EDITORIAL
Este é o nosso último exemplar de 2021, ano de muitos esforços contra a pandemia de covid-19, de vacinação e de muitas reflexões importantes.
O editorial inicia com um tema que tem sido amplamente discutido, por envolver questões bioéticas: a análise da pandemia e as considerações bioéticas sobre o tratamento precoce. Sem polemizar, adotando o Parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) 4/2020 1 , não se trata de apoiar ou não o uso de qualquer medicamento, mas sim do pilar bioético da autonomia do médico e do paciente, sobretudo quando são observados os princípios da beneficência e da não maleficência. Ou seja, deve-se implementar uma verdadeira “aliança terapêutica” entre médico e paciente, cumprindo sempre as diretrizes emanadas da medicina baseada em evidências.
Como aponta Ferreira 2 , antes da pandemia o mundo já vinha enfrentando crises humanitárias e ambientais, injustiças sociais, emigração, sofrimento e morte. A pandemia, a insegurança epidemiológica, a limitação das liberdades, a perda da dignidade de muitos, o baixo investimento em saúde pública e o recrudescimento de doenças consideradas erradicadas, por ausência de vacinação, apenas maximizaram problemas existentes e expuseram as feridas da combalida saúde pública.
Temos que considerar que a covid-19 é uma doença com menos de dois anos de evolução, para a qual nenhum país do mundo estava preparado. Afinal, a declaração de emergência de saúde pública de importância internacional ocorreu em janeiro de 2020, e a pandemia foi reconhecida em março de 2020. Houve, a partir de então, muitas pesquisas para tentar resolver o problema e evitar a mistanásia, incluindo estudos sobre medicamentos e vacinas. No contexto do cuidado integral de saúde, a abordagem precoce e o uso de medicamentos na fase inicial da doença foram entendidos como uma tentativa possível de fornecer tratamento off label para minimizar os efeitos da pandemia. Nesses casos, era imprescindível que tanto o médico como o paciente estivessem informados de suas escolhas 3 .
O tema da autonomia do paciente segue sendo mencionado, considerando as diretivas antecipadas de vontade, que são, segundo Monteiro e Silva 4 , um instrumento para garantir ao paciente que sua vontade relativa a cuidados de saúde prevalecerá no fim da vida. Trata-se de uma importante ferramenta de auxílio à decisão médica na terminalidade da vida, que merece ser objeto de consenso entre médicos, pacientes e a sociedade em geral. As diretivas antecipadas representam a possibilidade de uma pessoa fazer escolhas de saúde por e para si própria quando está objetivamente incapacitada de expressar a sua vontade.
A evolução da medicina tem obrigado o direito e outras disciplinas a evoluir para normatizar os avanços tecnológicos. O direito tem papel fundamental para que esses avanços possam ser utilizados de forma legal 5 .
A morte continua sendo fonte de angústia e preocupação para a humanidade, mas faz parte dos fenômenos sociais que devem ser vivenciados por todos, embora de diferentes formas. As diretivas antecipadas de vontade – na forma de testamento vital ou nomeação de um procurador de cuidados de saúde – são a resposta do paciente aos grandes avanços tecnológicos da medicina e aos tratamentos médicos mais agressivos, cujos benefícios são discutíveis. O objetivo é evitar a distanásia.
No Brasil, o tema das diretivas antecipadas de vontade ganhou relevância e maior visibilidade após a Resolução CFM 1.995/2012 6 . O artigo 2º dessa resolução menciona que, nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de se comunicar ou expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração as diretivas antecipadas.
Outro tema abordado nesta edição são os cuidados paliativos pediátricos, que, segundo definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), previnem, identificam e tratam doenças crônicas, progressivas e avançadas em crianças, considerando as famílias e as equipes multidisciplinares que participam desse cuidado 7 .
