Resumo: Os conflitos bioéticos no cotidiano do cuidado à criança e ao adolescente na atenção primária à saúde, embora bastante complexos, têm sido pouco abordados, diferentemente do que ocorre no nível de atenção terciária. O amparo a essa população especialmente vulnerável envolve conflitos que demandam do profissional de saúde, além de competência técnica, uma série de conhecimentos legais e atributos éticos indispensáveis. É importante, portanto, reconhecer e analisar as questões (bio)éticas envolvidas, a fim de possibilitar uma tomada de decisão que contemple o melhor interesse da criança. O objetivo do artigo é delimitar, com base em revisão de literatura, os principais conflitos éticos relacionados ao cuidado da criança na atenção primária.
Palavras chave: CriançaCriança,PediatriaPediatria,BioéticaBioética,ÉticaÉtica,Atenção primária à saúdeAtenção primária à saúde,Saúde da famíliaSaúde da família.
Abstract: Although quite complex, bioethical conflicts in the daily routine of child and adolescent health care in primary health care have been little addressed, unlike what occurs at the tertiary care level. Providing support to this especially vulnerable population involves conflicts that require from the health professional, in addition to technical competence, a series of essential legal knowledge and ethical attributes. Therefore, it is important to recognize and analyze the pertinent (bio)ethical issues in order to enable decision-making that is in the best interests of the child. From a literature review, this article aims to delimit the main ethical conflicts related to child health care in primary health care.
Keywords: Child, Pediatrics, Bioethics, Ethics, Primary health care, Family health.
Resumen: Los conflictos bioéticos en el cuidado diario de niños y adolescentes en la atención primaria de salud, aunque bastante complejos, han sido mal abordados, a diferencia de lo que ocurre en el nivel de atención terciaria. El apoyo a esta población particularmente vulnerable implica conflictos que requieren del profesional de la salud, además de competencia técnica, una serie de conocimientos jurídicos y atributos éticos esenciales. Por lo tanto, es importante reconocer y analizar las cuestiones (bio)éticas involucradas, a fin de permitir la toma de decisiones en el mejor interés del niño. El objetivo del artículo es delimitar, a partir de una revisión de la literatura, los principales conflictos éticos relacionados con el cuidado infantil en la atención primaria.
Palabras clave: Niño, Pediatría, Bioética, Ética, Atención primaria de salud, Salud de la familia.
Pesquisa
Cuidado à criança na atenção primária à saúde: conflitos (bio)éticos
Child health care in primary health care: conflicts (bio)ethics
El cuidado infantil en la atención primaria de salud: conflictos (bio)éticos
Recepção: 16 Outubro 2020
Revised document received: 1 Junho 2021
Aprovação: 2 Agosto 2021
A década de 1960 ficou marcada como um período de revolução tecnológica na área da saúde, com o desenvolvimento de máquinas de diálise, ventiladores artificiais, transplantes de órgãos e técnicas de reprodução assistida, entre outros. Diante desses avanços, na década de 1970, em trabalhos intitulados Bioethics: bridge to the future e Bioethics: the science of survival , o bioquímico e investigador na área de oncologia Van Rensselaer Potter enfatizou a necessidade de refletir sobre a crescente capacidade humana de alterar a natureza com suas novas descobertas tecnológicas.
Em seus textos, Potter apresentou a bioética como ponte entre ciência biológica e ética, definindo-a como “ciência da sobrevivência”, ou seja, um campo interdisciplinar do conhecimento cujo escopo seria garantir a preservação da biosfera1 . O objetivo não era desenvolver um código ou conjunto de preceitos, mas aprimorar o entendimento filosófico sobre a vida e o que é ser uma pessoa, a fim de propor políticas públicas que estabelecessem limites éticos à ciência1 .
Ainda na década de 1970, o Relatório Belmont (1978) estabeleceu como princípios éticos norteadores da pesquisa em humanos o respeito pelas pessoas, a beneficência e a justiça2 . Um ano depois, Beauchamp e Childress publicaram a obra Principles of biomedical ethics , considerada o marco de surgimento da primeira corrente bioética, o principialismo. Nesse livro, os autores usaram termos como “respeito à autonomia” e “não maleficência”, inaugurando um novo modelo de descrição e análise dos conflitos éticos na área de saúde 3 .
