Resumo: As vulnerabilidades intrínsecas à migração despertam o olhar bioético no que concerne às iniquidades em saúde, que muitas vezes comprometem o acesso a serviços sanitários. Com isso, esta pesquisa avalia o acesso à saúde de migrantes haitianos, buscando reconhecer situações que geram maior vulnerabilidade, com vistas ao aperfeiçoamento de políticas públicas. O estudo utilizou abordagem qualitativa, coletando dados por meio de grupo focal formado por haitianos de ambos os sexos. Conclui-se que é preciso sensibilizar profissionais de saúde em relação a diferenças culturais, combater a xenofobia e o racismo e conscientizar quanto à vulnerabilidade de migrantes e refugiados. A partir disso, será possível repensar políticas e ações em saúde de modo a alcançar a universalidade, a integralidade e a equidade fomentadas pelo Sistema Único de Saúde.
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PESQUISA
Acesso de migrantes haitianos à saúde pública: uma questão bioética
Recepção: 12 Julho 2018
Revised document received: 2 Dezembro 2019
Aprovação: 12 Janeiro 2020
O acesso universal ao Sistema Único de Saúde (SUS) é garantido pela Constituição Federal de 1988, que estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado1 . Imigrantes e refugiados estão incluídos nessa assistência, amparados pelo artigo 5 da Carta Magna, segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade2 . Entretanto, entre as diversas iniquidades no campo da saúde, a do acesso a tratamento básico e especializado é uma das mais acentuadas.
Os problemas enfrentados por populações mais vulneráveis – como pobreza, falta de água potável e saneamento, dificuldade de acesso à educação e moradias precárias – são intensificados na saúde. Há falta de profissionais qualificados, má distribuição de recursos e desigualdade na disposição geográfica dos estabelecimentos. Além disso, políticas públicas tendem a priorizar a atenção especializada em detrimento da atenção primária, o que pode agravar iniquidades.
A perspectiva de saúde como cura de doenças não ajuda a solucionar vulnerabilidades de populações carentes. Mais eficaz é a atenção primária voltada a prevenção e tratamento com foco no indivíduo e na comunidade, considerando aspectos culturais, familiares e ambientais. Essa estratégia é fundamental para mudar toda a sociedade, resgatando o cuidado nas relações humanas e construindo novos vínculos sociais, pautados no respeito, na ética e na solidariedade 3 .
Migrantes e refugiados necessitam de atenção especial. Diferenças culturais, dificuldades com o idioma, falta de documentação e histórico médico, bem como racismo e xenofobia, comprometem o acesso à saúde. Essas vulnerabilidades despertam o olhar da bioética, pois se relacionam com determinantes sociais e aspectos estruturais, sociais e culturais complexos 4 .
Assim, esta pesquisa avalia a percepção de imigrantes haitianos em Curitiba/PR a respeito do acesso à saúde. Além disso, com base na fala dos participantes, o trabalho busca apontar quais situações geram maior vulnerabilidade, com vistas a propor políticas públicas que garantam os direitos dessa parte da população.
Os dados de pesquisa foram coletados em grupo focal com 10 haitianos adultos, de ambos os sexos, residentes na cidade de Curitiba/PR. Os participantes foram selecionados em aulas de português da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e se reuniram em ambiente apropriado na própria instituição. Todos foram informados sobre as características do estudo e assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.
As entrevistas foram conduzidas por duas moderadoras treinadas, da área de saúde, vinculadas a programas de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Suas funções foram introduzir a discussão e mantê-la, enfatizar que não há respostas certas ou erradas, observar os participantes, encorajando todos a falar, identificar oportunidades nas falas, construir relações com os informantes para aprofundar comentários considerados relevantes individualmente e observar a comunicação não verbal e o ritmo próprio de cada um no tempo previsto para debate 5 .
As falas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas, interpretadas e categorizadas. A análise de conteúdo fundamentada em Bardin 6 foi utilizada como referência, e os dados foram tratados no software Atlas.ti.
A partir da fala dos participantes, foram detectados os principais obstáculos ao acesso à saúde. Essas vulnerabilidades foram organizadas em categorias, segundo o método da análise de conteúdo. São elas: barreiras com o idioma; medicina tradicional haitiana; barreiras com o horário de atendimento; barreiras com a demora no atendimento; falta/valor dos medicamentos; barreiras pela territorialização; barreiras por atestado médico; barreiras pela liberação do trabalho; e barreiras em emergências.
A Tabela 1 apresenta as porcentagens relativas à frequência com que as vulnerabilidades são relatadas. O principal obstáculo é o idioma (25%), seguido da medicina tradicional haitiana (19%) e de problemas com horários (14%) e demora no atendimento (11%). Foram relatadas ainda falta de medicamentos (11%); dificuldades de entender o sistema de territorialização do SUS (8%) e de obter liberação do trabalho (3%); e não atendimento em serviço de emergência (3%).
