Resumo: O surgimento da covid-19 levou a comunidade científica a empreender muitas pesquisas para conter a doença. Em seis meses de pandemia, inúmeros artigos foram publicados, mesmo sem avaliação por pares, o que coloca em xeque sua integridade. Diante desse problema, com base na literatura e na legislação pertinente, este artigo se propõe a analisar o impacto ético e bioético da urgência da pesquisa e identificar a vulnerabilidade dos indivíduos em tempos de pandemia. Conclui-se que a integridade ética e a observância dos princípios bioéticos nas pesquisas clínicas são centrais, evidenciando que, apesar da necessidade de agilizar os processos de investigação, todas as etapas devem ser cumpridas, e a vulnerabilidade dos participantes deve ser considerada pela ótica da bioética de proteção.
Palavras chave: BioéticaBioética,Revisão de integridade científicaRevisão de integridade científica,Infecções por coronavirusInfecções por coronavirus,Vulnerabilidade em saúdeVulnerabilidade em saúde.
Abstract: The emergence of Covid-19 has led the scientific community to undertake much research to contain the disease. In six months of pandemic, numerous articles were published, even without peer review, which puts their integrity under scrutiny. In view of this problem and based on the literature and legislation, this article analyzes the ethical and bioethical impacts of the urgency of research and to identify the vulnerability of individuals in a pandemic. We conclude that ethical integrity and the observance of bioethical principles in clinical research are essential, regardless of the need to speed up research in this case, considering the scientific method and the vulnerability of those involved, based on the bioethics of protection.
Keywords: Bioethics, Scientific integrity review, Coronavirus infections, Health vulnerability.
Resumen: La aparición de la covid-19 ha llevado la comunidad científica a emprender muchas investigaciones para contener la enfermedad. En seis meses de pandemia, se han publicado numerosos artículos, incluso sin revisión por pares, lo que pone en jaque su integridad. Ante esta problemática, a partir de la literatura y la legislación pertinente, este artículo tiene como objetivo analizar el impacto ético y bioético de la urgencia de la investigación e identificar la vulnerabilidad de las personas en tiempos de pandemia. Se concluye que la integridad ética y la observancia de los principios bioéticos son centrales en la investigación clínica, y que, a pesar de la necesidad de agilizar los procesos de investigación, se deben cumplir todas las etapas. Además, se debe considerar la vulnerabilidad de los participantes desde la perspectiva de la bioética de protección.
Palabras clave: Bioética, Revisión de integridad científica, Infecciones por coronavirus, Vulnerabilidad en salud.
ATUALIZAÇÃO
Bioética e integridade científica nas pesquisas clínicas sobre covid-19
Bioethics and scientific integrity in clinical research on Covid-19
Bioética e integridad científica en la investigación clínica sobre covid-19
Recepção: 3 Junho 2020
Revised document received: 13 Julho 2020
Aprovação: 20 Julho 2020
Doenças sempre ameaçaram a humanidade. Há séculos seres humanos buscam compreender suas causas, seu processo de transmissão e prevenção, visando estabelecer tratamentos e, principalmente, curá-las, consolidando o processo empírico atual. Hoje, reconhece-se que a pesquisa deve seguir o método científico (construir hipóteses, delinear experimentos, analisar dados e comunicar resultados 1 ), além de se adequar aos princípios éticos e bioéticos, para que seus resultados sejam validados. No entanto, mesmo após séculos de descobertas, a natureza constantemente surpreende com novos vírus zoonóticos letais.
Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou emergência de saúde pública internacional em virtude do alastramento da infecção humana causada pelo novo coronavírus 2 (variante covid-19), ocasionada pelo Sars-CoV-2. O vírus foi identificado pela primeira vez em Wuhan, na província de Hubei, na China, no início de dezembro de 2019, e em 11 de março de 2020 a OMS declarou pandemia 3 .
Em razão deste novo cenário, a comunidade científica, governos e empresas precisaram adotar medidas emergenciais para acelerar investigações que busquem soluções para conter a doença. Em seis meses de pandemia, inúmeros artigos foram publicados, mesmo sem avaliação por pares, o que coloca em xeque sua integridade. Diante desse problema, este artigo se propõe a analisar, com base na literatura e na legislação concernente ao tema, o impacto ético e bioético dos estudos realizados em caráter de urgência e identificar a vulnerabilidade dos indivíduos em tempos de pandemia.