No Brasil, uma década depois, a Constituição de 1988 universalizou o sistema de saúde ao dispor, em seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado4 . Essa foi a base para que, nos anos 1990, fosse implementado o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como princípios a universalidade, a equidade e a integralidade do cuidado. No âmbito do SUS, a atenção primária à saúde (APS) foi estabelecida como principal porta de entrada para os usuários.
Mais tarde, a Estratégia Saúde da Família (ESF) – implantada em sequência à criação do Programa Saúde da Família (PSF), em 1994 – foi fundamental para reorganizar a APS. A descentralização dos serviços proposta no bojo da ESF, com ações de promoção, prevenção e assistência em áreas prioritárias, ajudou a aproximar o SUS da população, favorecendo a consolidação do sistema5 . Um novo olhar dos profissionais de saúde emergiu com esse modelo assistencial, que procura se centrar no usuário, mais do que em procedimentos técnicos6 .
Em 2001, com a intenção de contribuir para a consolidação do SUS no Brasil – tendo em vista sua vocação para a orientação da formação dos trabalhadores da área de saúde – o Ministério da Educação (MEC) elaborou as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos da Saúde, as quais abrangeram 14 profissões. Essas diretrizes têm como objetivo formar profissionais com as características necessárias para atuar nos distintos níveis de atenção do SUS7 .
A bioética principialista, que fora exaustivamente utilizada como instrumento teórico para analisar problemas éticos no ambiente hospitalar, não floresceu da mesma forma na APS. Essa diferença se deve sobretudo às peculiaridades do trabalho na APS/ESF, no qual as questões (bio)éticas muitas vezes sequer são percebidas pelos profissionais de saúde (ou, se percebidas, costumam ser consideradas pouco relevantes), em contraponto aos conflitos evidentes do cenário hospitalar. No entanto, os problemas éticos da APS/ESF podem ser bastante complexos e, quando surgem, exigem que a formação do profissional de saúde esteja alinhada a esse modelo8 .
Com efeito, Vidal e colaboradores9 apontam que a invisibilidade dos problemas éticos nesse nível de atenção compromete, de forma direta ou indireta, a consolidação do SUS. Desse modo, é importante desenvolver pesquisas que ajudem a estabelecer estratégias para que estudantes e profissionais de saúde reconheçam tais questões e saibam como abordá-las. Só o conhecimento técnico não é suficiente para abarcar os conflitos que surgem na prática. A aquisição de competências orientadas à integralidade e à responsabilidade, com desenvolvimento de capacidade crítica e reflexiva para reconhecer e analisar tais dificuldades, deve fazer parte do cotidiano do profissional de saúde10 .
Nesse contexto, é fundamental ressaltar que há grupos populacionais especialmente vulneráveis. Esse é o caso, por exemplo, das crianças e dos adolescentes, os quais demandam habilidades e competências específicas dos profissionais de saúde na tomada de decisão ante conflitos. Ambos, crianças e adolescentes, são sujeitos de direito protegidos pela ética profissional aplicada à prática pediátrica e hebiátrica, a qual se refere a um conjunto de comportamentos concernentes ao exercício laboral, em termos da assistência à saúde dirigida a essas faixas etárias, por meio de cuidados e prevenção de agravos11 .
No Brasil, a proteção da criança e do adolescente está prevista no artigo 227 da Constituição de 19884 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)12 , que passou a ser o instrumento legal mais importante no que se refere ao tema. Em seu artigo 4º, o ECA dispõe que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária12 . Ainda segundo o ECA, é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor12 .
Embora a legislação brasileira tenha avançado nas últimas décadas, o ECA, estabelecido pela Lei 8.069/199012 , é um verdadeiro marco do entendimento de que crianças e adolescentes se encontram em situação de vulnerabilidade e precisam de proteção da família, da sociedade e do Estado. Na prática, porém, ainda há lacunas que comprometem a garantia dos direitos dessa população13 .