A dificuldade com o idioma, principal vulnerabilidade, é relatada em outros trabalhos 7 , 8 . A incompreensão limita o atendimento, gerando dificuldades também para profissionais, como se percebe nesta fala: “ Eles não conseguiam falar o que você quer (…) . O atendimento não conseguia falar com você ” (Migrante A). Diante do problema, a presença de intérprete é sugerida pelos migrantes: “ Os postos de saúde precisam de um tradutor lá ajudando ” (Migrante B); “ esse hospital consegue ter uma ou duas pessoas que consigam falar outra língua para ajudar ” (Migrante A).
Na falta de intérprete, os próprios usuários desenvolvem estratégias: “ O costume, quando um haitiano vai ao hospital, ele leva um amigo que fala mais ou menos, não vai sozinho ” (Migrante C); “ eu lembro que quando eu cheguei lá no Brasil eu fui lá no hospital e espero um amigo meu que falava ” (Migrante D). Sem entender a língua, os imigrantes se sentem impotentes: “ É difícil ” (Migrante B); “ eu não falava ainda português, eu falava espanhol, daí eu tentei… O médico não entendeu ” (Migrante A); “ para explicar o que eu tinha estava bem complicado ” (Migrante E).
Segundo Silva e Ramos 8 , na relação profissional-paciente, a incompreensão do idioma gera angústia em ambas as partes. Esse sentimento é ainda mais intenso quando o médico percebe que, por esse motivo, não há adesão ao tratamento proposto. O obstáculo da língua, portanto, não é exclusivo do usuário.
A segunda barreira mais citada pelos participantes é o conflito com a medicina tradicional haitiana – arte de curar passada de geração em geração que mescla conhecimentos indígenas locais e de escravos africanos. O uso de ervas e magia é prática conhecida pela maioria da população, assim como rituais espirituais do vodu, realizados por curandeiros que invocam espíritos para tratar a saúde 9 . Segundo Santos 10 , no Haiti algumas doenças estão associadas à feitiçaria e são consideradas imunes à medicina fundamentada pelo método científico.
O conflito aqui surge do etnocentrismo, que não reconhece outras culturas e ignora o valor universal da saúde, reportando-se ao mesmo tempo a particularidades históricas e culturais. Não se justifica, contudo, a pretensão de que os conceitos de determinada sociedade sejam os únicos válidos 11 .
Além disso, a falta de acesso ao serviço público haitiano colabora para que a assistência não faça parte da rotina da população. Nesse contexto, terapeutas espirituais são mais acessíveis ou o único meio de tentar restabelecer a saúde. Os participantes relatam: “ todo mundo, na verdade, (…) acho que todo haitiano sabe disso… a gente faz chá ” (Migrante D); “ se alguém tem uma gripe (…) você não quer ir no hospital, faz um chá de gengibre… ” (Migrante A); “tem outras coisas que eu comprei quando eu morava no Haiti e minha mãe fazia para mim, de Aloe vera” (Migrante D).
Outra barreira relatada pelos imigrantes é o horário de funcionamentos das unidades básicas, problema enfrentado por todos os usuários do sistema. As longas jornadas de trabalho e a distância do domicílio impedem o atendimento: “ Perto da minha casa, acho que abria às sete ou seis e meia, mais ou menos, [e] começa a fila ” (Migrante F); “ o horário não ajuda, porque na semana você trabalha… O tempo em que você chega lá, já está fechado ” (Migrante C); “ às vezes eu tenho vontade de ir lá na saúde, mas pelo horário está fechado ” (Migrante G); “ cinco horas ou seis horas eles já fecharam e não atendem ninguém ” (Migrante A).
Os participantes relatam ainda dificuldades com a distribuição de atendimentos conforme o critério da territorialização, pouco compreendido: “ não vão aceitar (…), é o posto perto da sua casa que eles querem ” (Migrante G); “ tem problema, porque você tá fora da área ” (Migrante H); “ meu CEP começou com uma validade para ser de Uberaba [bairro de Curitiba]” (Migrante I).
Alguns imigrantes também referem dificuldade em conseguir atestado médico para justificar falta ou saída antecipada do trabalho. Esse é obstáculo importante, visto que, sobretudo para essa população, o emprego é essencial e difícil de ser encontrado: “ agora os hospitais que funcionam com SUS não dão mais atestado, sabe, é muito difícil” (Migrante J); “ é muito difícil para conseguir um atestado, mesmo que você vá às vezes… [Só] se você estiver muito, muito doente ” (Migrante I).
Outra barreira mencionada é a falta de medicamento. Embora o problema não seja exclusivo dos migrantes estrangeiros, alguns participantes o percebem como relacionado à sua condição: “ Tem medicamento. Agora, quando eu fui não tinha, só pra mim não tinha ” (Migrante I); “ cada vez que eu vou no hospital, sempre compro, porque quando eu vou para aplicar nos postos de saúde, não tem, nunca tem pra nós ” (Migrante F); “ é mais fácil conseguir medicamento na farmácia do que no posto de saúde ” (Migrante C).
O debate sobre acesso e políticas voltadas a grupos específicos procura efetivar o ideal de equidade do sistema de saúde – um grande desafio, já que cada segmento social tem diferentes demandas, nem sempre percebidas pelo poder público 12 . A fragilidade social e econômica desencadeada pela migração, principalmente na chegada ao país de destino, leva imigrantes a viver em moradias precárias e a se submeter a trabalhos insalubres e mal remunerados 7 . A ausência de políticas direcionadas a eles e a falta de estatísticas podem invisibilizá-los como grupo, agravando ainda mais sua vulnerabilidade 13 .