Segundo Iglesias, Zollner e Constantino 8 , os cuidados paliativos pediátricos são diferentes dos cuidados prestados aos adultos. O número de crianças que morre é pequeno, muitas crianças sobrevivem até a idade adulta, e a assistência necessariamente envolve a família, durando vários meses ou até mesmo muitos anos. Assim, os cuidados paliativos pediátricos abrangem a parte física, espiritual, religiosa, psicológica e social, de acordo com os valores familiares, razão pela qual necessariamente são multidisciplinares, globais e sistemáticos. O objetivo é que nunca falte amor e conforto para a criança portadora de uma patologia que pode ameaçar sua vida.
A caracterização atual da objeção de consciência será também motivo de reflexão, na medida em que sua aplicação gera muitas controvérsias. No caso do aborto legal, por exemplo, que no Brasil é permitido em três circunstâncias (gravidez originada por estupro, risco de morte para a mãe e casos de anencefalia), quando um médico alega objeção de consciência, em se tratando de procedimento legalmente permitido, deve justificar sua recusa e encaminhar a paciente a outro profissional 9 .
A objeção de consciência não deixa de ser uma maneira de tutelar as diversidades de culturas, crenças, valores e convicções individuais presentes numa sociedade plural e tolerante. Trata-se de um direito do médico e um imperativo de consciência, devendo ser utilizado com enorme integridade pessoal. O assunto não se refere apenas à profissão médica, mas envolve também crenças e aspectos religiosos e éticos, relacionando-se tanto com a autonomia da mulher quanto com a autonomia de cada médico. Tendo em vista essa complexidade, o tema deveria acompanhar o currículo da faculdade de medicina.
Considerando ainda outros temas polêmicos, há a reprodução medicamente assistida e o fato de que a orientação sexual, o estado civil ou a condição cis/trans só excepcionalmente devem servir como argumentos legítimos de objeção de consciência 10 , visto que nenhuma forma de discriminação baseada em tais atributos é adequada.
Os paradigmas da bioética também são trazidos à reflexão, principalmente no que se refere à teoria principialista, que inclui o respeito à autonomia como novo princípio da ética médica. Beauchamp e Childress 11 propuseram uma nova teoria ética que apenas aplicava os princípios às situações conflituosas das relações dos profissionais de saúde com seus pacientes. Segundo Dejeanne 12 , além do princípio da autonomia, ao qual se juntam a beneficência, a não maleficência e a justiça, o princípio ético kantiano da autonomia da vontade deve ser tomado como fundamento filosófico moral determinante para discutir questões de bioética.
No artigo “ Vade mecum sobre o morrer e a morte”, são feitas reflexões sobre as representações da morte em diversas culturas e religiões. As representações da morte e do morrer têm sofrido alterações significativas no tempo e no espaço. A partir da segunda metade do século XX, a morte deixa de ser familiar e passa a ser algo com que o homem pós-moderno não se sente em condições de lidar, pois não admite que a morte faz parte do ciclo vital 13 .
Outro tema abordado neste número da revista é a ecologia, no texto “O novo regime climático do Antropoceno e de Gaia”. Trata-se de comentários acerca do momento em que vivemos, segundo as reflexões de Latour, que contesta a teoria darwiniana de que apenas os seres vivos se adaptam ao meio ambiente 14 . Segundo Latour, também o planeta é um organismo vivo, sujeito a mudanças, que interage com os seres vivos.
De fato, paralelamente à bioética, a ética ambiental tem se constituído como foco da atenção de cientistas e responsáveis por políticas públicas, nacional e internacionalmente, sendo hoje uma preocupação central sobretudo das gerações mais jovens. Isso porque existe uma progressiva consciência social da importância do ambiente e da biodiversidade, assim como da responsabilidade de deixar às gerações vindouras um planeta verdadeiramente sustentável.