Pesquisas clínicas atualmente se organizam em torno do processo científico (idealização, execução e divulgação dos resultados) baseado na valorização da pessoa humana e proteção dos direitos fundamentais. Nesse sentido, esse tipo de investigação foi estruturado de forma a salvaguardar, por meio de regulamentações e instituições, o respeito a padrões éticos rigorosos, tanto nacionais quanto internacionais, para garantir que indivíduos participantes não fiquem expostos a riscos, além de assegurar que dados gerados decorrentes da pesquisa sejam válidos e precisos4 . Para entender esse processo de averiguação ética e de integridade científica, antes é preciso definir o conceito de pesquisa clínica e caracterizar suas fases, bem como normas e agentes envolvidos.
De acordo com Wong e Schulman, a pesquisa clínica é aquela que envolve diretamente uma pessoa ou grupo de pessoas ou material de origem humana (como tecido ou espécimes, ou cognição), juntamente com um pesquisador, que interage diretamente com participantes humanos ou coleta informações privadas identificáveis5 . Ela pode focar o paciente, com estudos epidemiológicos e comportamentais ou desfechos e serviços de saúde. As investigações centradas no paciente tratam de doenças, intervenções terapêuticas, ensaios clínicos e desenvolvimento de biotecnologias, e seriam a forma mais vulnerável de exercício experimental, uma vez que se baseiam em sujeitos de pesquisa humanos.
Ao tratar da experimentação clínica, Bigelow aduz que o estudo clínico é uma tentativa de aprender mais sobre uma doença e suas manifestações, causas ou desfechos6 . Essas pesquisas podem ser pequenas, descrevendo apenas alguns casos interessantes, ou podem incluir milhares de pacientes, envolvendo a criação de bancos de dados e métodos estatísticos mais sofisticados. Estudos retrospectivos coletam e analisam informações de eventos passados, e os prospectivos identificam uma população de participantes (coorte) e a acompanham por determinado período 1 .
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) define pesquisa clínica como estudos realizados com humanos para medir os parâmetros de segurança e eficácia de novos medicamentos, sendo essencial [sic] para a chegada de novas alternativas terapêuticas no mercado7 . Nesse caso, as pesquisas são executadas em fases consecutivas. A inicial é denominada “pré-clínica”, realizada em laboratórios e animais de experimentação, e nela são analisados os aspectos de segurança antes de aplicar a droga em seres humanos. Posteriormente, as pesquisas passam para a fase clínica, composta por quatro etapas 8 .
Inicialmente, testa-se o medicamento pela primeira vez em seres humanos, geralmente em indivíduos saudáveis. São avaliadas diferentes doses e vias de administração e realizam-se testes de interação com outras drogas para estabelecer uma evolução preliminar de segurança e perfil farmacocinético. Cerca de 20 a 100 indivíduos participam dessa fase.
A segunda etapa (estudo terapêutico piloto) corresponde aos primeiros estudos controlados, em que indivíduos que têm a doença ou condição estudada são testados com o objetivo de começar a avaliar a eficácia do novo medicamento ou procedimento, bem como confirmar a segurança, biodisponibilidade e bioequivalência de diferentes formulações 8 . Essa fase conta com cerca de 100 a 300 participantes. Geralmente, diferentes dosagens e outras indicações do medicamento também são avaliadas 9 .
Depois de concluído o estudo-piloto, na terceira etapa, grandes estudos, multinacionais e multicêntricos, acompanham de 300 a 3 mil pacientes voluntários 9 por mais tempo. Normalmente, nessa fase se compara o procedimento estudado a uma terapia-padrão, ou seja, medicamentos ou tratamentos já aprovados e disponíveis no mercado, a fim de verificar a eficácia, tolerabilidade e segurança do novo fármaco. O voluntário poderá receber o novo tratamento, o padrão ou placebo. Trata-se de estudo randomizado 8 que visa comparar terapias e estabelecer a superioridade de uma sobre a outra.
Por fim, a quarta etapa segue a aprovação do medicamento ou procedimento e sua disponibilização no mercado. São realizados testes de acompanhamento para levantar informações adicionais sobre segurança e eficácia, definindo também efeitos colaterais desconhecidos ou incompletamente qualificados e fatores de risco associados. Esta última fase é conhecida como “farmacovigilância” ou “pós-comercialização” e deve seguir as mesmas normas éticas e científicas aplicadas às fases anteriores 8 . A fase pré-clínica tem duração indeterminada; a primeira fase dura alguns meses; a segunda pode chegar a dois anos; e a terceira leva de um a quatro anos 9 .
