Resumo: A exibição de filmes seguida de debate pode ser empregada como recurso pedagógico da bioética narrativa, visando compartilhar percepções e ampliar coletivamente a capacidade de refletir e dialogar. Neste artigo buscou-se aprofundar a análise de questões ético-políticas suscitadas em debate sobre o filme Que horas ela volta? com estudantes de uma universidade pública. O filme faz um resgate sócio-histórico da formação brasileira, expondo antagonismos ancestrais e uma cultura visceralmente racista, sexista e autoritária. Foram levantadas coletivamente as principais cenas-chave do filme, debatidas à luz da bioética social com base em leitura previamente recomendada. O processo levou os alunos a problematizar relações de gênero, classe, trabalho, poder e violência simbólica no Brasil contemporâneo – reflexões necessárias no contexto da educação superior em saúde.
Palavras-chave: Bioética, Ética, Filmes cinematográficos, Educação superior, Identidade de gênero.
Atualização
Que horas ela volta? Análise bioética sobre gênero e classe
Recepção: 29 Julho 2019
Revised document received: 12 Maio 2020
Aprovação: 11 Novembro 2020
O filme Que horas ela volta?1 foi selecionado para atividade de formação com estudantes de graduação de uma universidade pública. A escolha se deveu ao inteligente e comprometido resgate sócio-histórico da cultura brasileira que a obra desenvolve, expondo antagonismos ancestrais, bem como o autoritarismo, o racismo e o machismo ainda tão visíveis no Brasil contemporâneo. Por suscitarem reflexões sobre diferentes dimensões da realidade, filmes são importantes veículos de comunicação, expressão e percepção do mundo.
O uso da arte cinematográfica na educação dos profissionais da saúde não é recente. Entretanto, nos últimos 20 anos essa estratégia pedagógica não tradicional tem sido cada vez mais empregada. O cinema como metodologia ativa voltada à formação gera discussões sobre temas relevantes, com potência crítica, reflexiva e transformadora, estimulando o posicionamento crítico dos estudantes. A experiência do cinedebate, focada pelas lentes da bioética social, enfatiza a pluralidade de percepções e perspectivas sobre a realidade, desperta a imaginação e amplia as possibilidades de diálogo, mediação e reflexão ética 2.
O filme selecionado reúne no cenário cotidiano de uma família de classe média brasileira a pergunta de dois adolescentes que habitam realidades distintas: “Que horas ela volta?”. A pergunta é endereçada a duas mulheres conectadas por complexas relações de trabalho e vida, sendo signo da emancipação feminina que ambas colocam em cena ao ocupar espaços de trabalho assalariado no Brasil do século XXI, em locais sociais dicotômicos. De um lado, há a mulher que exerce o papel de “patroa”, simbolizando a emancipação do trabalho doméstico; de outro, há a doméstica, que vive sua emancipação a partir de um lugar reprodutor de inter-relações atrasadas de submissão e substituição.
Como a maioria das mulheres trabalhadoras, as duas devem encarar jornada tripla de trabalho: além do trabalho para manutenção da família, assumem também a responsabilidade pela educação dos filhos e pelo cuidado da casa. Tal jornada é camuflada pela contratação pela patroa da doméstica, outra mulher, para substitui-la nas “obrigações domésticas” e até mesmo maternais, dado o envolvimento emocional-afetivo de seu filho com a empregada, análogo ao das amas de leite no Brasil colonial.
Por focar o antagonismo estrutural da sociedade brasileira, o filme tem a virtude de abrir feridas culturais e estamentais perpetuadas por valores e estigmas provenientes do paternalismo, do machismo, do autoritarismo, do escravismo e da exploração do trabalho. Constituem-se papéis sociais baseados em identidades de gênero e de trabalho que acarretam o compartilhamento de afetos, posições e status, em disputa pelo domínio das relações familiares. À intimidade doméstica sobrepõe-se uma tensão que ameaça o jogo da afetividade, da sexualidade e da educação.
A “doméstica”, antes “mucama”, remete às relações coloniais-escravistas, como figura feminina subjugada e desqualificada para o trabalho produtivo. A diferença social mantém no ambiente urbano e moderno da sociedade brasileira a mais antiga e profunda contradição do país: a “casa-grande” e a “senzala” 3. As analogias entre relações de escravidão e de trabalho assalariado precarizado marcam uma ambiguidade social ressaltada no filme: o emprego doméstico como predestinação natural da mulher e expressão maior da desigualdade de classe e gênero.