Outro texto desta edição trata da guarda compartilhada à luz da bioética e do biodireito. Conforme Strong 15 , desde os primórdios da humanidade, a família sempre foi um grupo social que garantiu a sobrevivência de nossa espécie. A bioética, por ser multidisciplinar, pode avaliar de uma perspectiva privilegiada a família na época contemporânea. Nessa época de mudanças aceleradas, é necessário respeitar a família como organismo vivo à luz dos direitos humanos, com deveres e direitos recíprocos, diminuindo a vulnerabilidade social. A família é o elemento nuclear da humanidade, e a proteção das crianças – considerando sempre seu melhor interesse – é tanto um poder como um dever.
Finalmente, um artigo sobre a negação da discriminação e do estigma segundo a bioética analisa e discute esses tópicos considerando o papel do Estado na construção de políticas públicas antidiscriminatórias e contra a estigmatização. De acordo com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos16 , nenhum indivíduo ou grupo deve ser discriminado ou estigmatizado, por qualquer razão. Todo tipo de estigma ou discriminação viola a dignidade e os direitos humanos e as liberdades fundamentais do indivíduo.
Conforme Godoi e Garrafa 17 , violações recorrentes dos direitos humanos, discriminações e preconceitos por etnia, orientação sexual ou problemas de saúde, requerem defesa intransigente da bioética, pois aumentam a vulnerabilidade. Trata-se de tema altamente pertinente, basilar para a bioética.
Neste número ainda teremos vários outros temas interessantes na área de pesquisa. Uma excelente leitura a todos!
Referências
Conselho Federal de Medicina. Processo-Consulta CFM nº 8/2020 – Parecer CFM nº 4/2020 [Internet]. Brasília: CFM; 2020 [acesso 29 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/3ks1X8w
Ferreira S. Ética em tempos de covid-19. Resid Pediatr [Internet]. 2020 [acesso 31 out 2021];10(2):1-5. DOI: 10.25060/residpediatr-2020.v10n2-06
Organização Pan-Americana da Saúde. Histórico da pandemia de covid-19 [Internet]. 2020 [acesso 1º nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3D5Qcfm
Monteiro RSF, Silva A Jr. Diretivas antecipadas de vontade: percurso histórico na América Latina. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 1º nov 2021];27(1):86-97. DOI: 10.1590/1983-80422019271290
Santos GS. Testamento vital e diretivas antecipadas de vontade [dissertação] [Internet]. Capão da Canoa: Universidade de Santa Cruz do Sul; 2016 [acesso 1º nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3Hf4EUP
Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 29 out 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31S0stT
Castro REV. Considerações sobre cuidados paliativos pediátricos. Pebmed [Internet]. 2019 [acesso 29 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/30dJ3e6
Iglesias SBO, Zollner ACR, Constantino CF. Cuidados paliativos pediátricos. Resid Pediatr [Internet]. 2016 [acesso 1º nov 2021];6(supl 1):46-54. Disponível: https://bit.ly/3F3p6pG
Madeiro A, Rufino A, Santos P, Bandeira G, Freitas I. Objeção de consciência e aborto legal: atitudes de estudantes de medicina. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2016 [acesso 1º nov 2021];40(1):86-92. DOI: 10.1590/1981-52712015v40n1e02382014
Mascarenhas IL, Costa APCA, Matos ACH. Direito médico à objeção de consciência e a recusa em realizar procedimentos de reprodução assistida em casais homossexuais: a discriminação travestida de direito. Civilística.com [Internet]. 2021 [acesso 1º nov 2021];10(2):1-24. Disponível: https://bit.ly/3c1I9UL
Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002.
Dejeanne S. Os fundamentos da bioética e a teoria principialista. Thaumazein [Internet]. 2011 [acesso 1º nov 2021];4(7):32-45. Disponível: https://bit.ly/3ojVGNd
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Godoi AMM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saúde Soc [Internet]. 2014 [acesso 1º nov 2021];23(1):156-66. DOI: 10.1590/S0104-12902014000100012
Autor notes
José Hiran da Silva Gallo – Doutor – gallo@portalmedico.org.br
Rui Nunes – Doutor – ruinunes@med.up.pt