Resumo: O objetivo do estudo é verificar a percepção sobre cuidados paliativos, diretivas antecipadas de vontade e ordem de não reanimar de pacientes oncológicos e seus cuidadores, bem como a relação destes com os profissionais de saúde. Trata-se de pesquisa descritiva quantitativa, realizada entre 2018 e 2019 no Centro de Alta Complexidade em Oncologia de um hospital universitário brasileiro. A amostra contou com 200 participantes (100 pacientes oncológicos e 100 cuidadores informais). Os dados coletados foram armazenados no Microsoft Excel e processados pelo software SPSS. Foi possível observar o desconhecimento dos participantes sobre questões ligadas à terminalidade da vida, bem como o paradoxo entre discordância em relação à distanásia e concordância com a reanimação obstinada. Os resultados também atestam a importância dos profissionais de saúde na percepção dos cuidadores sobre a própria capacidade de exercer essa função.
Palavras chave: Cuidados paliativosCuidados paliativos,Testamentos quanto à vidaTestamentos quanto à vida,Ordens quanto à conduta (ética médicaOrdens quanto à conduta (ética médica,Equipe de assistência ao pacienteEquipe de assistência ao paciente,CuidadoresCuidadores.
Abstract: The objective of this study is to verify the perception of palliative care, advance directives of will and do-not-resuscitate order of patients and their caregivers, as well as their relationship with health professionals. This is a quantitative descriptive research, carried out between 2018 and 2019 at the Center for High Complexity in Oncology of a Brazilian university hospital. The sample included 200 participants (100 cancer patients and 100 informal caregivers). The collected data were stored in Microsoft Excel and processed in the SPSS software. It was possible to observe the participants' lack of knowledge about issues related to the end of life, as well as the paradox of disagreeing with dysthanasia and agreeing with obstinate resuscitation. The results also attest to the importance of health professionals in the perception of caregivers about their own capacity to exercise this function.
Keywords: Palliative care, Living wills, Resuscitation orders, Patient care team, Caregivers.
Resumen: Este estudio pretende comprobar la percepción sobre los cuidados paliativos, las directivas anticipadas de voluntad y el orden de no reanimar de los pacientes oncológicos y de sus cuidadores, así como su relación con los profesionales de la salud. Se trata de una investigación descriptiva cuantitativa, realizada entre el 2018 y el 2019 en el Centro de Alta Complejidad en Oncología de un hospital universitario brasileño. La muestra incluyó a 200 participantes (100 pacientes oncológicos y 100 cuidadores informales). Los datos recopilados se almacenaron en Microsoft Excel y se procesaron con el software SPSS. Se pudo observar la falta de conocimiento de los participantes sobre temas relacionados con la terminalidad de la vida, así como la incoherencia entre la desaprobación de la distanasia y la admisión de la reanimación obstinada. Los resultados también confirman la importancia de los profesionales de la salud en la percepción de los cuidadores sobre su propia capacidad para ejercer esta función.
Palabras clave: Cuidados paliativos, Voluntad en vida, Órdenes de resucitación, Grupo de atención al paciente, Cuidadores.
Pesquisa
Cuidados paliativos: conhecimento de pacientes oncológicos e seus cuidadores
Palliative care: knowledge of cancer patients and their caregivers
Cuidados paliativos: conocimiento de los pacientes oncológicos y de sus cuidadores
Recepção: 25 Outubro 2019
Revised document received: 5 Agosto 2021
Aprovação: 9 Agosto 2021
Os avanços tecnológicos e científicos da era pós-Revolução Industrial mudaram o padrão de adoecimento populacional, com aumento da expectativa de vida e consequente crescimento da parcela idosa da população1 . Essa transição demográfica e epidemiológica se associou à diminuição das doenças infectocontagiosas e ao aumento da incidência de doenças crônico-degenerativas, que hoje correspondem a 70% de todas as mortes, totalizando 41 milhões de mortes por ano no mundo 2 . São exemplos de enfermidades deste grupo as doenças cardiovasculares, endocrinológicas, osteoarticulares e neoplásicas.
Apesar do progresso que representam na redução da mortalidade, os recursos tecnológicos desenvolvidos para diagnóstico e tratamento precoce também estão sendo empregados para interferir nas fases finais da vida humana. Nesse sentido, a morte tem sido compreendida não como parte do ciclo natural da vida, mas como um evento indesejável, um acidente causado por uma doença que poderia ter sido prevista ou o resultado de falhas na atuação médica3 .
Diante da impossibilidade de cura de determinadas enfermidades, muitos profissionais de saúde, principalmente aqueles que trabalham em unidades de terapia intensiva (UTI), enfrentam o dilema ético sobre até que ponto o princípio da beneficência torna justificável prolongar a vida de pacientes terminais4 . Uma das respostas a esse dilema é a obstinação terapêutica, uma prática baseada na visão biomecânica de saúde, que foca exclusivamente o tratamento da doença em detrimento do cuidado integral do indivíduo.