Em trocas simbólicas entre quem pode dar e quem precisa receber, a posição dominante é naturalizada, tanto em aspectos objetivos quanto intersubjetivos 4. Grupos sociais hegemônicos exercem e garantem suas posições sociais e de coesão pela coerção dos dominados, por meio de processos ideológicos, físicos e econômicos. Na história do Brasil moderno, o início da industrialização e do desenvolvimento econômico, que deveria diminuir a desigualdade racial, especialmente com o fim das imigrações massivas de estrangeiros na década de 1930, contraditoriamente manteve os ex-escravos como massa de despossuídos, incorporados de forma “não produtiva” ou periférica à economia.
Quando os trabalhadores negros são deslocados dos centros urbanos pelo processo de “embranquecimento” forçado, baseado na ocupação dos postos de trabalho por “brancos europeus”, uma desvantagem econômica importante é perpetrada. Em quadro de proletarização incipiente, a população negra continua levando uma existência precária em periferias urbanas e polos rurais marcados historicamente pela monocultura exportadora. Neste contexto, a prestação de serviços como o doméstico torna-se importante frente de trabalho para mulheres negras ou migrantes.
Sem drásticas alterações, a sociedade brasileira continua a se construir sobre a dependência senhorial, o clientelismo e a hierarquização entre brancos e não brancos ou entre ricos e pobres 5. Que horas ela volta?1 retrata essa realidade em espaço doméstico comum, mas compartilhado desigualmente, retirando da invisibilidade inter-relações que desvelam papéis hierarquizados, com o doméstico refletindo o feminino, o subalterno, a subcidadania. Com isso, neste artigo buscou-se aprofundar a análise dos problemas ético-políticos suscitados pelo filme em atividade pedagógica de bioética com estudantes de graduação em saúde de uma universidade pública.
A partir da perspectiva da bioética narrativa, o filme Que horas ela volta?1 foi utilizado como recurso pedagógico para compartilhar percepções e debater problemas, ampliando coletivamente a capacidade de análise, reflexão ética e mediação de um grupo de estudantes de universidade do Sul do Brasil, em fase de estágio-serviço. O objetivo da bioética narrativa é exercer julgamento moral, ou seja, tomar decisões não apenas baseadas em fatos, mas também em valores e deveres. O cinema é usado para desnudar a própria existência humana como narrativa, ultrapassando as margens estreitas dentro das quais se tem pensado a razão. Na aproximação com o que é vivenciado no filme e o que é pensado coletivamente, constrói-se um espaço pedagógico de ensino-aprendizagem 6.
Na atividade relatada neste artigo foram aplicados os procedimentos recomendados por Flick 7. De acordo com o primeiro deles, “assistir e sentir”, o filme foi considerado como um todo, e anotaram-se impressões, questões e padrões de significado visíveis. A seguir foram identificadas as questões que se impõem, selecionando-se, a partir das descrições de segmentos de realidade contidos no filme, cenas-chave sobre as quais foram formuladas perguntas a serem respondidas.
Em seguida foram realizadas microanálises estruturadas de cenas e sequências individuais, descrevendo fragmentos para chegar a padrões detalhados da exposição. Por fim, buscou-se responder à questão central da análise a partir de leituras realistas e subversivas, contrastando os padrões para chegar a uma interpretação final. A leitura realista busca compreender o filme como descrição verídica do fenômeno, com análise apurada dos conteúdos e aspectos formais das imagens para validar as alegações de verdade que a obra reproduz sobre determinada realidade. Já a leitura subversiva destaca as ideias do autor que podem ter influenciado o filme, assim como as ideias dos intérpretes que podem ter influenciado a interpretação.
Após a exibição da obra, levantou-se debate para refletir sobre as questões destacadas à luz da bioética social, com base em leitura de texto previamente recomendado 8. No momento de assistir ao filme, os estudantes foram orientados a procurar aspectos relevantes ao debate bioético, pertinentes ao contexto brasileiro, tendo em vista a vivência com profissionais da saúde, usuários-pacientes, comunidade e famílias nessa fase de integração ensino-serviço, em que os alunos se aproximam do Sistema Único de Saúde. No debate em roda posterior à exibição, os estudantes problematizaram questões de gênero, classe, trabalho, desigualdade socioeconômica e cultural, autonomia, relações de poder e violência simbólica, traçando relações com a leitura prévia.