Atualmente, todo o processo de pesquisa clínica é regido por normas que preveem deveres éticos. No Brasil, a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 466/2012 10 é o principal diploma regulamentador, e tem como diretrizes o respeito à dignidade humana e a proteção dos participantes de estudos. Seu objetivo é assegurar direitos e deveres desses indivíduos, da comunidade científica e do Estado 8 . Os princípios que a fundamentam provêm de diversos tratados internacionais de direitos humanos, códigos e declarações 11 - 18 .
A Resolução CNS 466/2012 10 determina que toda pesquisa envolvendo seres humanos deve ser apreciada por Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), que por sua vez serão coordenados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Assim, identificam-se as entidades ligadas a aspectos éticos e regulatórios da pesquisa clínica no Brasil: Anvisa, Conep e CEP 8 .
A função da Anvisa no âmbito da pesquisa clínica é analisar e aprovar, para cada protocolo, o Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento e o Dossiê Específico de Ensaio Clínico. A agência controla a importação de medicamentos experimentais e materiais de pesquisa e registra eventuais produtos resultantes dos protocolos. Já a Conep avalia aspectos éticos de pesquisas e coordena os CEP, os quais, por sua vez, avaliam as investigações de cada centro de pesquisa participante. Eles são colegiados interdisciplinares e independentes, de relevância pública, de caráter consultivo, deliberativo e educativo19 , que defendem a integridade e dignidade dos sujeitos das pesquisas e garantem padrões éticos.
Todas as regulamentações, normas e instituições citadas se relacionam primordialmente com a bioética e a integridade científica. Esta última engloba ainda o combate a práticas como falsificação e fabricação de dados, plágio e relação de tutoria inadequada 20 , visando assegurar a credibilidade dos resultados – princípio ético diferente da garantia de direitos dos participantes, mas igualmente importante no processo de validação.
As instituições mencionadas são responsáveis por garantir a integridade da pesquisa, e as agências de fomento vêm desempenhando papel central na formulação e no estabelecimento de políticas. Em 2011, foi divulgado um conjunto de diretrizes éticas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico 21 , e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo criou um Código de Boas Práticas 22 que prevê o estabelecimento de órgãos e processos para averiguar a integridade científica em instituições de pesquisas ligadas à agência.
Pesquisas clínicas demandam tempo próprio de desenvolvimento, geralmente longo. Porém, no contexto de emergência imposto pela covid-19, o desafio principal tem sido cumprir todas as fases desse tipo de estudo rapidamente para obter resultados que solucionem o problema e orientem políticas públicas. Dessa forma, criam-se medidas emergenciais a fim de agilizar processos normais. Entretanto, essas mudanças afetam a averiguação ética e de integridade, conforme explicitado a seguir.
No desafiador cenário que se impôs, foram necessárias medidas excepcionais para atender à demanda da população e da comunidade científica, tanto no processo de averiguação ética e de integridade quanto na publicação dos resultados de pesquisas clínicas. A excepcionalidade do momento fez pesquisadores empreenderem grandes esforços para buscar soluções terapêuticas e farmacológicas que contenham o vírus.
A primeira grande mudança ocorreu na publicação dos resultados: desde o início da pandemia, editoras de periódicos científicos vêm disponibilizando acesso gratuito a conteúdos relacionados ao novo coronavírus, a fim de ampliar o acesso à informação e apoiar o trabalho de pesquisadores, gestores e profissionais engajados com a emergência de saúde global 23 . As instituições American Society for Microbiology, Elsevier, Springer Nature, Johns Hopkins University School of Medicine e os periódicos Science, New England Journal of Medicine, Lancet, Cadernos de Saúde Pública, Revista Brasileira de Epidemiologia, Ciência e Saúde Coletiva, Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, Revista do Sistema Único de Saúde do Brasil, Vigilância Sanitária em Debate e Saúde e Sociedade , entre outros, liberaram o acesso a suas plataformas e removeram o controle de conteúdos fechados 24 .
Alguns periódicos adotaram o processo de fast tracking , conjunto de procedimentos que visa agilizar a avaliação editorial, revisão por pares e publicação de artigos científicos relacionados à pandemia. Outros optaram pelo modelo de publicação preprint : artigos não revisados por outros pesquisadores, e portanto sem certificação formal. Nessa modalidade, o manuscrito é depositado pelo autor em um servidor específico sobre covid-19 e disponibilizado para acesso público 25 .
