
Quanto à correlação com tempo de formado, definiram corretamente os conceitos 10 (62,5%) dos 16 médicos formados há menos de 4 anos; 3 (60%) dos 5 formados há 4 a 5 anos; 10 (47,6%) dos 21 formados há 5 a 10 anos; e 10 (27%) dos 37 formados há mais de 11 anos ( p =0,03).
Profissionais de UTI convivem com a terminalidade da vida diariamente, e estudos realizados neste cenário podem revelar um panorama geral sobre o assunto. No caso deste trabalho, pôde-se observar que participantes formados há mais tempo tiveram mais dificuldades para definir os conceitos de distanásia, eutanásia e ortotanásia, em resultado semelhante ao de outras pesquisas 8 , 9 . Esse fato pode ser explicado por lacunas na formação acadêmica dos médicos mais experientes, visto que esses temas só ganharam destaque nos últimos anos.
Por outro lado, o melhor desempenho dos participantes mais jovens demonstra certo avanço na formação, embora ainda faltem cursos de capacitação e atualização para que os profissionais conheçam as novas práticas relacionadas à terminalidade da vida. As lacunas sentidas pelo médico ao deparar com conflitos éticos do cotidiano 8 devem-se ao foco exclusivo da educação em aspectos biomédicos e técnicos, sem uma perspectiva humanística.
Em pesquisa realizada nos hospitais da Faculdade de Medicina de Marília 8 , a maioria dos médicos afirmou ter conhecimento adequado sobre eutanásia e distanásia, tal como ocorreu em estudo com enfermeiros da UTI de um grande hospital de São Paulo 10 . Quanto à ortotanásia, no estudo de Vasconcelos, Imamura e Villar 8 quase todos os participantes afirmaram conhecer o conceito. Nesta investigação, todavia, o número de profissionais com conhecimento adequado foi menor do que nessas duas pesquisas.
Ao revisar a bibliografia, nota-se que são raros os estudos que aferem o conhecimento declarado por meio de checagem crítica. Esse cuidado metodológico é importante, já que, como demonstra esta pesquisa, pode haver divergência entre a percepção do profissional e a realidade. A discrepância fica clara especialmente no conceito de eutanásia, que 76 intensivistas afirmaram conhecer, embora mais da metade das definições tenha sido equivocada. A definição clara de conceitos é fundamental à boa prática médica, uma vez que a percepção errônea sobre o que é determinada conduta pode interferir em sua aplicação, prejudicando o paciente. Superestimar os próprios conhecimentos acaba, também, por desestimular a busca de novas informações e aperfeiçoamento 5 .
O desconhecimento de termos da tanatologia demonstra que ainda há muitos médicos que vivenciam a terminalidade da vida diariamente sem informações fundamentais para tomar decisões que evitem distorções e falhas na comunicação. O resultado é desconforto e sofrimento não só para pacientes e familiares, mas também para os próprios profissionais.
No que diz respeito à prevalência das práticas entre os entrevistados, a ortotanásia foi a mais frequente, seguida pela distanásia, corroborando o estudo de Vasconcelos, Imamura e Villar 8 . Com relação à ortotanásia, sua maior frequência era esperada, visto que se trata de procedimento considerado adequado pela classe médica e pelo CFM, ainda que sua distinção em relação à eutanásia e à distanásia em alguns casos seja imprecisa.
Quanto à distanásia, infere-se que sua ocorrência se deve a problemas de comunicação entre médico e paciente/família, vez que a falta de esclarecimento quanto a prognósticos pode gerar esperança infundada de melhora 6 . Essa expectativa pode trazer mais dor e sofrimento, com métodos terapêuticos inúteis e uso inapropriado dos escassos recursos do sistema de saúde. Por fim, preocupa o fato de oito médicos declararem já ter realizado eutanásia, prática caracterizada como crime pela legislação brasileira 6 .
A resposta dos médicos quanto a ter ou não realizado um dos três procedimentos deve ser analisada criticamente, uma vez que, como demonstrado, um número expressivo de profissionais mostrou desconhecer os conceitos. É possível, portanto, que muitos adotem condutas sem o devido esclarecimento, equivocando-se ao pensar que estão agindo de forma ética. Pode acontecer, por exemplo, de um médico acreditar ter adotado a ortotanásia, quando, por não saber ao certo os limites do conceito, tenha praticado eutanásia.
Sobre o impacto das condutas adotadas, os dados demonstram que, segundo a percepção dos médicos, a distanásia tende a gerar desfechos negativos, enquanto a ortotanásia beneficia pacientes e familiares ( p =0,04). O resultado era esperado, pois, como demonstra a literatura 5 , a ortotanásia é a prática mais adequada para uma assistência humana, que respeite a dignidade do paciente, oferecendo-lhe as melhores condições.