Segundo Sánchez e Bertolozzi, o conceito de vulnerabilidade (…) supera o caráter individualizante e probabilístico do clássico conceito de “risco” , sendo, portanto, um conjunto de aspectos mais amplos, extensivo aos aspectos coletivos, contextuais, que levam à susceptibilidade a doenças ou agravos , incluindo nesse conceito a disponibilidade ou a carência de recursos destinados à proteção das pessoas14 . Para combatê-la, o princípio da equidade é extremamente importante.
Mais abrangente que a igualdade, a equidade em saúde não se restringe a aspectos sociais diretamente relacionados à economia, mas inclui aspectos culturais, religiosos, históricos e étnicos. Todos esses fatores condicionam a percepção, a compreensão do mundo e a forma de lidar com o adoecimento 15 .
Tratar o doente e não a doença é compromisso inerente à valorização da dignidade humana, preconizada pela bioética. Dos princípios estabelecidos pelo SUS, o da integralidade é um dos mais desafiadores, e não pode estar desvinculado da universalização e da equidade 16 . É ele, afinal, que concretiza estes outros dois princípios, para além do mero cumprimento das normas.
A fim de atingir a integralidade, um dos objetivos da Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa no SUS 17 é promover a inclusão social de populações específicas, visando à equidade do direito à saúde. Essa estratégia de gestão participativa é transversal, a fim de possibilitar a formulação e deliberação de políticas por profissionais de saúde e comunidade. A abordagem, portanto, é compatível com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos18 , que em seu artigo 8º determina a proteção de grupos vulneráveis e o respeito à sua integridade pessoal. No entanto, na prática, faltam ações específicas para migrantes internacionais.
As vulnerabilidades em saúde, como visto, não se limitam a indivíduos, mas abrangem grupos predispostos a desenvolver certas enfermidades por falta de proteção 19 . Essas vulnerabilidades podem ser individuais, sociais ou institucionais e, portanto, é preciso perguntar: “Vulnerabilidade de quem?”, “a quê?”, e “em que condições?” 20 .
A vulnerabilidade individual limita a autonomia do sujeito e sua capacidade de transformar hábitos que o expõem a enfermidades. A social está relacionada ao acesso e à apreensão de informações. Já a institucional diz respeito a programas de prevenção e cuidado em saúde e ao modo como estes são direcionados à população 20 . No caso dos migrantes internacionais e refugiados, o aspecto social é de extrema importância, pois as vulnerabilidades do sistema público brasileiro são vividas com ainda mais intensidade por esse grupo.
A Lei 13.445/2017 21 representou grande avanço ao revogar o ultrapassado Estatuto dos Estrangeiros, transferindo o foco da segurança nacional para a garantia de direitos. Em seu artigo 3º, que trata dos princípios e das diretrizes da política migratória brasileira, destacam-se a não criminalização e não discriminação da migração. No artigo 4º são assegurados ao migrante direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos , bem como acesso a serviços públicos de saúde e de assistência (…) , sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória21 .
A maioria dos haitianos que chega ao Brasil vem de situação social degradada, que colocou grande parte da população daquele país na extrema miséria. Contribuíram para esse quadro a crise política prolongada em que vive o país, mudanças climáticas e o terremoto devastador de 2010, que matou mais de 200 mil pessoas. Desta forma, as saídas possíveis incluem, naturalmente, a emigração, e a permanência dos haitianos em solo brasileiro se justifica por razões humanitárias 22 .
Segundo os migrantes e refugiados haitianos, não compreender o idioma é a maior dificuldade para ter acesso a saúde. No entanto, há ainda outras barreiras, econômicas e culturais, que geram vulnerabilidade. Identificá-las é importante para renovar as práticas de saúde coletiva com base na consciência de que o cuidado às pessoas é responsabilidade de toda a sociedade. Para isso, é preciso sensibilizar profissionais de saúde quanto a diferenças culturais, conscientizá-los quanto à situação dos migrantes e combater a xenofobia e o racismo. Só assim será possível efetivar os ideais de universalidade, integralidade e equidade do SUS.
Anna Silvia Penteado Setti da Rocha desenhou o estudo, realizou a pesquisa bibliográfica, analisou dados e redigiu o artigo. Thiago Rocha da Cunha, Sandra Guiotoku e Simone Tetu Moysés colaboraram com o desenho do estudo e revisaram o manuscrito. Sandra Guiotoku contribuiu também na análise de dados.
Thiago Rocha da Cunha – PhD – caixadothiago@gmail.com
Sandra Guiotoku – Doutoranda – skguiotoku@yahoo.com.br
Simone Tetu Moysés – Doutora – simone.moyses@pucpr.br
Correspondência Anna Silvia Penteado Setti da Rocha – Av. Sete de Setembro, 3.165, Rebouças CEP 80230-901. Curitiba/PR, Brasil.