Quanto à averiguação ética e de integridade, a Conep instituiu um processo de tramitação especial, em conformidade com o disposto no item IX.10 da Resolução CNS 466/2012 10 . A excepcionalidade deste procedimento foi decidida em plenária e perdurará enquanto a OMS mantiver o estado de emergência global. Com isso, protocolos de pesquisa sobre a covid-19 deverão ser encaminhados diretamente para apreciação da Conep, sendo dispensável a análise pelo CEP 26 .
Além disso, no dia 22 de abril a Anvisa publicou a Nota Técnica 14/2020 27 para orientar patrocinadores, centros de pesquisa e investigadores envolvidos em ensaios clínicos autorizados pela agência e estudos de bioequivalência. A nota informa a criação do Comitê de Avaliação de Estudos Clínicos, Registro e Pós-Registro de medicamentos para prevenção ou tratamento da covid-19 e estabelece diretrizes para ensaios clínicos em andamento. Também são dadas informações específicas quanto a centros de bioequivalência e dados a serem enviados no Relatório Anual do Ensaio Clínico e Relatórios Finais de Estudos de Bioequivalência afetados pelas medidas de enfrentamento ao novo coronavírus, uma vez que universidades e centros de pesquisas precisaram interromper estudos em andamento para realocar recursos, equipamentos e mão de obra científica 28 .
Ademais, a Conep criou um relatório semanal para atualizar a população sobre a evolução e análise ética de protocolos de pesquisas envolvendo seres humanos. De acordo com o Relatório 32, até o dia 11 de julho de 2020 foram aprovados 565 protocolos de pesquisas científicas, sendo 423 observacionais e 142 de intervenção ou experimentais29 . O Relatório 30 apresenta também um infográfico detalhando os diversos medicamentos, vacinas e dispositivos sendo avaliados pelos 142 estudos experimentais/intervencionais aprovados. Aponta ainda que 44 instituições brasileiras propuseram ensaios clínicos, e que 69,7% dos protocolos aprovados provieram de entidades públicas, com tamanho amostral variando de 1 a 8.870 participantes. No total, as pesquisas contam com 58.311 participantes, e são mais de 420 estudos observacionais em andamento 30 .
As pesquisas estão surgindo de forma emergencial para apurar a segurança e eficácia de fármacos ou tratamentos dentro dos parâmetros de toxicidade, potência, dosagem, condições de tempo e da condução do estudo clínico. Com os dados coletados é possível verificar se a pesquisa atende padrões éticos rigorosos, nacionais e internacionais, permitindo que profissionais de saúde avancem somente se alinhados aos objetivos de proteção à saúde com uma base sólida de integridade científica e ética, gerando observações válidas e documentação concreta dos resultados. Para isso, deve-se respeitar boas práticas clínicas que atendam os interesses de todas as partes envolvidas na pesquisa, instituições, pesquisadores e participantes, de modo a proteger seus direitos, segurança e bem-estar 8 .
Durante uma pandemia, gestores de saúde e poder público precisam tomar medidas emergenciais para conter a doença, adotadas com base nas evidências científicas disponíveis. Todavia, devem ser evitados estudos controversos, com amostras muito pequenas, baixa eficácia e dados limitados. Pesquisas desse tipo não podem fundamentar políticas públicas, dado o risco de efeitos adversos e intoxicações que podem agravar ainda mais a situação.
Pressões políticas e incertezas geradas pela crise podem induzir médicos e pesquisadores a vieses inadequados, prejudicando a integridade da pesquisa e levando à disseminação de resultados prematuros, com recomendações baseadas em conclusões impróprias e dados limitados, adquiridos às pressas. Estudos assim vão contra o método científico e servem apenas para confundir ou, na pior hipótese, enganar, especialmente em momento tenso, em que a ajuda é essencial 31 . Para coibir tais equívocos, é imprescindível estabelecer limites e observar sempre o método científico, independentemente da emergência de saúde global.
Esses limites são estabelecidos pelas legislações mencionadas, que devem ser sempre observadas em pesquisas envolvendo seres humanos, principalmente no contexto da pandemia. Pesquisadores e profissionais da saúde devem sopesar o artigo 4º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos16 , segundo o qual decisões e práticas devem ser avaliadas de modo a garantir o máximo benefício e o mínimo dano a pacientes, sujeitos de pesquisa e quaisquer indivíduos que possam ser afetados.