Objetivou-se, com este artigo, aprofundar a análise das questões debatidas nessa atividade pedagógica de bioética a partir de três cenas-chave destacadas, analisando o contexto socioeconômico e histórico brasileiro. Buscou-se complementar a leitura realista com leitura subversiva, seguindo o método proposto. Almeja-se que, a partir do percurso descrito neste trabalho, outras atividades de cinedebate sejam desenvolvidas em instituições de ensino para promover a formação crítica de futuros profissionais da saúde.
A primeira cena-chave selecionada é a de uma conversa entre Val (a empregada doméstica) e Jéssica (sua filha). No diálogo, Val expressa seu lugar no mundo ( já se nasce sabendo1), indicando visão naturalizada de classe e gênero que confirma a figura da doméstica como objeto produtivo, adjetivado pela submissão, obediência e subserviência em sua incorporação à “casa-grande” dos patrões. Em lugar historicamente definido para o corpo trabalhador, marcado por sotaque e cultura diferentes e pelo antagonismo de classe, revela-se a concentração de poder entremeada por afetividades e contradições civilizatórias.
Bárbara, a patroa, sugere uma aproximação afetiva – você é como se fosse da família1 –, ao mesmo tempo que se incomoda com o fato de a filha da empregada “não saber o seu lugar”, impedindo-a de ultrapassar os limites da cozinha ( não deixe ela passar daquela porta para cá1). As cenas e falas refletem a desumanização pelo trabalho, assim como o choque de gerações entre uma mulher, mãe, trabalhadora e provedora de si, com a filha, adolescente, estudante, com perspectivas de um futuro mais livre, apesar de ter sido privada da convivência materna desde a migração da mãe para a região Sudeste em busca de trabalho.
Ao escrever Casa-grande e senzala em 1933, Gilberto Freyre 3 provavelmente não imaginou que aquilo que descrevia permaneceria no cotidiano das famílias brasileiras do século XXI. Ao afirmar que marca fortemente registrada da colonização no Brasil foi o aproveitamento da gente nativa – principalmente a mulher índia e depois a mulher negra, a cabocla ou as moças órfãs e “à-toas” encaminhadas de Portugal –, Freyre entra no cerne da família brasileira patriarcal e aristocrática, formada junto às grandes monoculturas açucareiras. Os “senhores” (inicialmente aventureiros, soldados buscando fortuna, degredados, cristãos novos fugidos à perseguição, náufragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira) passaram a viver confortavelmente em casas-grandes que alicerçavam sua iniciativa e esforço particular, constituindo o familismo na mistura de raças com a agricultura latifundiária.
O trabalho escravo, base da economia, esterilizava tudo ao seu redor e acomodava uma organização política de mando oligárquico-nepotista e jurídico, símbolo da aliança entre Estado, mercado e Igreja. Assim, o “senhor” crescia habituado ao mando, a um autoritarismo rude, violento e até perverso, exercido também na administração da política e do Estado. Às mulheres se negava o direito à rua, atestando forte opressão cultural de gênero. Sem vida social e privadas do ensino, elas se submetiam a espécie de “sadismo branco” do europeu.
A “sinhá” fiscalizava as mucamas, amas de criar e irmãos de criação (“moleques” do senhorzinho), que subiam da senzala para o serviço doméstico e eram considerados “pessoas da casa”. A “boa” ama negra criava o sinhô-moço, dando-lhe de mamar, embalando-o, ensinando-lhe as primeiras palavras em português, fazendo todas as suas vontades e muitas vezes substituindo pai e mãe. Para esta posição eram escolhidas as escravas consideradas estética e moralmente mais adaptadas, docilizadas pela doutrina e moral religiosa, sujeitadas, submissas e inferiorizadas.
A divisão da sociedade entre senhores despóticos e escravos dominados à força foi a principal causa do abuso de negros e negras por brancos, em suas formas sádicas e hipócritas de “amor”. A famosa pintura – atribuída a Debret – de d. Pedro II no colo de sua ama, segurando um de seus seios, representa a primeira promiscuidade permitida aos donos do poder; ela simboliza, sobretudo, a apropriação do corpo da mulher negra pelo senhor branco e a construção da sociedade brasileira às custas do trabalho dessa população 9. A vida ociosa do senhor de engenho, embalada na rede por mãos negras e, depois, movimentada pelo corpo de uma “fresca” mucama, reproduz a relação senhorial de gosto sádico pelo mando, característico do brasileiro criado em casa-grande de engenho e introjetado no ideário popular: um governo másculo e corajosamente autocrático, com menos vontade de reformar ou corrigir vícios político-econômicos e mais gosto por vitimar 3.
