Resumo: O presente estudo reflete sobre a autonomia do enfermeiro no cuidado à pessoa com lesão crônica. O trabalho em enfermagem é influenciado por dimensões tecnológicas e definido pela responsabilidade profissional e o compartilhamento de atividades com outras categorias, fatores que impactam diretamente a autonomia do enfermeiro no tratamento de lesões crônicas. Por isso, é importante reconhecer as competências e limitações do trabalho desse profissional, de modo a reorientar condicionamentos. A autonomia do enfermeiro não deve se sobrepor à autonomia do paciente. Mediante ações educativas, deve-se considerar a heterogeneidade de papéis para assegurar a integridade do paciente e garantir a adesão terapêutica, enfatizando a importância da corresponsabilidade no processo de cura.
Palavras chave: Ferimentos e lesõesFerimentos e lesões,BioéticaBioética,Ética profissionalÉtica profissional,JurisprudênciaJurisprudência,Competência profissionalCompetência profissional,Cuidados de enfermagemCuidados de enfermagem,Autonomia profissionalAutonomia profissional.
Abstract: This study reflects on nurses’ autonomy in caring for people with chronic injuries. Nursing work is influenced by technological dimensions and defined by professional responsibility and the sharing of activities with other categories, factors that directly impact nurses’ autonomy in the treatment of chronic injuries. Therefore, it is important to recognize the skills and limitations of this professional’s work, in order to reorient conditionings. The nurse’s autonomy should not take precedence over the patient’s. Through educational actions, the heterogeneity of roles must be taken into account to ensure patient integrity and ensure therapeutic adherence, emphasizing the importance of co-responsibility in the healing process.
Keywords: Wounds and injuries, Bioethics, Ethics, professional, Jurisprudence, Professional competence, Nursing care, Professional autonomy.
Resumen: El presente estudio reflexiona sobre la autonomía del enfermero en el cuidado de la persona con lesión crónica. El trabajo de enfermería está influenciado por las dimensiones tecnológicas y definido por la responsabilidad profesional y el compartir de actividades con otras categorías, factores que impactan directamente la autonomía de los enfermeros en el tratamiento de las lesiones crónicas. Por lo tanto, es importante reconocer las habilidades y limitaciones del trabajo de este profesional, con el fin de reorientar el condicionamiento. La autonomía del enfermero no debe superponerse con la autonomía del paciente. A través de acciones educativas, se debe tener en cuenta la heterogeneidad de roles para asegurar la integridad del paciente y asegurar la adherencia terapéutica, enfatizando la importancia de la corresponsabilidad en el proceso de curación.
Palabras clave: Heridas y lesiones, Bioética, Ética profesional, Jurisprudencia, Competencia profesional, Atención de enfermería, Autonomía profesional.
Atualização
Autonomia do enfermeiro no cuidado à pessoa com lesão crônica
Nurse autonomy in caring for people with chronic injuries
Autonomía del enfermero en el cuidado de personas con lesión crónica
Recepção: 13 Agosto 2019
Revised document received: 16 Fevereiro 2021
Aprovação: 15 Abril 2021
O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a autonomia do enfermeiro no cuidado à pessoa com lesão crônica. Abordar esse tema, relacionando-o com outras áreas do conhecimento, é altamente relevante, dada a importância da respeitabilidade e da confiança da equipe interdisciplinar de saúde no enfermeiro, que compartilha responsabilidades, deveres, proibições e direitos com essa equipe 1 .
Trata-se de estudo teórico-conceitual fundamentado em referências atualizadas, coletadas na base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde, e em documentos oficiais disponíveis on-line, considerando um recorte temporal de cinco anos (de 2015 a 2020). Foram incluídos textos que tratassem da autonomia do enfermeiro em relação com aspectos éticos, bioéticos e legais, especificamente no que se refere ao cuidado à pessoa com lesões/feridas na pele.
É considerado autônomo o enfermeiro que age com consciência de seus espaços de atuação e visa tanto a própria satisfação como a daqueles que usufruem de seu trabalho, considerando a relevância de suas ações para as pessoas, os processos de trabalho e os serviços de saúde1 . Como integrante da equipe de saúde, o enfermeiro tem papel de destaque na elaboração de protocolos e na avaliação, seleção e indicação de novas tecnologias de prevenção e tratamento de pessoas com feridas2 , 3 . Além disso, para avaliar, tratar e prevenir lesões de modo resolutivo, são necessários conhecimentos científicos2 .
A pessoa com lesão crônica deve ser assistida por equipe multidisciplinar formada por médico, enfermeiro, psicólogo, nutricionista, fisioterapeuta etc.2 , 4 . Por meio da Resolução 567/20185 , o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) ampliou a atuação técnica do enfermeiro no tratamento de feridas e estabeleceu normas para clínicas de enfermagem especializadas no cuidado ao paciente com feridas. Além dessas normativas legais, observa-se maior procura por formação lato sensu nas áreas de enfermagem dermatológica e cirúrgica, estomaterapia e outras áreas relacionadas ao tratamento de lesões na pele6 .
