Editorial
Bioética: ponte para um futuro pós-pandemia
O ano de 2020 tem sido difícil para todos. Desde o primeiro bimestre, o mundo se viu assolado por uma nova enfermidade surgida na China, causada pelo vírus Sars-CoV-2. A origem do patógeno não é completamente conhecida, mas sabe-se que a doença é altamente contagiosa, tendo rapidamente se espalhado pelos continentes, a ponto de ser declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020 1.
A alta taxa de transmissão e morbidade da covid-19 a torna capaz de sobrecarregar os sistemas de saúde, requerendo a adoção de medidas como distanciamento social, uso de máscaras, lavagem constante das mãos e desinfecção com álcool em gel. Além disso, quando essas medidas não são suficientes, ações governamentais mais severas são necessárias, como quarentena obrigatória, lockdown, multas e toques de recolher, o que impacta seriamente a economia de diversos países.
De acordo com Schmidt e Medeiros 2, o vertiginoso aumento populacional nas grandes cidades e a atual facilidade de deslocamento pelo mundo favorecem a disseminação de doenças contagiosas e o estabelecimento de emergências de saúde pública. A dificuldade em conter o avanço da doença e a constante busca por estratégias para atender à demanda do sistema de saúde implicam a ideia de uma verdadeira “saúde global”, envolvendo esforços internacionais coordenados.
A resposta da comunidade científica à pandemia foi intensa, mas ainda não resolutiva. As evidências epidemiológicas para a covid-19 estão sendo estabelecidas, do ponto de vista do tratamento, do diagnóstico e mesmo da prevenção, e a doença e suas diferentes manifestações estão sendo pesquisadas em todo o mundo. Mesmo sem uma base definitiva de evidências, entidades médicas criam protocolos para atendimento amparados em tratamentos disponíveis, sempre respeitando o princípio bioético da autonomia do médico e do paciente. Além disso, diversas vacinas estão sendo desenvolvidas e testadas de forma emergencial, sempre visando o bem comum, mas por vezes ocultando conflitos de interesse de grandes grupos farmacêuticos.
Os dilemas éticos envolvendo o gerenciamento de recursos e as demandas sanitárias estão cada vez mais presentes, incutindo a necessidade e a oportunidade de refletir sobre a atual situação e suas implicações bioéticas 3. Nesse cenário, a interface entre direitos humanos e o interesse público despertado pela crise pandêmica pôs à prova a solidez dos princípios bioéticos das sociedades contemporâneas.
Um desses dilemas remete à vacina contra a covid-19. Uma vez desenvolvida, como devem agir os governantes? Devem torná-la obrigatória, seguindo viés utilitarista, dada a possibilidade de contágio e adoecimento severo, levando a hospitalização e cuidados intensivos? Ou devem respeitar a individualidade e a liberdade de quem não quer se vacinar 4?
No Brasil, foi decretado em março de 2020 estado de calamidade pública 5, possibilitando a liberação de orçamento extra independentemente da Lei de Responsabilidade Fiscal 6, e em maio foi declarada situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional 7. Isso permitiu que políticas públicas fossem reorientadas para o combate à pandemia, viabilizando o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública. Estados de calamidade e emergência em saúde pública são estabelecidos em situações epidemiológicas que apresentam risco de disseminação por todo o país e/ou que extrapolam a capacidade de resposta da direção estadual do Sistema Único de Saúde 7.
Passados alguns meses do início da pandemia, ainda não houve tempo suficiente para desenvolver medicamentos e vacinas que cumpram o rigoroso protocolo habitual. A necessidade premente dessas soluções deve fazer repensar a ética dos estudos com seres humanos, em especial os ensaios clínicos de novos medicamentos, assim como o papel dos comitês de ética em pesquisa.
Embora vários medicamentos, como remdesivir, hidroxicloroquina, dexametasona, ivermectina, nitazoxanida e plasma convalescente, estejam sendo utilizados em pesquisas, a covid-19, em suas diversas manifestações, ainda não foi totalmente compreendida 8. Lamentavelmente, foram observados conflitos de interesse em pesquisas clínicas por todo o mundo, e muitas visões políticas têm também influenciado iniciativas científicas para possíveis tratamentos e vacinas. Na perspectiva bioética, isso implica que mecanismos internacionais de controle e regulação da ciência precisam ser fortalecidos, de modo que o conceito de “medicina baseada em evidências” não seja apenas uma pálida miragem do que poderia ser.
Este ano de 2020, já quase no fim, trouxe mudanças expressivas para a medicina, a saúde, a bioética e as relações humanas. Também a Revista Bioética este ano passou por mudanças, enriquecendo a equipe editorial com o professor doutor Rui Nunes como editor científico honorário, a professora doutora Natália Teles como editora-assistente e o professor doutor José Hiran da Silva Gallo como editor científico no Brasil. Tem ainda buscado novas plataformas internacionais de indexação, com o objetivo de elevar o fator de impacto do periódico.
Nestes tempos de pandemia, a bioética tem sido lembrada pelas possibilidades de refletir sobre a crise sanitária, os dilemas éticos e a forma de conduzir os casos clínicos. Com isso, esta última edição de 2020 apresenta diversos temas do interesse de todos, inclusive sobre a covid-19, mas para além dela. Boa leitura!
Os editores
José Hiran da Silva Gallo – Doutor – gallo@portalmedico.org.br
Rui Nunes – Doutor – ruinunes@med.up.pt