Por fim, destaca-se que tão importante quanto a compreensão de termos e conceitos é a boa relação com o paciente e sua família. Mantê-los informados é fundamental, pois o esclarecimento traz conforto e confiança, minimizando o sofrimento inerente à morte.
Menos da metade dos participantes da pesquisa demonstrou conhecer de modo satisfatório os conceitos de distanásia, ortotanásia e eutanásia – esta última, a mais frequentemente definida de forma equivocada. O quadro é preocupante, visto que os conhecimentos sobre uma conduta determinam sua execução na prática. Para reverter essa situação, é necessário investir no treinamento dos profissionais que lidam cotidianamente com a terminalidade da vida. Outro problema detectado foi o grande número de intensivistas que admitem ter praticado distanásia – mais da metade dos entrevistados. Dentre estes, a maioria considerou a prática desfavorável, por prolongar o sofrimento do paciente e de sua família sem trazer benefícios, acarretando ainda prejuízos materiais.
Um resultado significativo foi a relação entre experiência do profissional e conhecimento dos conceitos. Os médicos formados há mais tempo demonstraram-se menos aptos a definir o que é eutanásia, distanásia e ortotanásia, enquanto os que concluíram a graduação mais recentemente tiveram melhor desempenho. O dado, embora evidencie os avanços da formação nos últimos anos, indica que ainda é preciso ampliar a abordagem da tanatologia na grade curricular de cursos de medicina, incluindo discussões sobre biodireito e bioética. Da mesma forma, para atualizar os profissionais já formados, é necessário desenvolver programas de formação continuada.
Identificação
Idade: ( ) menos de 30 anos ( ) de 30 a 40 anos ( ) mais de 40 anos
Sexo: ( ) masculino ( ) feminino
Tempo de formação médica: ( ) menos de 4 anos ( ) de 4 a 5 anos ( ) de 6 a 10 anos ( ) 11 anos ou mais
Tema: Eutanásia
1. Você tem conhecimento sobre eutanásia?
( ) Sim
( ) Não
2. Descreva o seu conhecimento acerca da definição de eutanásia.
___________________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________________
3. Você já praticou eutanásia?
( ) Sim
( ) Não
Se sim, vá para a próxima questão. Se não, vá para questão 5.
4. Você identificou algum impacto dessa prática no paciente ou na família?
( ) Sim, foi favorável
( ) Sim, foi desfavorável
( ) Não
Tema: Distanásia
5. Você tem conhecimento sobre distanásia?
( ) Sim
( ) Não
6. Descreva o seu conhecimento acerca da definição de distanásia.
___________________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________________
7. Você já praticou distanásia?
( ) Sim
( ) Não
Se sim, vá para a próxima questão. Se não, vá para questão 9.
8. Você identificou algum impacto dessa prática no paciente ou na família?
( ) Sim, foi favorável
( ) Sim, foi desfavorável
( ) Não
Tema: Ortotanásia
9. Você tem conhecimento sobre ortotanásia?
( ) Sim
( ) Não
10. Descreva o seu conhecimento acerca da definição de ortotanásia.
___________________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________________
11. Você já praticou ortotanásia?
( ) Sim
( ) Não
Se sim, vá para a próxima questão. Se não, você terminou o questionário!
12. Você identificou algum impacto dessa prática no paciente ou na família?
( ) Sim, foi favorável
( ) Sim, foi desfavorável
( ) Não
Todos os autores participaram ativamente da discussão do tema e da elaboração e revisão do manuscrito.
Ana Letícia Cavenaghi da Silva – Graduanda – leticia.cavenaghi@gmail.com
Andressa Freire Barboza – Graduanda – andressafreireb@gmail.com
Bianca Ferreira Bazzo – Graduanda – biancafbazzo@live.com
Caroline Pereira Martins – Graduanda – caroline3pmartins@gmail.com
Décio Iandoli Júnior – Doutor – iandolijr@gmail.com
Leinyara da Silva Brito Benites – Graduanda – leinysbb@gmail.com
Lillian Batista Terceros – Graduanda – lillian_rbtg@hotmail.com
Ricardo dos Santos Gonçalves Nantes – Graduado – ric.nantes@gmail.com
Correspondência Carlos Wilson de Alencar Cano – Rua Doutor Zerbini, 1.011, casa 21, Chácara Cachoeira CEP 79040-040. Campo Grande/MS, Brasil.