Conforma-se uma sociedade crivada pelo mais profundo de todos os antagonismos sociais, “o senhor e o escravo”, do qual derivam as bases históricas da submissão da trabalhadora e do trabalhador brasileiros. São essas bases: 1) a violência associada ao poder de mando; 2) a pretensa inferioridade intelectual – construída – do negro e do trabalhador braçal; e 3) a moral cristã associada ao direito à propriedade, com obediência e servilismo 3.
Nas sociedades modernas, em que os interesses de mercado são hegemônicos, o valor instrumental do corpo assume variadas e novas formas, mas corroborando a ideia que sustentou e sustenta a escravidão, apesar da crescente rejeição a esse tipo de mercantilização. Naturaliza-se a compra e a venda do corpo, confundindo-se liberdade e disponibilidade com propriedade e comercialização. O controle sobre a força e a capacidade laboral adquire mais valor; capacidades físicas e mentais pautadas na exploração do trabalho, material e imaterial, são contratadas 10. No caso das mulheres, há ainda o fetiche sexista que faz o corpo ter outras propriedades para além do trabalho produtivo, sempre conservando um lugar social desvantajoso: como mão de obra doméstica ou sexual, sensual e maternal, subsumida ao uso e ao poder masculino.
A violência simbólica sobre a mulher e a desumanização pelo trabalho como copartícipes da desigualdade socioeconômica e cultural brasileira 11, retratados no filme pela relação de mando e submissão entre patroa e doméstica, trazem à luz os temas bioéticos da autonomia, da vulneração e da libertação. As teorias críticas da bioética articulam os princípios de liberdade e autonomia à garantia de igualdade, equidade e proteção. Segundo Berlinguer 12, a perspectiva utilitarista, que julga melhor a ação que traz maior felicidade para o maior número de pessoas, e a perspectiva da justiça, que considera as desigualdades econômicas e sociais e busca o maior benefício aos socialmente menos favorecidos, questionam o círculo vicioso que leva os mais fracos, ainda que inconscientemente, a suportar os maiores danos.
O indivíduo autônomo tem a liberdade de manifestar sua vontade sem coações internas ou externas que impeçam ou limitem suas escolhas e decisões. Ele decide de forma racional o que é “bom” para si, optando entre as alternativas existentes e compreendendo as consequências de suas escolhas, de acordo com seus valores, expectativas, necessidades, prioridades e crenças. Pondera-se, entretanto, que o ideal de autonomia é utópico quando se consideram a vulneração social 13 e a discriminação negativa 14 de indivíduos e grupos em contextos de profunda desigualdade socioeconômica e cultural, nos quais a autonomia pode estar mascarada pela coerção da vontade, desnudando o aspecto essencial da vulneração.
Em relações desiguais de poder há instâncias sobre as quais não incide a reflexão ética, e os princípios absolutizados mostram-se insuficientes. A bioética principialista, voltada a indivíduos aptos a considerar a eficácia de seus pressupostos e a defender seus interesses por meio deles, não apresenta saída para os socialmente vulnerados e discriminados. A bioética social, por outro lado, debate ações de proteção e intervenção do Estado ante a iniquidade e a opressão, voltando-se à eficácia de políticas públicas com discriminação positiva de pessoas e grupos 15.
Mudar relações precárias e concretizar leis (como a Emenda Constitucional que estabeleceu igualdade de direitos trabalhistas entre domésticos e demais trabalhadores urbanos e rurais 16) pode significar a passagem de consciência do trabalhador de mero vendedor de força de trabalho a outra, de produtor – indivíduo informado, reflexivo, consciente e transformador 12. Nesse sentido, a primeira cena-chave selecionada evidencia uma mudança de consciência da filha, para além de mero choque de gerações. Em vez do esperado comportamento subserviente que naturaliza a submissão historicamente exigida da doméstica, a pergunta de Jéssica – Onde você aprendeu o que pode e o que não pode fazer? Leu num livro?1 – exprime outro posicionamento, apreendido no contato com uma educação libertária.
