EDITORIAL
Bioética: bússola para guiar nosso caminho
Bioethics: a compass to guide our path
Bioética: una brújula para guiar nuestro camino
Iniciamos esta edição com o tema que tem dominado as discussões sobre saúde no mundo: a tomada de decisão durante a pandemia de covid-19. As condições impostas pelo aumento da demanda por serviços de saúde e o ainda vasto desconhecimento acerca dessa nova doença trazem à prática clínica inevitáveis dilemas. Ter de escolher quem será priorizado em unidades de terapia intensiva, dada a escassez de leitos, ainda que apoiados por protocolos e resoluções, gera certa intranquilidade, na incerteza de saber se agimos corretamente ou não. Sejam as decisões tomadas com base na deontologia ou no utilitarismo, por exemplo, sabemos que ambos os caminhos têm limitações e terão impacto profundo na sociedade. Exatamente por isso, a bioética segue como caminho seguro e útil para quem está na linha de frente.
Os princípios éticos serão nossa bússola em relação às melhores decisões, que resguardem os direitos e a dignidade dos doentes, principalmente os mais vulneráveis 1 , 2 . De fato, se a ética hipocrática continua essencial para a relação clínica ao afirmar o primado da plena dedicação dos médicos a seus pacientes, outros valores, como justiça, integridade e respeito pela autonomia pessoal, são também fundamentais. Torna-se então necessário, na perspectiva pós-moderna de Beauchamp e Childress 1 , que o altruísmo e a solidariedade, que sempre caracterizaram a medicina, evoluam para nova aliança terapêutica respeitando a autodeterminação individual.
A integridade científica de pesquisas sobre covid-19 também será discutida, partindo do dramático cenário de pressões na comunidade científica para produzir conhecimento e obter, de forma imediata, tratamentos e soluções para o manejo da patologia, ainda pouco conhecida. Neste caminho, em que devem prevalecer a ética e a seriedade, circulam conflitos de interesse que podem invalidar pesquisas e trabalhos científicos se não forem aplicados critérios éticos rigorosos para proteger a vida e avaliar a vulnerabilidade dos participantes.
De acordo com Santos e Perez 3 , estes questionamentos, relacionados a agências de fomento, universidades, publicações científicas, pesquisadores, indústria farmacêutica e governos, têm sido debatidos há algum tempo. Para Faria 4 , a proximidade da ciência com a indústria farmacêutica e pressões políticas podem interferir no processo de investigação. Exemplo disso foi a questão envolvendo The Lancet , um dos mais importantes periódicos científicos, que entre suas muitas publicações teve que se retratar e remover um artigo de sua coleção 4 .
No contexto da pandemia de covid-19, o dever de tratar torna-se questão complexa. De acordo com Carvalho e Aguiar 5 , os médicos atendem os pacientes, mas surgem novos dilemas: a falta ou insuficiência de equipamento de proteção individual para exercer o trabalho geram perigo de contaminação para profissionais e seus familiares. O estresse gerado pela escassez de recursos é ainda intensificado pelo testemunho de inúmeras mortes de pacientes e colegas. Normalmente, o médico aceita os riscos impostos a seu trabalho, mas tais riscos podem interferir na questão da saúde pública.
Entre outros temas abordados nesta edição, são discutidos aspectos legais e éticos de cirurgias de feminização facial em transexuais. De acordo com Silva Junior 6 , tais procedimentos têm se tornado bastante populares entre travestis e mulheres transexuais, dado que diminuem o estigma e auxiliam a integração social.
A questão ambiental é também abordada neste fascículo. Para Fischer e colaboradores 7 , a aceleração do desenvolvimento tecnológico alterou profundamente a ecologia global, exigindo mudanças no padrão ético das relações humanas com a natureza, de forma a possibilitar a sobrevivência de nossa espécie.
Os artigos “Eutanásia sob a perspectiva da bioética e clínica ampliada” e “Potência spinoziana: resistência ao controle sobre o modo de morrer” tratam da terminalidade da vida e da autonomia dos pacientes nesse contexto. As resoluções do Conselho Federal de Medicina 1.805/2006 8 e 1.995/2012 9 , além do Código de Ética Médica 10 , dispõem sobre o tema, instruindo médicos acerca do delicado processo de morte.
Este exemplar também trata do vínculo que se estabelece na relação médico-paciente, explicitado na confiança e nos aspectos deontológicos e reflexivos dessa interação. Para Cassell 11 , a tarefa da medicina no século XXI será a descoberta da pessoa, isto é, verificar as origens da doença e do sofrimento e, a partir deste conhecimento, desenvolver métodos para aliviar a dor, desnudando o poder do próprio indivíduo.
Na perspectiva ricoeuriana, a relação contratual médica envolve diversos paradoxos: a pessoa humana não é objeto, mas seu corpo é observável como natureza física; embora a medicina não seja atividade mercantilista, tem preço e custos para a sociedade; e apesar de o sofrimento ser privado, a saúde é pública. Na função reflexiva do juízo deontológico, cada sociedade tem sua forma de integrar o sofrimento e a aceitação da mortalidade na ideia que se faz do que é felicidade 12 .
Finalmente, no artigo “Secularismo, pós-modernidade e justiça na assistência à saúde em Engelhardt” será discutida a dificuldade do projeto filosófico moderno e da pluralidade e tolerância no convívio da área de saúde. Segundo Madrid 13 , em suas propostas Engelhardt prevê uma ética global, que aceite a diversidade e o multiculturalismo. Libertário, Engelhardt 14 também questiona o dever do Estado na assistência à saúde, no que concerne à questão de justiça e equidade na alocação de recursos.
Estes e outros interessantes temas e artigos de pesquisa estão à disposição de nossos leitores. Aproveitem uma excelente leitura!
Os editores
Rui Nunes – Doutor – ruinunes@med.up.pt