O item III.1 da Resolução CNS 466/2012 10 reforça esse entendimento, preconizando que pesquisas envolvendo seres humanos atendam fundamentos éticos pertinentes, como o respeito à dignidade e autonomia do paciente, reconhecendo sua vulnerabilidade, ponderando riscos e benefícios, evitando danos previsíveis e destacando a relevância social da pesquisa. Ademais, os itens III.2 e III.3 estabelecem diretrizes para adequar a pesquisa a princípios científicos, como fundamentação em fatos, predomínio dos benefícios esperados sobre riscos e desconfortos previsíveis, métodos adequados para responder às questões estudadas, consentimento livre e esclarecido, entre outras 10 .
Diante das incertezas ocasionadas pela pandemia, médicos e pesquisadores precisam manter postura ética, salvaguardando a integridade e coibindo atos de má conduta científica, como plágio, fabricação ou falsificação de dados. No contexto da bioética, deve-se primar pelos princípios da não maleficência, da beneficência e do respeito à autonomia. É necessário também raciocinar em meio à crise, refletir sobre vieses que podem influenciar o pensamento e avaliar criticamente as evidências, para posteriormente decidir como tratar os pacientes. As observações anedóticas devem se limitar à construção de hipóteses para ensaios que possam ser conduzidos com equipamentos clínicos 32 .
Como discutido no início deste artigo, a construção do conhecimento nos estudos clínicos baseia-se no ideal historicamente constituído de respeito à pessoa humana, permitindo compreender o papel central da bioética na adequação de pesquisas e na validação de seus resultados. A Resolução CNS 466/2012 10 , principal regulamentadora desse tipo de pesquisa no Brasil, incorpora referenciais bioéticos – não maleficência, beneficência, justiça, autonomia e equidade – em suas disposições preliminares. Assim, agências e instituições são instigadas a garantir os direitos básicos dos indivíduos participantes em pesquisa clínica.
A necessidade preconizada pela bioética de garantir direitos fundamentais levanta a questão da vulnerabilidade dos participantes de pesquisas clínicas. A Resolução 466/2012 abrange o tema, e em seu item II.25 define “vulnerabilidade” como o estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida ou impedida, ou de qualquer forma estejam impedidos de opor resistência10 . Já o item III.1, entre outros fundamentos, condiciona a pesquisa à possibilidade de o participante expressar sua vontade de contribuir e permanecer ou não no estudo.
Nota-se, entretanto, a complexidade do conceito. Dallari 8 afirma que pacientes expostos a condicionamentos específicos estão sujeitos a uma vulnerabilidade além da pressuposta — como a de crianças e idosos, por exemplo. Segundo a autora, a doença, por si só, angustia, enfraquece e por vezes até humilha, tornando o participante da pesquisa sujeito vulnerável33 . Dessa maneira, a vulnerabilidade pode ser compreendida como um estado inerente de risco, que acaba por desequilibrar a relação de livre consentimento pressuposta na pesquisa clínica, requerendo a proteção dos sujeitos participantes.
No contexto da covid-19, a tomada de decisões emergenciais na busca por tratamentos e soluções acaba gerando um ambiente de incertezas e ansiedade que estende o conceito de vulnerabilidade a todos os pacientes. Por outro lado, a grande quantidade de pesquisas clínicas e os processos que visam uma aprovação mais eficiente e uma divulgação mais ampla e rápida dos resultados, como evidenciado anteriormente, geram um questionamento quanto aos direitos básicos dos indivíduos. No âmbito jurídico, diversas situações forçam a refletir sobre os fins do Direito, em especial, sua função de garantir a proteção dos vulneráveis, em resistência às pressões políticas, mercadológicas e posturas individualistas34 .
As medidas de enfrentamento, e em especial as pesquisas clínicas, apontam certo grau de incerteza quanto às informações disponíveis. Há muito o que aprender sobre o vírus Sars-CoV-2, particularmente quanto a sua transmissibilidade, seu potencial de virulência, espectro de manifestação clínica, tratamentos e cura com evidência científica comprovada. A velocidade de propagação do vírus tem sido uma das grandes preocupações dos profissionais diante da escassez de recursos e da estrutura hospitalar deficitária, que podem levar o sistema de saúde ao colapso.
