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Atuação da equipe de saúde nos cuidados paliativos pediátricos
Performance of the health team in pediatric palliative care
Actuación del equipo de salud en los cuidados paliativos pediátricos
Revista Bioética, vol. 29, núm. 4, pp. 697-705, 2021
Conselho Federal de Medicina

Atualização


Recepção: 8 Maio 2020

Revised document received: 18 Outubro 2021

Aprovação: 20 Outubro 2021

DOI: https://doi.org/10.1590/1983-80422021294503

Resumo: Por meio de revisão narrativa da literatura, este artigo discute e suscita reflexões a respeito das relações de cuidado estabelecidas entre criança, família e equipe de saúde no contexto dos cuidados paliativos pediátricos. Compreende-se que o adoecimento crônico implica desequilíbrios físicos, sociais, psicológicos e espirituais para a criança, todavia uma doença grave que ameaça a vida ultrapassa os limites do seu corpo e repercute também no âmbito familiar e afetivo, de modo que a família, engendrada historicamente como responsável pelo cuidado, também necessita de atenção em saúde. Portanto, este texto debruça-se sobre o sofrimento sociofamiliar, reforçando a compreensão humanizada, ensejada pelos cuidados paliativos, de paciente e família como uma unidade de cuidados.

Palavras-chave: Cuidados paliativos, Família, Relações profissional-família, Cuidado da criança, Humanização da assistência.

Abstract: Through a narrative review of the literature, this article discusses and raises reflections on the care relationships established between children, families, and health teams in the context of pediatric palliative care. It is understood that chronic illness implies physical, social, psychological and spiritual imbalances for the child, however a serious disease that threatens life goes beyond the limits of their body and also affects the family and affective environment, so that the family, historically conceived as responsible for care, also needs health care. Therefore, this text focuses on socio-family suffering, reinforcing the humanized understanding, provided by palliative care, of patient and family as a care unit.

Keywords: Palliative care, Family, Professional-family relations, Child care, Humanization of assistance.

Resumen: A través de una revisión narrativa de la literatura, este artículo discute y plantea reflexiones sobre las relaciones de cuidado establecidas entre niños, familias y equipos de salud en el contexto de los cuidados paliativos pediátricos. Se entiende que la enfermedad crónica implica desequilibrios físicos, sociales, psicológicos y espirituales para el niño, sin embargo, una enfermedad grave que amenaza la vida va más allá de los límites de su cuerpo y afecta también al entorno familiar y afectivo, por lo que la familia, históricamente concebida como responsable del cuidado, también necesita cuidados de salud. Por lo tanto, este texto se centra en el sufrimiento socio-familiar, reforzando la comprensión humanizada, proporcionada por los cuidados paliativos, del paciente y la familia como unidad de cuidado.

Palabras clave: Cuidados paliativos, Familia, Relaciones profesionales-familiares, Cuidado de los niños, Humanización de la asistencia.

A família é considerada elemento fundante das sociedades 1 e, por ser o primeiro núcleo de socialização do indivíduo, propicia a proteção psicossocial dos seus membros, por meio dos vínculos desenvolvidos, e a difusão da cultura na qual ela mesma se insere. Desse modo, pode ser definida como núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar, durante um lapso de tempo mais ou menos longo e que se acham unidas (ou não) por laços consanguíneos. Ela tem como tarefa primordial o cuidado e a proteção de seus membros, e se encontra dialeticamente articulada com a estrutura social na qual está inserida2 .

Cada família tem uma dinâmica específica e organiza-se de acordo com um conjunto implícito de regras e normas 1 . No decorrer dos anos, foram legitimadas novas configurações familiares, cada vez mais livres e democráticas, entretanto, apesar das mudanças históricas, a família mantém o papel de cuidado e proteção, caracterizando-se como um sistema de saúde para seus membros 3 .