Contrapondo-se a essa visão, na década de 1960, graças à atuação de Cicely Saunders, surgiram os cuidados paliativos, uma nova forma de assistência que considerava aspectos biopsicossociais na atenção à saúde de pacientes terminais5 . Inicialmente, esses cuidados estavam voltados especificamente a pacientes oncológicos. Mais tarde, porém, na década de 2000, o conceito foi expandido para abarcar outras enfermidades ameaçadoras da vida: neurológicas, cardíacas, renais etc.
Embora os cuidados paliativos já estejam bem consolidados em alguns países, no Brasil esse tipo de assistência só foi reconhecido oficialmente em 2018, pela Resolução do Ministério da Saúde 416 . Dentre os principais objetivos dos cuidados paliativos estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde e pela Associação Internacional de Cuidados Paliativos, destacam-se: a prevenção, a identificação precoce e o manejo do sofrimento físico, psicológico e espiritual; a manutenção da autonomia do paciente, com respeito a seus valores culturais e religiosos; a melhora da qualidade de vida, influenciando positivamente o curso da doença; e o fornecimento de suporte a familiares e cuidadores durante a doença e no momento de luto7 , 8 .
No contexto dos cuidados paliativos, é importante ressaltar que, diferentemente da eutanásia, a ortotanásia não antecipa a morte do paciente com doenças incuráveis, mas apenas não prolonga artificialmente o processo natural da morte9 . Na legislação brasileira, a eutanásia é considerada crime, enquanto a ortotanásia é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) por meio da Resolução 1.805/2006 e do Código de Ética Médica10 .
Ainda sobre os aspectos legais da terminalidade da vida, o CFM aprovou, na Resolução 1.955/2012, as diretivas antecipadas de vontade (DAV), um conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade11 . As diretivas têm como finalidade garantir, quando necessário, a possível representação do doente por alguém que possa espelhar sua autonomia por meio da procuração para cuidadores de saúde.
Essa aprovação do CFM seguiu os parâmetros de documento semelhante, regulamentado nos Estados Unidos na década de 1960: o testamento vital. No presente estudo, os termos “diretivas antecipadas de vontade” e “testamento vital” foram utilizados como sinônimos com o intuito de facilitar a coleta e a análise de dados. Cabe destacar, porém, que a legislação brasileira não tem determinação específica que formalize o testamento vital12 .
Outro documento relacionado ao cuidado de pacientes portadores de doenças crônicas progressivas avançadas é a ordem de não reanimar. Esse documento consiste na expressão por escrito, assinada pelo paciente ainda lúcido, da vontade de não ser reanimado em caso de parada cardiorrespiratória em situação de terminalidade. A ordem de não reanimar também não é juridicamente formalizada no Brasil, mas, considerando os critérios de limitação de procedimentos em geral, ela pode ser respaldada por dispositivos como a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde , do Ministério da Saúde, e constar das diretivas antecipadas de vontade13 .
Embora já existam diversos documentos que preservem os direitos dos pacientes com patologias crônicas de prognóstico limitado, estudos mostram que a maioria desses pacientes desconhece termos como “cuidados paliativos”, “ordem de não reanimar” e “diretivas antecipadas de vontade”14 . Alia-se a esse desconhecimento a limitação da formação dos profissionais de saúde, tendo em vista a ausência de disciplinas específicas e a escassez de cursos de especialização e de pós-graduação sobre cuidados paliativos15 .
A formação da equipe profissional é imprescindível para o atendimento adequado e está diretamente associada a uma boa relação médico-paciente e à qualidade de vida tanto de pacientes como de cuidadores. Esses últimos dão suporte emocional, social e financeiro ao paciente terminal, ajudando-o nas atividades diárias e comparecendo a consultas e exames. Sua atuação é fundamental para a adesão ao tratamento16 .
O manual da Agência Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) define como cuidador o familiar ou responsável pelo cuidado ao paciente, sendo o principal responsável por receber as orientações e esclarecimentos da equipe, assim como se constituindo em elo entre paciente e equipe para algumas demandas17 . O documento ainda trata da figura do “cuidador principal”, o que está mais envolvido no cuidado e, portanto, mais sujeito a estresse e sobrecarga, que por sua vez podem desencadear transtornos de humor, como depressão, transtorno de ansiedade generalizada e insônia18 .
Considerando o papel fundamental dos cuidadores no processo terapêutico e reconhecendo a importância da informação para o exercício da autonomia, o presente trabalho avalia o nível de conhecimento de pacientes oncológicos e seus cuidadores sobre cuidados paliativos, diretivas antecipadas de vontade e ordem de não reanimar. Além disso, a pesquisa aborda a relação da equipe de profissionais de saúde com os pacientes oncológicos e seus cuidadores após o diagnóstico de câncer.