Esse cenário provoca instabilidade e insegurança na população, vulnerando ainda mais os integrantes do grupo de risco – idosos acima de 70 anos, pessoas com doenças crônicas ou comprometimento do sistema imunológico, soropositivos, transplantados 35 – e populações que já se encontram em situação de vulnerabilidade social (comunidades carentes, por exemplo), bem como participantes das pesquisas clínicas, também vulneráveis em uma crise pandêmica.
Para enfrentar o problema, o Ministério da Saúde criou o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pela Covid-19, o qual aponta que fatos e conhecimentos sobre o novo coronavírus (…) disponíveis são limitados. Há muitas incertezas no modo exato de transmissão e os possíveis reservatórios. As taxas de letalidade, mortalidade e transmissibilidade não são definitivas e estão subestimadas ou superestimadas. As evidências epidemiológicas e clínicas ainda estão sendo descrita [s] e a história natural desta doença está sendo construída. (…) O risco será avaliado e revisto periodicamente, tendo em vista o desenvolvimento de conhecimento científico e situação em evolução, para garantir que o nível de resposta seja ativado e as medidas correspondentes sejam adotadas36 .
Assim, salienta-se que as agências regulamentadoras e sanitárias podem garantir políticas públicas que assegurem interesses das pessoas vulneráveis mediante análise e aplicação da bioética de proteção, também denominada “ética de proteção”, baseada em reflexões sobre justiça sanitária em situação de escassez 37 . Com essa vertente da bioética, é possível buscar soluções de amplo alcance, de modo a atingir pessoas em situação de vulnerabilidade social, criando medidas sanitárias mais efetivas para enfrentar a covid-19.
Por outro lado, é possível também, aplicando a bioética de proteção, averiguar a moralidade das pesquisas clínicas com seres humanos durante um surto pandêmico. Ao participante da pesquisa devem ser assegurados os direitos à autodeterminação informativa – por intermédio do termo de consentimento livre e esclarecido –, à integridade física, com assistência imediata e integral, e principalmente à dignidade humana. Mesmo em situação de emergência global, o sujeito não pode ser considerado cobaia em prol da coletividade.
O conhecimento científico empírico é pautado na experimentação, que deve seguir o método científico para que seja validamente comprovada. Além disso, é preciso compromisso com padrões éticos de respeito aos direitos básicos dos participantes de pesquisas, considerados vulneráveis, e com o combate de más práticas, que afetam a credibilidade dos resultados. Novos medicamentos e tratamentos são desenvolvidos em pesquisas clínicas que têm como objetivo comprovar a maior eficiência da nova terapêutica em comparação com as já existentes, bem como delimitar parâmetros de toxicidade, potência e dosagem.
A pandemia da covid-19 impactou profundamente a pesquisa, levando a comunidade científica a empreender grandes esforços para conter a doença. Universidades e centros de pesquisa se mobilizaram, realocando recursos, equipamentos e mão de obra para estudos sobre o novo coronavírus. Com isso, o número de pesquisas clínicas aumentou, e os conselhos tiveram que adotar medidas emergenciais para priorizar a avaliação ética desses trabalhos.
Diante das incertezas sobre transmissão, tratamento e potencial de virulência, permitiu-se publicar artigos científicos sem avaliação por pares, os chamados preprints , que por um lado contribuem para o acesso à informação, mas por outro podem levar a interpretações e aplicações equivocadas. Resultados são antecipados e utilizados com aura de “solução definitiva” em um contexto de ansiedade geral, em que a condição de vulnerabilidade é expandida. Por isso, é imprescindível seguir padrões rigorosos antes de divulgar resultados que possam gerar falsas esperanças e levar a decisões precipitadas, inclusive agravando o problema.
Diante de tantas incertezas, deve-se buscar a centralidade dos princípios éticos e bioéticos aplicáveis às pesquisas, para garantir resultados robustos e confiáveis. No que diz respeito à moralidade dos estudos clínicos com seres humanos durante a pandemia, conclui-se pela aplicação da bioética de proteção, uma vez que aos participantes de pesquisas, colocados em situação de vulnerabilidade, deve ser assegurado o direito à autodeterminação informativa, à integridade física, com assistência imediata e integral, e à dignidade humana.
As autoras contribuíram igualmente para a pesquisa e redação do artigo.
Mayara Medeiros Royo – Pós-graduanda – mayaramedeirosroyo@gmail.com
Beatriz Silva Costa – Graduanda – beatrizsilvacosta@icloud.com
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