O cuidado envolve a construção de projetos de pessoa e, na relação entre adulto e criança, materializa-se uma estrutura de papéis sociais. Assim, o processo de identificação da criança e do adolescente e o estabelecimento de um sentido para a vida objetiva-se de modo relacional, no cotidiano de interações com o adulto. Através de cuidados corporais cotidianos, os adultos que cuidam da criança visam ao mesmo tempo dar ao corpo da criança sua forma adequada e construí-la como indivíduo singular e como pessoa relacional, com sua “natureza” dominada4 .

Além de prover bem-estar, coube à família articular um espaço higiênico, pregando uma vida disciplinada e laboriosa 5 . Como já pontuado anteriormente, a família é um subsistema e está diretamente ligada ao sistema em que se insere, de modo que não é possível compreendê-la em seu microespaço sem antes relacioná-la ao todo. Dessa forma, as funções incumbidas a ela fazem parte de um projeto de sociedade que visa conservar uma ordem vigente, no qual o cuidado ocupa papel central como mecanismo de repasse de valores, crenças e comportamentos.

Scavone 6 ressalta que o cuidar foi expurgado do campo médico profissional e restringido ao âmbito privado, afetivo e familiar. A oposição entre cuidar e curar desvaloriza o primeiro, ao designá-lo como não profissional e, portanto, de menor valor. Dessa forma, além de ser responsabilizada pelo cuidado, a família tem seu esforço desprestigiado, apesar de, no outro polo, seu papel ser romantizado. Pouco se observa da noção de responsabilidade partilhada entre família, sociedade e Estado, o que é problemático, pois o desempenho do cuidado por parte da família é perpassado por intenso sofrimento.

A disposição da família para o cuidado exige constantes adaptações, pois, por ocasião do adoecimento de um de seus membros, o sistema fica abalado e a família precisa recorrer a seus recursos internos e externos para lidar com a doença7 . O esforço é ainda maior quando do adoecimento de uma criança, pois está em jogo também a defesa da construção de um projeto, um vir-a-ser. Ao diagnosticar uma doença grave e ameaçadora à vida, põe-se em xeque este projeto e o futuro vislumbrado.

Este artigo objetivou discutir e suscitar reflexões a respeito das relações de cuidado estabelecidas entre criança, família e equipe de saúde no contexto de cuidados paliativos pediátricos. Para tal, foram selecionados artigos por meio do método de revisão narrativa de literatura, que se refere à seleção não sistemática de produções bibliográficas que permitem narrar e discutir o tema em tela. Os artigos selecionados foram lidos e discutidos, de modo a reunir argumentos e reflexões para ensejar o debate proposto nesta pesquisa, que se caracteriza como bibliográfica e qualitativa.

A princípio, introduziu-se a temática família, situando-a conceitual e sócio-historicamente; depois, explicitou-se o sofrimento vivenciado pela família e rede de afeto no contexto dos cuidados paliativos pediátricos. Em seguida, após questionar quem seria responsável pelo cuidado das crianças e adolescentes no que diz respeito à saúde, apontou-se para o papel da equipe de saúde no acolhimento e apoio não apenas ao paciente, mas também à família, mediante comunicação empática e honesta. Por fim, ressaltou-se a importância da humanização nas intervenções em saúde, considerando o intenso sofrimento que criança e família vivenciam em meio a uma doença grave e ameaçadora à vida.

Sofrimento sociofamiliar no contexto dos cuidados paliativos pediátricos

No século XX houve controle das taxas de mortalidade neonatal e infantil 8 , mas também aumento do número de pessoas frágeis, com doença crônica 9 . No caso de crianças e adolescentes, a doença crônica não apenas afeta o desenvolvimento natural, mas modifica significativamente atividades cotidianas e relações familiares. Ela ultrapassa os limites do corpo da criança e atinge de formas diferentes cada pessoa e cada família.