De um lado, na visão da mãe, o emprego doméstico é encarado como única forma de vida produtiva, não se vislumbrando alternativas para si ou para a prole 3. De outro, a educação como prática de liberdade, ao contrário da educação para dominação, implica reconhecer os seres humanos em suas relações com o mundo e sua consciência, visto que consciência e mundo acontecem ao mesmo tempo, despertando a reflexão. A busca por desalienação e pela afirmação do ser humano como ser para si é conquista diante da desumanização, tendo em vista que a opressão não é destino dado, mas resultado de ordem histórica injusta geradora de violência. O poder dos opressores, quando pretende amenizar a debilidade dos oprimidos, não passa de falsa generosidade. Então, quem melhor do que os próprios oprimidos para se libertar da opressão 17?
A segunda cena-chave selecionada foca o pedido de casamento que o patrão faz à filha da empregada depois de visitarem alguns de seus imóveis, mostrando de forma inequívoca seu poder de renda, mantenedor da estrutura familiar e social. Essa cena, seguida pela do patrão “deitado na rede” e da patroa enciumada, simbolizam a permissividade da violência contra a mulher, em cotidiano de ostentação material desprovida de sentido social.
Desde a época colonial constrói-se no Brasil a aceitação de relações de violência e submissão doméstica em que mulheres são vítimas de abuso moral, emocional e sexual. Ao homem sempre foi permitido “apanhar” uma criada para seu deleite, à vista dos olhos castos e naturalmente resignados da senhora – uma criatura que se casava cedo e era reprimida sexual e socialmente pelo pai e depois pelo marido, destinada a procriar e cuidar do lar 3. Essa senhora, quando enciumada, invariavelmente impetrava crueldade às escravas “da casa”, mandando arrancar olhos, dentes, seios ou unhas, queimar a face ou vendê-las no mercado.
Essa tradição de submissão e violência permanece no imaginário simbólico, reelaborada nos novos contextos culturais em que se insere: o homem, forte e centralizador, ao mesmo tempo romântico e sagrado 9, no exercício de sua função patriarcal, tem o poder de determinar a conduta das categorias sociais subalternas, autorizado – ou pelo menos tolerado – pela sociedade a punir o que se lhe apresenta como desvio 18. A força masculina pode ser aferida pelo fato de ela não precisar ser justificada; a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de se enunciar. Enquanto ela é legitimada, suas vítimas são responsabilizadas pelos prejuízos sofridos, em esquema de violência simbólica que garante a manutenção dessa ordem 19. Nessa base, a sociedade brasileira moderna ainda se mantém grotescamente patriarcal e desigual, reafirmando profunda violência estrutural para com meninas e mulheres.
No interior de campos ou segmentos sociais, essas dinâmicas estruturadas por valores ou formas de capital podem ser denominadas “ habitus”. Nessa concepção de estrutura dinâmica, um conjunto de relações históricas é produto e produtor de ações e correlações de força condicionadas e condicionantes. Desta maneira, o agente está inserido na estrutura ao mesmo tempo que age como força estruturante de um campo, em dupla imbricação entre estruturas mentais e objetivas. A reciprocidade da relação estabelece movimento generativo autocondicionado que busca permanentemente se reequilibrar, tendendo a se regenerar e se reproduzir.
O agente não pode se conduzir, improvisar ou criar livremente, pois é sujeito da estrutura estruturada do campo, de seus códigos e preceitos. Ainda assim, dentro de limites, de restrições internalizadas e aceitas, a conduta, a improvisação e a criação podem ser livres. O habitus é considerado, então, sistema de disposições, modos de perceber, sentir, fazer e pensar que levam a agir de determinada forma, em dada circunstância, não com disposições mecânicas nem determinísticas, mas plásticas e flexíveis, adquiridas nas correlações das estruturas sociais. Portadoras da história individual e coletiva, internalizadas de tal forma que se chega a ignorar sua existência, tais disposições aparecem como rotinas corporais e mentais inconscientes, que nos permitem agir sem pensar. Elas são produto de uma aprendizagem, um processo de que já não temos consciência e que se expressa por uma atitude “natural” de nos conduzirmos em determinado meio.