Acompanhando esses avanços (associados à maior disponibilidade de recursos terapêuticos e ao apoio dos serviços de saúde), tem ganhado relevância a questão da autonomia do enfermeiro na prevenção e tratamento de lesões crônicas4 . Nesse contexto, é importante reconhecer as limitações do trabalho desse profissional, de modo a reorientar condicionamentos e assegurar a confiança e o respeito na relação enfermeiro-paciente.
Todo indivíduo, com suas próprias opiniões, pensamentos e perspectivas, tem direito de exercer sua autonomia com fundamento na moral, crenças e aspirações pessoais, ainda que haja divergência com normas sociais7 . Cabe ao enfermeiro fornecer orientações indispensáveis para a tomada de decisão, sem qualquer tipo de persuasão ou manipulação, respeitando o paciente, valorizando seu direito à dignidade, à privacidade e à liberdade e considerando suas responsabilidades sociais7 , 8 .
Na comunicação com a pessoa com lesão crônica, o enfermeiro deve combater o desconhecimento que leva a ações equivocadas, informando o paciente sobre métodos preventivos e terapêuticos9 . A relação terapêutica deve se alicerçar na ética e na promoção da saúde, em uma busca que leva o enfermeiro a desenvolver competências profissionais continuamente.
O trabalho do enfermeiro é desenvolvido em instituições de saúde, que são ambientes complexos e de caráter multidisciplinar. Todas as ações do profissional nesse ambiente devem ter lastro na bioética, que passa pelo trabalho de análise e “introversão” (isto é, autorreflexão), não bastando somente a “boa intenção”. A autorreflexão nos permite descobrir que somos seres frágeis, falíveis e insuficientes, dependentes de mútua compreensão7 , 9 .
Considerada o maior órgão do corpo humano, a pele constitui cerca de 16% de todo o peso corporal e cumpre diversas funções, como termorregulação e barreira física entre o corpo e o meio ambiente, de forma a impedir a penetração de microrganismos10 . Quando ocorrem alterações sérias nessa estrutura, desenvolvem-se as lesões, causadas por uma série de fatores: pressão local e traumas isquêmicos, mecânicos ou químico-físicos, involuntários ou voluntários (caso de cirurgias, por exemplo).
As lesões têm impacto nos gastos públicos e reduzem a qualidade de vida das pessoas10 , 11 . Elas acometem a população em geral, sem distinção de sexo, faixa etária ou etnia, e avaliá-las, preveni-las e tratá-las são atividades assistenciais hoje quase exclusivas do profissional de enfermagem. Desse modo, é necessário que tal profissional conheça os fatores de risco e anátomo-fisiológicos considerados fundamentais para diagnosticar o tipo de lesão e a melhor conduta preventiva e terapêutica a ser seguida. As ações de prevenção e tratamento são dinâmicas e precisam estar de acordo com as evidências científicas e a tecnologia disponível, por meio da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE)10 , 12 .
A SAE, fundamentada na Resolução Cofen 358/200913 , não deixa dúvidas sobre a obrigatoriedade de sistematizar a assistência e implementar o processo de enfermagem (PE) em todos os ambientes, privados ou públicos, onde o cuidado é realizado pelos profissionais de enfermagem. O PE tem cinco etapas inter-relacionadas, interdependentes e recorrentes: coleta de dados de enfermagem; diagnóstico de enfermagem; planejamento de enfermagem; implementação; e avaliação de enfermagem13 . O enfermeiro deve utilizar o PE no atendimento aos pacientes acometidos por lesão, visando uma assistência qualificada e individualizada6 .
Como suporte teórico que estabelece todas as etapas do atendimento, o PE é denominado “consulta de enfermagem” quando realizado em instituições de serviços ambulatoriais de saúde, domicílio, associações comunitárias ou clínicas de enfermagem especializadas na prevenção e cuidado ao paciente com feridas. Assim, como “consulta de enfermagem”, o planejamento e a prescrição da assistência de enfermagem são atividades privativas do enfermeiro5 , 6 , 13 .
A prescrição da cobertura é embasada no conhecimento fisiopatológico da lesão, nas atribuições éticas e legais do profissional e nas normas de vigilância sanitária. Além disso, uma mesma tecnologia pode não ser eficaz para todas as fases de cicatrização ou para todos os pacientes2 , 10 , cabendo ao enfermeiro, em sua autonomia e com seu conhecimento, prescrever a terapêutica mais indicada em cada fase do processo.