A incorporação de novas tecnologias, o emprego de tratamentos cada vez mais eficazes, o desenvolvimento das diversas subespecialidades pediátricas aliadas à proliferação das unidades de tratamento intensivo pediátrico (Utip) e neonatal (Utin), permitiram a sobrevivência de crianças que até pouco tempo eram consideradas inviáveis e morriam precocemente. Paralelamente, gerou-se um grupo de crianças portadoras de doenças crônicas com sequelas graves, dependentes de tecnologia e, muitas vezes, com uma reduzida expectativa de vida 10 .

A realidade de adoecimento crônico complexo exige uma abordagem de saúde que perceba e acolha totalmente o ser humano em desenvolvimento, compreendendo-o não apenas no aspecto físico, mas também social, psicológico e espiritual. Nesse sentido emerge o cuidado paliativo, uma abordagem que promove qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, pela prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual11 .

O cuidado paliativo pediátrico é ativo e abrange corpo, mente e espírito da criança, proporcionando apoio à família. Deve ser aplicado por equipe interdisciplinar desde o diagnóstico de doença ameaçadora à vida e evoluir progressivamente, de acordo com as necessidades e individualidade do paciente 12 . Doenças congênitas e genéticas são os principais diagnósticos que suscitam a indicação de cuidados paliativos no âmbito da pediatria, seguidas de condições neurológicas crônicas e onco-hematológicas 12 .

A perspectiva do paciente e família como unidade de cuidados justifica-se pela compreensão de que o sofrimento, em suas diversas dimensões, é vivenciado não apenas pela criança, mas também por seus parentes. O contexto de adoecimento exige constantes cuidados e adaptações 13 , tendo em vista os impactos sociais, psicológicos e financeiros implicados. Assim, as mudanças que a doença acarreta e as adaptações que a família conseguirá realizar dependem dos recursos de que dispõe e do significado que atribui ao acontecimento 7 .

Como fatores que tencionam o processo de cuidado, Andrade destaca o estresse, a sobrecarga de cuidadores, as alterações drásticas na dinâmica familiar e o empobrecimento. O stress e a sobrecarga tendem a se intensificar quanto maior a dependência, quanto mais grave estiver o paciente e quanto menos ajuda obtiver o familiar responsável pelo cuidado14 .

O cuidador torna-se vulnerável pela vivência, que se transforma num fardo, pela restrição de atividades da vida cotidiana, pelos sentimentos de medo, insegurança e solidão, pela ausência de apoio e pela morte da pessoa cuidada 1 . Doar-se ao cuidado, muitas vezes, implica renunciar a projetos de vida 14 , e o mais difícil não é necessariamente a tarefa em si, mas a dedicação em satisfazer as necessidades do outro, em detrimento das próprias 14 .

A decisão sobre quem ocupará a posição de cuidador é geralmente arbitrária 1 . A imposição para ser cuidador relaciona-se ao perfil esperado, ao lugar social do cuidador, à proximidade afetiva, aos papéis sociais a serem exercidos dentro das famílias e à falta de alternativa diante do cuidado que se impõe14 . Tal responsabilidade recai geralmente sobre a figura feminina, a mãe, no entanto é necessário desnaturalizar esse processo.

Os cuidados pela saúde não são frutos de uma determinação biológica entre os sexos, mas sim das relações sociais de sexo/gênero6 . Dessa forma, não cabe apenas à mulher, mas a toda a família, pois o cuidador se faz no cuidar15 , no dia a dia de vivências e aprendizados desempenhando a função, visto que, independentemente do gênero, para cuidar é necessário dispor-se. Para sustentar-se, essa disposição busca alicerce na solidariedade com o(a) companheiro(a) de vida, no desejo de retribuição, no horror ao asilamento e na ausência de alternativas 9 e gratifica-se pela sensação de dever cumprido.

Quando se trata de uma criança, os sentimentos que permeiam essa realidade tendem a ser intensificados, pois a gravidade do quadro clínico e eventual morte geram maior mobilização emocional 8 , em decorrência da precocidade, considerando que, quanto mais tarde a morte ocorrer no ciclo de vida, menor é o estresse associado a ela 7 . Na evolução natural, é mais compreensível o falecimento de um idoso do que de uma criança, embora a morte, por si só, seja considerada um tabu.