Nesse contexto, deve-se destacar a esfera de atuação profissional na APS, espaço no qual emergem diversas questões (bio)éticas relativas ao cuidado da criança e do adolescente, desde o período gestacional até os 18 anos de idade, quando o indivíduo, conforme o ordenamento jurídico vigente, passa a ser considerado maior de idade. O tema, no entanto, ainda tem pouca visibilidade no Brasil, o que dificulta a tomada de decisão diante dos conflitos éticos que emergem no cotidiano de atendimento a pacientes dessa faixa etária, cuja complexidade é reconhecida em diferentes publicações5 , 6 , 14 .
Com base nessas considerações, o objetivo do presente artigo é revisar a literatura em busca de identificar os principais conflitos éticos relacionados ao cuidado da criança na APS.
Este artigo traz resultados de revisão de literatura com estratégia de busca definida. O primeiro passo foi recorrer à Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) para selecionar descritores do vocabulário controlado Descritores de Ciências da Saúde (DeCS). Utilizaram-se três grupos de descritores. O primeiro grupo foi composto pelas expressões child, children e pediatrics; o segundo pelas expressões bioethics e ethics ; e o terceiro pelas expressões family health e primary health care . Com o operador booleano and , configuraram-se strings de busca com um descritor de cada grupo, totalizando 12 strings , que foram aplicadas às fontes de informação das bases SciELO Brasil e Saúde Pública, Lilacs e PubMed.
Para integrar a amostra da revisão, os artigos deviam ter sido publicados em português, espanhol ou inglês, entre 2009 e 2019. Os textos também precisavam estar disponíveis integralmente e tratar de conflitos bioéticos envolvendo o cuidado de crianças e adolescentes na APS. A busca foi realizada nos referidos bancos de dados, com o retorno de poucas citações. Tendo em vista essa escassez, optou-se por incluir artigos que tratassem de conflitos éticos na pediatria ambulatorial e nos cuidados primários à saúde da criança e do adolescente.
A seleção dos textos foi feita em três etapas, conforme delineadas na Figura 1 . A primeira consistiu na leitura do título dos artigos; a segunda, na leitura dos resumos, descartando os estudos que não se adequavam aos critérios de inclusão; a terceira, na leitura sistemática dos trabalhos pertinentes ao objetivo da revisão.
A busca nas bases de dados retornou 2.857 citações. No entanto, desse total, 964 eram artigos duplicados, e outros 1.721 foram excluídos já pelo título. Após análise dos resumos, 23 manuscritos foram selecionados para compor a amostra. Esses trabalhos (listados no Quadro 1 ) foram lidos na íntegra.
O principal objetivo da maioria dos artigos consultados era fornecer informações legais e ético-deontológicas para facilitar a tomada de decisão dos profissionais de saúde, principalmente médicos generalistas e pediatras. Os autores utilizaram diferentes correntes bioéticas, mas a principialista foi a mais frequente. Após analisar as questões discutidas nos artigos, foi possível agrupá-las em quatro classes de problemas, apresentadas no Quadro 2 .
Uma das características mais marcantes e desafiadoras do atendimento pediátrico é o fato de que a equipe de saúde não se relaciona somente com o paciente, isto é, a criança20 , 36 , mas também com pais ou cuidadores (na maioria das vezes, avós ou outros familiares). Frequentemente, tal atendimento envolve uma grande carga afetiva e emocional devida ao estresse de pais e familiares, o que dificulta o trabalho em equipe e até mesmo o tratamento adequado31 .
O acolhimento adequado no atendimento pediátrico é fundamental. Envolve um posicionamento ético, uma escuta eficiente e um olhar humanizado, capaz de reconhecer e valorizar as demandas do outro sem julgamento, o que facilita a construção de vínculos37 . Em pediatria, o profissional deve considerar o paciente e a sua família, assumindo a responsabilidade de disponibilizar – à criança e aos pais ou cuidadores – informações claras, que possibilitem a participação nas decisões terapêuticas. Uma boa comunicação, além de diminuir a angústia dos envolvidos, fortalece o vínculo com os profissionais de saúde11 .