O habitus gera uma lógica, uma racionalidade prática, irredutível à razão teórica. Ele denota o sistema de disposições duráveis e transferíveis que funciona como princípio gerador e organizador de práticas e representações, associado a uma classe particular de condições de existência. O habitus não designa apenas um condicionamento, mas também um princípio de ação. Trata-se de estruturas (disposições interiorizadas duráveis) que são estruturantes (geradoras de práticas e representações), e que portanto têm dinâmica autônoma, isto é, não supõem uma direção consciente de suas transformações. Elas engendram e são engendradas pela lógica do campo social. Assim, somos vetores de uma estrutura estruturada que se transforma em estrutura estruturante 4,20.
Este conceito sustenta a ideia de que grupos sociais hegemônicos utilizam-se de diversos mecanismos instituídos para exercer poder e garantir a reprodução de sua posição social 4. Nesse sentido, grupos dominados são coagidos por meio de processos ideológicos, físicos e econômicos que constituem toda uma economia de trocas simbólicas e posições sociais, tal como pode ser observado no filme. Tais processos ocorrem na medida em que grupos apresentam respostas socialmente aprendidas no transcorrer da história por intermédio de noções de “correto” e “incorreto”, que funcionam como engrenagem que reproduz crenças sociais pela incorporação de cada agente e de sua posição social e de gênero 21.
No caso, um habitus de classe e de gênero é posto perpetuamente em operação como mecanismo de violência simbólica, exercida com a cumplicidade tácita entre os que a sofrem e os que a exercem, partindo-se do pressuposto de que as exercem ou as sofrem inconscientemente 4. Em outras palavras, trata-se de mecanismos profundamente violentos de sujeição e dominação, naturalização de representações e padronização de ideias dominantes entre indivíduos dentro de uma rede social. Essa violência é manifestada por instituições e agentes que exercem autoridade – tal como evidencia o filme – sobre o corpo feminino.
No entanto, a violência simbólica não tem substância. Ela se realiza não tanto pela ação de fato do dominante, mas pela adesão voluntária e automática do dominado, constituindo-se como mecanismo social tácito e com regras implícitas, mas concretas, a ponto de impedir outras formas que não sejam a relação de domínio. Tal violência implica toda uma ideação sobre regras morais aceitas pelo dominado, sanções para as transgressões e operações a partir do medo.
A violência simbólica exige submissões que sequer são percebidas como tais, por conta de expectativas coletivas e crenças socialmente inculcadas. Na temática do gênero, a violência simbólica vale-se de relações sociais desiguais entre os sexos, veladas, nas quais os indivíduos se submetem a normas que definem o que deve ser o corpo, sua atitude e apresentação 4. A consciência de si no mundo da filha transforma as intenções do patrão em estranheza e violência simbólica, em gesto de afirmação.
Destacou-se como terceira cena-chave a conversa em torno da mesa sobre o projeto de Jéssica de prestar vestibular em concorrida universidade brasileira. Após falas entrecortadas por silêncios, surge a frase você sabe que é muito difícil passar, não é?1, confirmando o preconceito elitista de que a universidade e o curso escolhido não foram feitos para “pessoas como ela”. Mais adiante, há outra fala desdenhosa da patroa sobre a aprovação de Jéssica no vestibular (o mesmo que reprovou seu filho), que mantém o viés de classe: Ela estudou, passa… Também, é só isso que ela faz1 – como se fosse moralmente imperdoável que uma filha de empregada pudesse se dedicar integralmente aos estudos, tomando o lugar que estaria destinado, por “mérito”, a seu filho.
Seguindo o padrão estamental desvelado no filme, a exploração do trabalho infantil, incluindo o trabalho doméstico, ainda é bastante comum no Brasil, apesar de a legislação somente permitir a contratação de adolescentes entre 14 e 16 anos de idade na condição de aprendiz. Segundo estimativas nacionais, quase metade da população começa a trabalhar antes dos 14 anos, em tipo de venda e uso do corpo considerado “natural” e moralmente aceitável para famílias pobres que precisam da ajuda de todos os membros para garantir seu sustento 10.
O acesso à universidade, especialmente à pública, de maior excelência, é visto como direito dos filhos das elites e classes médias, premiados pelo “mérito” da loteria social. Na prática, este acesso se limita àqueles que frequentam escolas privadas e cursinhos pré-vestibulares, compartilhando perspectivas de futuro e cultura cosmopolita – sutilmente representada no filme pelas camisetas usadas pela empregada, provindas de viagens que ela obviamente não fez. Confirma-se o direito estamental de classe, invisível mas natural, exclusivo dos cidadãos de “primeira classe”.