Historicamente, a criança ocupa na sociedade um lugar de apego, de alguém que necessita de cuidado integral 16 . Desse modo, seu óbito perpassa nuances complexas e sensíveis, justamente por não ser socialmente esperado 16 . Assim, a dificuldade de lidar com a morte precoce, de uma criança, reflete-se na família, na comunidade, na sociedade e, inclusive, na equipe de saúde.

Nos caminhos clínicos, os diagnósticos em muitos casos coincidem, porém a forma de enfrentamento dependerá dos recursos financeiros, sociais, psicológicos e espirituais de que cada paciente e família dispõem. Nesse sentido, a família necessita de apoio para protagonizar o papel de cuidado. Entretanto, esse papel não cabe somente a ela, pois existem outros atores nessa cena, que necessitam subir ao palco para garantir a prevenção e alívio de uma dor total e viabilizar um fim de vida digno.

Afinal, de quem é a responsabilidade?

O artigo 226 da Constituição Federal estabelece que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado. Na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), a centralidade da família é explicitamente reconhecida, sendo considerada como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias, provedora de cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e protegida17 .

Na área da saúde, em especial nos serviços de atenção primária, a família é considerada uma aliada para definir ações de promoção, prevenção ou cura. Entretanto, alguns autores chamam atenção para o fato de que esses serviços nem sempre têm a clareza de quem constitui a família, objeto de sua prática , nem dos laços de parentesco que se apresentam nela, aspectos que têm implicações no tratamento terapêutico18 .

Apesar de seu destaque nas políticas públicas, a família não costuma ser compreendida de maneira adequada e muito menos dispor de mecanismos e recursos suficientes para executar as ações de proteção social a ela delegadas. Este aspecto configura o “familismo”, entendido como a transferência da responsabilidade estatal para a instituição familiar, assim como a responsabilização excessiva da família no cuidado de seus membros em detrimento da participação societária e estatal 5 .

O familismo é historicamente legitimado em mecanismos jurídicos, que, de forma indireta, regulamentam a responsabilidade da família pelo cuidado, como o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 15 . Esses são exemplos nítidos da tendência à regressão da participação do Estado no cuidado, fato que ocasiona grande sobrecarga à família, que fica encarregada de responder às necessidades de seus membros e da sociedade 7 .

A omissão do Estado vai de encontro à responsabilização compartilhada, preconizada no artigo 4º do ECA, Lei 8.069/1990: é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária19 .

Conforme disposto na Carta dos Direitos da Criança em Fim de Vida 20 , a criança em cuidados paliativos deve ser respeitada em sua personalidade, individualidade, valores, história de vida e rotina diária. Ademais, necessita de apoio e suporte adequados que lhe garantam a qualidade de vida durante todo o processo de evolução, tratamento da doença e morte.

Crianças e adolescentes em cuidados paliativos, muitas vezes dependentes de tecnologias para manutenção da vida, são invisibilizadas e despersonalizadas. Vivem restritas ao leito, conectadas a diversos dispositivos, e apresentam vínculos familiares fragilizados em virtude da sobrecarga da cuidadora principal. Além disso, são segregadas da sociedade e mantêm convívio exclusivo com o ambiente domiciliar ou institucional e profissionais de saúde, sendo totalmente privadas do acesso à educação, ao lazer, à cultura e, consequentemente, à dignidade humana.