Os problemas éticos se acentuam na atenção à criança e ao adolescente, visto que pacientes menores de idade, conforme a lei, necessitam de um representante legal. Há direitos que são alcançados de forma progressiva, de acordo com o desenvolvimento cognitivo, de modo que a criança ou o adolescente possa entender, analisar e ter valores próprios para julgar o que é melhor para si22 , 27 . Nesse sentido, um dos principais dilemas bioéticos no atendimento a crianças e adolescentes na APS se refere à autonomia, ou seja, a capacidade que uma pessoa tem de determinar, de forma consciente, qual a melhor alternativa terapêutica de acordo com suas crenças e valores 20 .
Em relação às crianças, as decisões se centram na família, tendo em vista que, legalmente, a criança, a depender do seu grau de desenvolvimento cognitivo e psicossocial, é considerada incapaz de opinar sobre a própria saúde27 . De acordo com Madeira20 , no atendimento à população pediátrica, há limites ao exercício pleno de direitos, o que impede a aplicabilidade total do princípio da autonomia.
O respeito ao sigilo – a garantia da confidencialidade entre o profissional de saúde e o paciente38 –, à confidencialidade – condição na qual o confidente compartilha uma informação, sendo somente ele capaz de autorizar o rompimento dessa confissão38 – e à privacidade – controle que o indivíduo tem sobre o acesso a suas informações38 – é direito fundamental inerente à pessoa humana, previsto por lei e deliberado para todas as faixas etárias, incluindo os adolescentes 40 .
A Sociedade Brasileira de Pediatria 39 orienta que o atendimento a esses pacientes tenha três etapas. Na primeira, o adolescente é atendido com seus familiares. Na segunda, o profissional de saúde, sozinho com o paciente, deve esclarecê-lo sobre seus direitos de sigilo, confidencialidade e privacidade, enfatizando que as informações abordadas durante a consulta não serão repassadas aos responsáveis, de acordo com o disposto no artigo 74 do Código de Ética Médica40 e no Capítulo II, artigo 17, do Estatuto da Criança e do Adolescente12 .
Nessa etapa, também é preciso alertar o paciente quanto às circunstâncias em que o sigilo pode ser quebrado, como situações de violência, drogadição, consumo de álcool, idealizações suicidas ou homicidas, autolesão, quadros depressivos, diagnóstico de doenças graves, sorologia reativa para HIV, não adesão a tratamentos que possam colocar em risco a vida do adolescente, gravidez e abortamento. Nesse momento, o paciente ainda recebe orientações sobre seu diagnóstico e tratamento.
No terceiro momento, o profissional conversa somente com os pais a fim de esclarecer a hipótese diagnóstica e elaborar o plano terapêutico, com a anuência do adolescente18 , 39 . Para garantir o sigilo, principalmente em relação ao tratamento, os profissionais de saúde devem considerar as seguintes particularidades: 1) avaliar a maturidade do paciente, levando em conta suas características, gravidade da conduta adotada e fatores familiares; 2) reconhecer os aspectos legais da situação; e 3) discutir os casos com a equipe e registrar minuciosamente as informações. A observância desses aspectos é indispensável para a proteção e segurança de pacientes dessa faixa etária22 .
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, a gravidez na adolescência tem alta prevalência no Brasil: em torno de 400 mil casos por ano 41 . A maioria das meninas que engravidam acaba abandonando a escola, o que gera grande impacto social a longo prazo, influenciando profundamente suas trajetórias de vida e fazendo com que elas se tornem mais vulneráveis a um ciclo de pobreza e exclusão social. Segundo Constantino15 , a gravidez na adolescência na maioria das vezes não é desejada nem planejada, e as “soluções” propostas para tal situação (como casamento precoce ou abortamento) costumam ser prejudiciais à adolescente, não contemplando a educação nem o diálogo.