Uma leitura subversiva do filme se revela nas cenas em que Jéssica é flagrada estudando, confirmando a ideologia contemporânea da meritocracia, que mantém invisível um movimento de discriminação positiva por meio de políticas públicas afirmativas, como as cotas para estudantes negros, quilombolas, indígenas e oriundos do ensino público. Na meritocracia, embasada na organização fordista de produção, na qual a racionalidade adquire lógica própria e estabelece meios eficazes para alcançar objetivos, passa-se a organizar a vida sob o advento da tecnociência, que participa diretamente do processo produtivo.
Nessa sociedade do conhecimento, as ideias emanam direta e naturalmente do funcionamento das organizações e das leis de mercado, sem produtores palpáveis. O discurso da competência é incorporado, invalidando indivíduos e classes sociais como sujeitos da ação, tornando-os átomos privados que aprendem a ser especialistas competentes. Divide-se a sociedade entre os que possuem poder porque possuem saber e os que não possuem poder porque não possuem saber. A felicidade se realiza na competição e no sucesso de quem vence. A universidade acaba alimentando essa ideologia da competência ou do mérito, vendida cotidianamente pelo aparato educacional e pelos meios de comunicação. Formam-se hiperespecialistas, mas incompetentes sociais e políticos, porque pensam de forma fragmentada e limitada 22.
Entretanto, essa ideologia meritocrática esbarra na realidade social. O investimento pessoal e familiar para desenvolver o interesse em um futuro bem-sucedido e o pensamento prospectivo – pautados em esforço, concentração, disciplina, autocontrole e tempo disponível para assimilar conhecimento – é privilégio de quem pode comprar tempo livre e prestígio social. Às classes empobrecidas nega-se não só o capital econômico, mas também cultural. Já nas classes dominantes, os estímulos, desde a infância, à capacidade intelectiva e à autoestima preparam o indivíduo para o sucesso (ou o insucesso) na escola e na carreira 11. Por isso políticas públicas de discriminação positiva são imprescindíveis. Elas possibilitam o acesso dos “despossuídos” não só a bens de consumo, mas a bens culturais, como escolarização.
Nas últimas décadas, políticas afirmativas e de inclusão social – embora fiquem aquém de necessidades históricas – têm sido contestadas por uma classe média pretensamente alçada à elite nacional. As cotas nas universidades, somadas à introdução do Exame Nacional do Ensino Médio, são percebidas por essa “elite” como ataque a direitos herdados, como o de acesso a universidades públicas. No entanto, a “seleção social”, naturalizada como mérito, pode ser facilmente contradita por dados. Basta considerar os altos percentuais de jovens mais pobres que não conseguem completar o ensino fundamental ou médio, enquanto no quintil mais alto de renda estão os jovens que tiveram acesso ao ensino superior. O ensino superior tem sido privilégio da parcela mais rica da sociedade, uma população autodeclarada “branca” 23.
Essa desigualdade vem acompanhada de xenofobia, representada em Que horas ela volta?1 pela segregação espacial e social infligida aos trabalhadores nordestinos emigrados. Disfarçada de trocas competitivas entre parceiros formalmente livres e iguais no mercado de trabalho, a meritocracia torna invisíveis as desigualdades e hierarquias conformadas por posições de classe, transmitidas de geração a geração. A religião, a família e o sistema escolar, entre outros aparatos, funcionam como padronizadores ideológicos de “oportunidades” que na realidade impedem a mobilidade social. As relações ideológicas capitalistas fundamentam-se nos sempre disponíveis exemplos de homens que “se fizeram” partindo do nada, mantendo a visão de oportunidades abertas a todos 5. Entretanto, a sociedade é considerada democrática quando institui e amplia direitos sociais reais de inclusão equitativa.
A cidadania, definida na democracia liberal como garantia de direitos civis, assume na democracia participativa sentido ampliado que abre o campo de lutas populares por direitos econômicos e sociais, opondo-se aos interesses e privilégios da classe dominante, o que propicia, por sua vez, nova cultura de cidadania, que inclui, e não separa. A história colonial brasileira, no entanto, com seu caráter autoritário e separatista, insiste em manter a discriminação negativa de negros e pobres, criando cenário de total falta de perspectivas que desemboca no fundamentalismo religioso e midiático como única forma de identidade, conhecimento e poder 22,24.