Dessa forma, apesar de terem acesso ao direito à saúde, mesmo que de forma precária, os demais direitos que lhes cabem são, na maioria das vezes, negligenciados. Diante disso, é necessário reconhecer essas crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e proporcionar-lhes voz ativa. Tristán elaborou proposta de declaração dos direitos de crianças com doença em estágio terminal, que bem expressa a necessidade do protagonismo destas no direcionamento do seu cuidado, verbalizando em primeira pessoa os direitos de meninos e meninas:

Tenho direito de ser visto e concebido como um sujeito de direitos e não como propriedade dos meus pais, médicos ou da sociedade; Tenho direito de opinar na tomada de decisões, já que sou eu que estou doente; Tenho direito de chorar; Tenho direito de não ficar sozinho; Tenho direito de fantasiar; Tenho direito de brincar; pois mesmo em estágio terminal eu ainda sou uma criança, ou me comporto como adolescente; Tenho direito ao controle de dor desde o meu primeiro dia de vida; Tenho direito à verdade sobre minha condição, que se responda com honestidade e sinceridade às minhas perguntas; Tenho direito de contemplarem minhas necessidades de forma integral; Tenho direito a uma morte digna, cercado por meus entes queridos e objetos amados; Tenho direito de morrer em casa, se assim o desejar; Tenho direito de sentir e expressar meus medos; Tenho direito a que meus pais sejam auxiliados a elaborar minha morte; Tenho direito de sentir raiva, angústia e frustração pela minha doença; Tenho direito a me negar a seguir recebendo tratamento quando não existir cura para minha doença, mas sim qualidade de vida; Tenho direito a cuidados paliativos, se assim o desejar; Tenho direito de ser sedado quando enfrentar minha morte, se assim o desejar; Tenho direito a não sentir dor quando realizarem procedimentos de diagnóstico e tratamento da minha doença; Tenho direito que meus pais compreendam que, embora eu os ame muito, vou para uma nova vida 21 .

Para além da garantia de direitos, é de fundamental importância acolher o nível de compreensão da criança em cuidados paliativos, para que ela seja respeitada em sua individualidade. Isso vale tanto para as que são capazes de verbalizar, quanto para as que não dispõem dessa capacidade, por seu estágio de desenvolvimento ou condição clínica.

O cuidado paliativo, além de representar uma abordagem de saúde pública, é uma questão de direitos humanos 8 . Proteger integralmente e garantir os direitos das crianças e adolescentes em cuidados paliativos é um desafio complexo, que perpassa a compreensão da sociedade acerca de jovens com doenças crônicas e limitantes de vida, o fortalecimento da rede de suporte social, do contexto sociofamiliar ou institucional em que estão inseridas, bem como a efetivação de políticas públicas.

Nesta perspectiva, o assistente social, em parceria com a equipe multidisciplinar, tem papel fundamental. Com seus instrumentais técnico-operativos, ele avalia os fatores de risco e de proteção vivenciados pela criança, identifica seus familiares e cuidadores e conhece seus limites e potencialidades, de modo a auxiliar na construção conjunta de estratégias para o bem-estar do núcleo familiar e garantir os direitos da criança em cuidados paliativos pediátricos. Desta forma, corrobora a humanização do cuidado e o protagonismo da família como sujeito ativo do processo, e não como mero objeto de intervenção 22 .

Paciente e família

Atuação da equipe de saúde nos cuidados paliativos pediátricos

Na concepção dos cuidados paliativos, paciente e família compõem uma unidade e, portanto, esta deve ser incluída na perspectiva da equipe 23 . Como já pontuado, o processo de adoecimento e a eminência de óbito infantil implicam intenso sofrimento para todos os envolvidos e, por isso, a equipe de saúde precisa ouvir, compreender e acompanhar, atendendo a demandas que, muitas vezes, estão implícitas e exigem uma abordagem mais atenta e sensível.

Em estudo realizado nos Estados Unidos, pais de crianças que faleceram em unidades de terapia intensiva pediátrica referiram que nesse processo são prioridade informação completa e honesta, acesso regular e fácil ao profissional médico, coordenação e alinhamento na comunicação, envolvimento emocional por parte da equipe, preservação da relação entre pais e filhos e suporte espiritual 24 .