A contracepção de emergência poderia ser útil na solução desse conflito. Para a tomada de decisão, os profissionais de saúde devem discutir os progressos científicos de forma mais abrangente, a fim de que sejam usados pela sociedade em conformidade com o princípio da justiça, de modo a aumentar seu benefício e garantir que o risco seja o menor possível15 . Destaca-se que a prescrição de contraceptivos para menores15 , 40 é também uma situação extremamente conflituosa. O artigo 217-A do Código Penal brasileiro prevê o crime de estupro contra vulnerável, incluindo nessa condição os menores de 14 anos e os indivíduos que, por alguma razão, não possam se defender, como os portadores de certas enfermidades ou de deficiência mental42 . Em alguns países, como o Reino Unido, a idade estabelecida por lei é de 16 anos28 .
Taquette18 ressalta que os adolescentes podem decidir sobre sua vida sexual e reprodutiva, e que o acesso a informações educativas e à contracepção é um direito humano fundamental. Assim, de acordo com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, a prescrição de contraceptivos para menores de 15 anos não é um ato ilícito desde que o profissional avalie criteriosamente o caso, descartando a possibilidade de estupro. Situações como essa demandam do profissional de saúde uma série de conhecimentos e uma boa capacidade de tomada de decisão, tendo em vista a dificuldade – frequente no atendimento a adolescentes – de conciliar questões éticas com a legislação18 .
No documento A familiar face: violence in the lives of children and adolescents , o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) 43 reporta que, no mundo, em torno de 300 milhões de crianças com idade entre 1 e 4 anos – independentemente do país onde vivem, seja em nações pobres ou ricas – são vítimas habituais de violência como forma de disciplinamento praticado pelos seus cuidadores. De cada 10 crianças no mundo, seis são punidas fisicamente. Muitas, ademais, além do abuso físico, são vítimas de abuso verbal ou sexual.
Em todo o planeta, uma em cada quatro crianças menores de 5 anos (isto é, 176 milhões de crianças) vive com uma mãe que também é vítima de violência por parceiro íntimo. Em torno de 1,1 bilhão de cuidadores (pouco mais de um quarto do total) diz que o castigo físico é necessário para criar ou educar adequadamente as crianças. Apenas 60 países adotam algum tipo de legislação que proíbe totalmente o uso de castigos corporais contra crianças em casa. Assim, mais de 600 milhões de crianças menores de 5 anos vivem em países sem proteção legal. A violência contra essas crianças ocorre no próprio domicílio, onde é praticada por aqueles que deveriam defendê-las, em instituições como a escola e em outros locais, como as ruas. O Brasil é a quinta nação mais violenta do mundo, alcançando uma taxa de homicídios na infância maior do que em países onde há conflito armado43 .
Crianças com enfermidades congênitas – como fibrose cística ou cardiopatias graves –, prematuras ou com sequelas graves causadas por infecções ou traumas, precisam de suporte tecnológico para manutenção da vida. Conhecidas como “crianças com necessidades especiais”, elas dependem de cuidados específicos, ininterruptos e de longa duração, os quais ultrapassam os cuidados habituais, principalmente no âmbito da saúde.
Dias e colaboradores44 , em estudo descritivo de abordagem qualitativa, utilizando como referencial o cuidado centrado no paciente e na família, concluíram que a dificuldade de acesso e seguimento nos serviços de APS é o maior desafio enfrentado pelos cuidadores de crianças com necessidades especiais. O estudo ainda enfatizou a necessidade de refletir sobre a prática dos profissionais da APS e qualificar essa classe, por meio de educação permanente, para receber crianças com necessidades especiais e seus familiares.
O Unicef publicou, em 2018, o documento Privações múltiplas na infância e na adolescência45 , no qual abordou a pobreza na perspectiva de Amartya Sen46 , enfatizando a privação de capacidades básicas, e não somente a questão monetária, como a baixa renda. O documento utilizou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015, que avaliou privações não monetárias relativas a educação, proteção contra o trabalho infantil, saneamento básico, acesso à informação, água e moradia. Essa pesquisa constatou que, em 2015, a população brasileira infantil correspondia a 55 milhões de pessoas. Dessas, 68% viviam nas regiões Norte e Nordeste do país, e 49,7% (27 milhões) sofriam pelo menos uma privação não monetária.