A prescrição de medicamentos e coberturas, bem como a solicitação de exames, deve ser realizada conforme protocolos, guias, manuais e notas técnicas estabelecidas por instituições e programas de saúde pública, considerando a Lei 7.498/1986, que regulamenta o exercício da enfermagem3 , 5 . Essa lei estabelece que cabe ao Enfermeiro da área a participação na avaliação, elaboração de protocolos, seleção e indicação de novas tecnologias em prevenção e tratamento de pessoas com feridas5 . Ainda quanto ao critério de prescrição de medicamentos/materiais para limpeza, desbridamento e cobertura das lesões, o enfermeiro deve ficar atento à lista de medicamentos isentos de prescrição da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 98/201614 e à RDC 107/201615 , que versa sobre medicamentos de notificação simplificada e assuntos correlatos.
Para subsidiar discussões, decisões e ações que envolvem aspectos morais e éticos na saúde, a bioética se ampara em quatro princípios: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça7 , 9 . A autonomia se refere à autodeterminação, ou autogoverno, e proclama que a liberdade de cada indivíduo deve ser resguardada. Tal princípio só pode ser violado quando o bem público se sobrepõe ao bem individual7 . O enfermeiro utiliza os princípios bioéticos em sua rotina profissional quando respeita a individualidade do paciente, acolhe suas necessidades para direcionar o cuidado, oferece assistência livre de riscos e danos físicos ou morais e fornece informações sobre os procedimentos, garantindo o direito do paciente de aceitá-los ou recusá-los.
O enfermeiro e a equipe de enfermagem têm capacidade de intervir na definição de prioridades assistenciais. O exercício da autonomia, no entanto, fundamenta-se em crenças do indivíduo e é influenciado por aspectos socioculturais2 , 16 , uma característica importante, visto que a convivência com lesões crônicas é justamente um fator de interferência nas relações sociais, laborais e até mesmo familiares. Pacientes com lesões se tornam mais vulneráveis a situações como desemprego, abandono e isolamento social, que prejudicam planos de vida e geram sentimentos de tristeza, ansiedade, raiva e vergonha. Tudo isso afeta o estado de equilíbrio, a autoimagem e a autoestima do indivíduo17 , 18 .
Quando a confiança entre paciente e profissional se estabelece, há um compartilhamento de experiências que leva a uma relação baseada no respeito, na ajuda e na compreensão das necessidades do indivíduo. Para cuidar de uma lesão indo além das técnicas de curativo, a equipe de enfermagem, liderada por um enfermeiro, deve reconhecer que todo ser humano tem valores próprios e dispõe de livre arbítrio9 , 17 .
A autonomia do enfermeiro não pode se sobrepor à autonomia do paciente. Conforme prevê o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, deve-se respeitar o direito do exercício da autonomia da pessoa ou de seu representante legal na tomada de decisão, livre e esclarecida, sobre sua saúde, segurança, tratamento, conforto, bem-estar, realizando ações necessárias, de acordo com os princípios éticos e legais8 .
Destaca-se, porém, que o enfermeiro, mediante ações educativas, deve buscar garantir a adesão terapêutica, considerando a heterogeneidade de papéis na relação profissional-paciente e enfatizando a importância da corresponsabilidade no processo de cura. Seguindo esses princípios, o enfermeiro poderá prestar uma assistência livre de agravos causados por imperícia, negligência ou imprudência8 .
Diante da complexidade da vida da pessoa com lesão crônica, é importante que o enfermeiro tenha uma visão ampliada sobre os sentimentos que a doença desperta e intensifica não só no paciente, mas também em seus familiares e pessoas próximas. Assistir o paciente de maneira individualizada e sistematizada exige tanto conhecimento especializado como visão integral da assistência e do ser humano.
É preciso conhecer os anseios e expectativas do paciente. Para isso, é necessário que o enfermeiro aperfeiçoe sua capacidade de empatia e escuta qualificada, desvelando e valorizando o que é especial e diferente em cada pessoa, enquanto atenta para as responsabilidades do exercício profissional da enfermagem.
A autonomia do enfermeiro é essencial nas áreas afins ao cuidado da pessoa com lesão de pele. Desse modo, as reflexões teórico-conceituais sobre ética, bioética e direito tornam-se ainda mais necessárias. Tais reflexões são fundamentais para garantir a segurança e o bem-estar do paciente, oferecendo-lhe uma assistência integral, sistematizada e livre de danos.
Caroline Borges Duque – Mestre – carolineborgesduque@gmail.com
Sérgio Donha Yarid – Doutor – yarid@uesb.edu.br
Edison Vitório de Souza Júnior – Doutorando – edison.vitorio@gmail.com
Edite Lago da Silva Sena – Doutora – editelago@gmail.com
Rita Narriman Silva de Oliveira Boery – Doutora – rboery@gmail.com
Benedito Fernandes da Silva Filho, Caroline Borges Duque e Edison Vitório de Souza Júnior escreveram o artigo. Sérgio Donha Yarid, Edite Lago da Silva Sena e Rita Narriman Silva de Oliveira Boery participaram da revisão crítica e aprovação final.
Correspondência: Benedito Fernandes da Silva Filho – Av. José Moreira Sobrinho, s/n CEP 45206-190.Jequié/BA, Brasil.