Fonseca e Rebelo 25 , em revisão bibliográfica, ressaltam que os fatores que contribuem para o desempenho da função dos cuidadores são: o suporte fornecido pela equipe de cuidados paliativos, a experiência prévia com outra situação de cuidado, a qualidade da relação com o doente e a mentalidade de viver um dia de cada vez. Por outro lado, são obstáculos a necessidade súbita de desempenhar tal papel, a responsabilidade associada, a dificuldade de comunicação com a equipe médica, a não inclusão na discussão do plano de cuidados, a imprevisibilidade do momento e a frustração de esperar a morte.

Lidar com uma doença que ameaça a continuidade da vida exige muito de todos os envolvidos. Portanto é necessário que cada elemento da composição (paciente-família-equipe) desempenhe seu papel da melhor forma possível e os três partícipes se unam em uma aliança terapêutica 9 . Para tanto, é importante que o profissional de saúde saiba escutar e observar, de forma a captar a situação vivenciada pelo doente, de acordo com o significado que esta tem para ele 26 .

Diante da inviabilidade de uma cura para a doença, o objetivo terapêutico redireciona-se ao cuidado por meio do controle de sintomas e dos esforços para garantir a qualidade de vida. Na verdade, o objetivo desde o princípio deveria ser esse, em todas as relações de saúde, conforme o compromisso médico “curar algumas vezes, aliviar frequentemente, confortar sempre”, atribuído a Hipócrates. Como nessa relação de cuidado focada na pessoa é essencial conhecer sua biografia, relações, desejos, valores e preferências, o diálogo é central. Magalhães e Franco afirmam que a condição dialógica é fundamental na terminalidade27 , uma vez que, além do diálogo, contempla o respeito e a autonomia.

A personalidade do profissional, portanto, também é um instrumento de cuidado 8 , no que diz respeito a sua capacidade, disponibilidade e potência profissional. Ademais, as instituições de saúde e ensino contribuem positivamente, promovendo ações para aprimorar e capacitar trabalhadores. Além disso disponibilizam espaços de atenção àqueles que cuidam, acolhendo suas dores, amenizando o sofrimento e auxiliando na criação de estratégias para enfrentamento.

Apesar disso, nota-se despreparo dos profissionais para assistir, entender, acompanhar e ajudar um ser humano antes do seu óbito 9 . Como o cuidado paliativo pediátrico requer uma comunicação adequada e acolhedora, é necessário saber o que, quando e como falar e até mesmo calar. O paliativista pediátrico deve trabalhar de modo “relacional, humanizado e afetivo”, com consciência de seus pensamentos e sentimentos, com autocuidado e autocontrole emocional. Assim, o profissional é capaz de expressar uma reação “apropriada” na interação com pacientes e familiares, para alcançar consenso nas decisões de final de vida8 .

Além da competência técnica, o cuidado paliativo exige do profissional de saúde habilidades interpessoais e a comunicação e o compartilhamento de decisões ocupam papel fundamental no desempenho do cuidado. A família deverá ser informada sobre a evolução da doença, alertada para possíveis sintomas e para o desenrolar da etapa final25 . Tais informações, que muitas vezes se caracterizam como más notícias, devem se dar de acordo com o que paciente e família desejam saber e estejam preparados para receber, de forma progressiva, contínua e acessível 28 .

O paciente tem direito de abdicar dessas informações, indicando um familiar ou alguém próximo para estabelecer a comunicação e compartilhar decisões de saúde. Por outro lado, é difícil para um parente lidar com esse conhecimento, pois ele nem sempre sabe como geri-lo junto ao enfermo, o que pode gerar uma conspiração do silêncio 9 e implicar mais sofrimento. Isso reforça a importância da atuação da equipe de saúde no desenvolvimento de uma escuta ativa e comunicação efetiva.