A cultura da pobreza, marcada pela violência simbólica, constrói uma subcidadania que nega acesso equânime ao conhecimento e ao pleno emprego. Surgem então, como possibilidade de inclusão para os jovens pobres, certos valores de aspiração financeira e de consumo, signos externos de riqueza associados à hegemonia do mercado e às políticas neoliberais. A falta de qualificação laboral, no entanto, se mantém, jogando esses jovens em tipo desvantajoso de concorrência, de viés racista.
Para naturalizar violências e posições sociais de exclusão, certos mecanismos ocultam a ideologia da dominação. A transformação dos indivíduos em capital humano – ou seja, em investimento para produzir lucro – desobriga o Estado de cumprir seu papel protetor e inclusivo, alargando espaços privados de mercado e encolhendo espaços públicos democráticos, o que impede que se construa a identidade como algo positivo 24. Como ressalta Florestan Fernandes 25, a revolução burguesa no Brasil, amalgamando-se a forças sociais retrógradas, não foi capaz de implementar a democracia liberal, condenando o país ao subdesenvolvimento interno e à subserviência ao capital externo, o que permite às elites nacionais “brancas” manter seus sapatos envernizados distantes da senzala, hipocritamente desconhecendo-a, apesar de dormirem e acordarem com ela.
A escolha do filme Que horas ela volta?1 mostrou-se acertada para estimular o pensamento crítico de estudantes de graduação em fase de estágio-serviço, dado o engajamento observado no decorrer do debate e as relevantes temáticas bioéticas suscitadas. Recomenda-se, portanto, atividades como essa para alcançar objetivos semelhantes.
A partir do filme foi possível abordar antagonismos socioeconômicos e culturais da sociedade brasileira, constituidores de preconceitos sociais, violências simbólicas, machismo, racismo e autoritarismo, tão perceptíveis no Brasil contemporâneo. O debate que desvela essas patologias sociais resistentes em nosso cotidiano pôde ampliar a reflexão ética dos futuros profissionais e seu entendimento da sociedade e de sua participação social como profissionais e seres ético-políticos comprometidos com o trabalho no sistema de saúde brasileiro.
O emprego doméstico, elemento central do filme, representa a manutenção da exploração de um trabalho feminino socialmente desqualificado, em relações de submissão que constituem o Brasil atual mas remetem ao período escravista. A análise coletiva dos estudantes evidenciou a importância de superar a subalternidade, o poder despótico do mando patriarcal e o trato social autoritário e exploratório, especialmente da mulher trabalhadora, a fim de constituir nova civilidade. Apontou-se a necessidade de mudar o olhar sobre a própria divisão de papéis no trabalho e na família brasileira, contestando o uso do trabalho doméstico e dos cuidados da família como violência simbólica.
No filme, à medida que tem sua realidade contrastada com a forma de viver da filha, Val passa a problematizar sua subserviência. Tomando consciência de sua condição de mãe ausente e, ao mesmo tempo, mãe substituta do filho da patroa, com perdas pessoais irreparáveis, ela sugere a si mesma novas possibilidades de vida. A consciência de si no mundo se torna elemento constitutivo da busca por reduzir desigualdades e preconceitos historicamente construídos. Nesse sentido, a ampliação de direitos no âmbito do trabalho, da saúde e da cultura, ou seja, o avanço do processo civilizacional, dá protagonismo à ética. Apesar dos recuos temporários, esses processos afirmam cada vez mais o lugar da senzala na história brasileira, especialmente no impulso às políticas públicas afirmativas. Assim, mantém-se central o debate bioético sobre uma ética mínima necessária, uma ética pública historicamente defasada e uma ética da justiça ainda incipiente.
Doris Gomes concebeu o artigo. Todos os autores redigiram o manuscrito. Mirelle Finkler revisou criticamente o texto.
Rodrigo Otávio Moretti-Pires – Livre-docente – rodrigo.moretti@ufsc.br
Mirelle Finkler – Doutora – mirelle.finkler@ufsc.br
Correspondência Doris Gomes – Rua Rafael da Rocha Pires, 3.913, Sambaqui CEP. Florianópolis/SC, Brasil.