Aproximadamente 8,8 milhões de crianças (19%) padeciam de alguma privação relativa à educação, como não frequentar a escola ou apresentar defasagem entre idade cronológica e período escolar esperado. Em torno de 2,5 milhões desempenhavam algum tipo de atividade econômica, e nesse quesito as meninas (10,1%) se mostraram mais atingidas do que os meninos (2,5%). Duas em cada 10 crianças não possuíam saneamento adequado em seus domicílios (um problema que atinge sobretudo o Norte do país).
Merece destaque o fato de que, dos 27 milhões de crianças e adolescentes que sofrem privações, 18 milhões são negros, o que torna evidente a necessidade de políticas públicas que considerem a cor45 . Como aponta Sarmiento17 , a pobreza ameaça os direitos humanos sobretudo das crianças, pois as priva do acesso a habilidades necessárias para um desenvolvimento adequado e as expõe a outras situações de vulnerabilidade, como violência e trabalho infantil. As políticas públicas, sejam na saúde, sejam na educação, deveriam ter como propósito estimular o desenvolvimento econômico a fim de diminuir as iniquidades e possibilitar a inclusão social.
A vulnerabilidade social também influencia a imunização, uma das mais relevantes intervenções na esfera da saúde pública, responsável pela redução da mortalidade infantil por doenças imunopreveníveis30 . Dada sua importância, a vacinação foi objeto de legisladores em vários países. No Brasil, sua obrigatoriedade é explicitada pelo 14º artigo do ECA12 . No entanto, mesmo com o Programa Nacional de Imunização, criado na década de 1970, os profissionais da área da saúde vêm encontrando dificuldades para manter a cobertura vacinal adequada. Um dos motivos para isso é o excessivo movimento migratório no país. Por conta disso, em 2018 a disseminação do vírus do sarampo aumentou no país, com um incremento de mais de 10 mil casos47 .
As notícias falsas de efeitos adversos e a mobilização antivacina também têm aumentado no Brasil, embora de modo ainda menos acentuado do que nos Estados Unidos. Nesse contexto, o conflito ético envolve o equilíbrio entre o respeito à autonomia dos pais e a repercussão sobre a coletividade. A situação é preocupante, pois o incremento da incidência de doenças imunopreveníveis, além de expor a criança à maior situação de vulnerabilidade, traz riscos para a sociedade30 .
Os conflitos bioéticos no cuidado da criança e do adolescente apresentam peculiaridades inerentes à faixa etária atendida. Ressalta-se a limitação dessa população quanto ao exercício pleno de seus direitos fundamentais, sendo inquestionável sua situação de vulnerabilidade, que torna necessário priorizar a proteção na tomada de decisões. Essa proteção é fundamental, visto que, como mostram quase todos os artigos selecionados para esta revisão, a violência dirigida à criança e ao adolescente é um conflito (bio)ético de grande magnitude, com repercussões devastadoras, que ultrapassam em muito o período da infância.
A abordagem dessas questões depende da aquisição de competências que vão além do conhecimento técnico e devem ser trabalhadas na formação continuada e na educação permanente dos profissionais de saúde. Analisar os problemas que emergem da prática, à luz de aspectos éticos e legais – essenciais para o processo decisório –, possibilita um atendimento integral e efetivo aos envolvidos. Nesse sentido, a adoção de distintas estratégias de apoio à decisão – como, por exemplo, a abordagem computacional com a utilização de técnicas de inteligência artificial48 – poderá ser útil para a melhor condução dos conflitos (bio)éticos, com envolvimento de crianças e de adolescentes, no espaço-tempo da APS.
Eugênio Silva – Doutor – eugeniosilva@uezo.edu.br
Rodrigo Siqueira-Batista – Doutor – rsbatista@ufv.br
Mirna Peçanha Brito estruturou e escreveu o artigo. Os demais autores contribuíram com a revisão final do texto.
Correspondência: Mirna Peçanha Brito – Universidade Federal de Viçosa. Av. Peter Henry Rolfs, s/n, Campus Universitário CEP 36570-900. Viçosa/MG, Brasil.