A assistência profissional no momento do óbito da criança afetará diretamente a vivência posterior: o luto. Nesse sentido, fortalecer a família e apoiá-la no desempenho da função partilhada de cuidado é essencial em sua busca de significado para o fim da vida e sentido para a tarefa de cuidar 1 . Quando a família tem condições de estar presente, quando há um sentimento de tranquilidade/missão cumprida sobre o processo de acompanhamento da pessoa que parte, o luto parece ser mais fácil9 .

Família, sociedade e Estado, este representado pela equipe de saúde, trabalhando juntos, podem e devem garantir que a vida do paciente seja confortável, com qualidade, e sua partida seja digna e tranquila, o fim de um sofrimento. Para quem fica, que perdure apenas o amor vivenciado.

Considerações finais

Humanizar diz respeito a tornar(-se) humano, benévolo, ameno, tolerável; dar ou adquirir condição humana; humanar(-se). O cuidado paliativo, por encarar uma das maiores fragilidades do ser humano – a morte –, necessita de uma abordagem humanizada. Essa realidade expõe os mais profundos sentimentos, diversas vulnerabilidades e dimensões do sofrimento, sendo um espaço de muita potência que, por isso, exige sensibilidade.

A evolução dos mecanismos técnico-científicos levou a morte a um lugar de isolamento social 8 . O cuidado paliativo desenvolve-se em resposta a essa marginalização e em oposição à obstinação terapêutica e intervenções fúteis, redirecionando o foco da intervenção da doença para a pessoa. Enxergar o ser humano em sua inserção biopsicossocial transforma a assistência em saúde, e essa transformação, viabilizada pela humanização das relações de cuidado, passa pela radicalidade democrática do bem comum 29 .

Para garantir o bem comum, é necessário alinhar a tríade criança-família-equipe, com cada parte assumindo suas responsabilidades e efetivando seus direitos, e reconhecê-la como uma unidade de cuidados. Nessa relação existem diversos cuidados: autocuidado, cuidado com o outro, tarefa de cuidar, profissão.

Cuidar, portanto, é muito mais que um momento – é afeto, ocupação, entrega, troca – e envolve encontros terapêuticos 30 entre sujeitos que buscam soluções e sentidos para o processo de adoecimento. Quanto mais o cuidado se torna uma experiência de encontro, de trocas dialógicas verdadeiras, quanto mais se afasta de uma exclusiva aplicação de saberes instrumentais, mais a intersubjetividade ali experimentada retroalimenta seus participantes de novos saberes tecnocientíficos e práticos30 . Os participantes nessa situação são paciente, equipe e família 27 .

O encontro entre criança, família e equipe de saúde deve resultar em uma relação humana, de trocas, que vise o bem de todos. Nessa relação, o cuidado paliativo encontra sentido no respeito e proteção, de modo a garantir a inviolabilidade da dignidade humana em todas as etapas da vida.

A palavra “paliativo” deriva do latim pallium e refere-se ao manto que os cavaleiros usavam para se proteger das intempéries do tempo durante as Cruzadas. Portanto, paliar significa proteger, amparar. A nós, profissionais de saúde, cabe cuidar, humana e competentemente, daqueles que nos confiaram o tempo precioso de sua limitada vida, envolvendo a criança num manto de proteção, por uma vida e morte dignas. Somos privilegiados por trabalharmos com pessoas que sofrem, que estão doentes, que estão morrendo, porque é neste momento que o ser humano se dá conta da sua humanidade, e é aí que ele ensina. Quem estiver por perto, que aproveite para aprender31.

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Autor notes

Wesley Coelho da Silva – Especialista – wesleycoelhods@gmail.com

Elainne Maria da Silva Rocha – Especialista – elainnemaria@gmail.com

Participação dos autores

Ambos os autores contribuíram ativamente em todas as etapas de produção deste manuscrito: revisão, reflexão e escrita.

Correspondência: Wesley Coelho da Silva – QNO 3, conjunto B, casa 55, Ceilândia Norte CEP 72250-302. Brasília/DF, Brasil.

Declaração de interesses

Declaram não haver conflito de interesse.


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