Trata-se de estudo descritivo, do tipo inquérito, com abordagem quantitativa. Compuseram a amostra 200 participantes: 100 pacientes e 100 cuidadores informais. Foram incluídos pacientes sabidamente maiores de 18 anos, portadores de neoplasias, em tratamento quimioterápico no Centro de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon) de um hospital universitário na capital de um estado brasileiro. Junto com eles foram incluídos na amostra seus cuidadores informais (não necessariamente cuidadores principais), maiores de 18 anos, que acompanhavam as sessões quimioterápicas nos dias em que a pesquisa foi realizada e concordaram em participar do estudo.
Os dados foram coletados por meio de questionários aplicados entre agosto de 2018 e março de 2019. Tomou-se como base o questionário da pesquisa de Comin e colaboradores14 e foram feitas as adaptações necessárias de acordo com os interesses do presente estudo. Utilizaram-se, portanto, dois modelos, um para pacientes e outro para cuidadores, com 21 e 20 questões, respectivamente (Anexo).
As respostas ao questionário foram registradas pelos pesquisadores – treinados previamente para aplicar o instrumento – ou pelos próprios participantes, a depender do nível de escolaridade destes e da vontade que manifestaram no momento da coleta. Assim, 15 pacientes e 5 cuidadores tiveram suas respostas registradas pelos pesquisadores, enquanto 85 pacientes e 95 cuidadores responderam à pesquisa de forma autoaplicada. Os participantes foram abordados na sala de sessão de quimioterapia do Cacon, e a coleta de dados ocorreu de forma cautelosa, após um momento de criação de vínculos de confiança.
As variáveis coletadas para pacientes foram: dados sociodemográficos; tipo de câncer e presença de metástase; previsão de tempo de vida (caso essa informação tenha sido fornecida por profissional de saúde); percepção de qualidade de vida após conhecimento da doença; decisões diante da possibilidade de doença incurável; relação médico-paciente; nível de conhecimento sobre cuidados paliativos, diretivas antecipadas de vontade e ordem de não reanimar e desejo de realizá-los; como gostaria de ser tratado caso se encontrasse em situação de terminalidade da vida.
Para os cuidadores, as variáveis coletadas foram: dados sociodemográficos; grau de parentesco com o doente; se é remunerado ou não como cuidador; percepção da própria capacidade de cuidar do doente e há quanto tempo o faz; como o cuidado interferiu em sua vida (sobrecarga, prejuízo na vida profissional etc.); relação com a equipe médica; sensação sobre o prognóstico do doente; nível de conhecimento sobre cuidados paliativos, testamento vital ou diretivas antecipadas de vontade e ordem de não reanimar, assim como desejo de realizá-los e de que suas escolhas fossem respeitadas caso portassem doença crônica progressiva avançada.
Os dados foram armazenados em planilhas criadas no Microsoft Excel e, em seguida, processados no software SPSS e analisados por meio de teste qui-quadrado, com intervalo de confiança de 95% e valor- p menor que 0,05. O projeto de pesquisa foi cadastrado na Plataforma Brasil e aprovado por Comitê de Ética.
A maior parte da amostra foi composta por pacientes do sexo feminino (74%), com média de 55,19 anos (mínimo de 22 anos e máximo de 76 anos), casados (40%) e com ensino fundamental incompleto (48%). As profissões mais representativas foram: dono de casa (14%), aposentado (12%) e agricultor (9%). Quanto à religião, 62% eram católicos e 24% evangélicos. O câncer mais comum foi o de mama (40%), como mostra a Figura 1 .
Dos entrevistados, 78% afirmam não ter metástases presentes ou desconhecem o termo; 87% referem ter recebido apoio médico na hora do diagnóstico e relatam, ainda, que a boa comunicação e a atenção do médico com os familiares foi mantida; e 94% dizem não ter recebido previsão de tempo de vida. No que se refere ao conhecimento sobre assistência paliativa, 78% dos participantes desconhecem o termo “cuidados paliativos”, 85% desconhecem o termo “ordem de não reanimar” e 96% desconhecem o testamento vital. Após explicação sobre esse último termo, 60% disseram ter interesse no documento. Em 63% dos casos, os pacientes referem nunca ter pensado em um cenário em que a cura não é mais possível.
Questionados quanto ao local de prestação de cuidados, 61% afirmam que gostariam de receber os cuidados em casa e 35% no hospital. Sobre a deliberação, 52% preferem que a decisão sobre tratamentos seja tomada em conjunto, entre médico, família e o próprio paciente. Do total da amostra, 82% dos pacientes desejam ser reanimados em qualquer circunstância médica; e 69% discordam da distanásia, enquanto 31% concordam ( Figura 2 ). Quanto à nota atribuída pelos pacientes a sua própria qualidade de vida após o diagnóstico de câncer, a média foi de 7,89.
A maior parte da amostra foi formada por cuidadores do sexo feminino (75%), casados (51%), católicos (51%) ou evangélicos (33%), com ensino médio completo ou ensino fundamental incompleto (27% em ambos os casos). As profissões mais representativas foram: dono de casa (16%), desempregados (11%) e aposentados (9%).
Quanto ao grau de parentesco com o paciente, 41% são filhos, 21% cônjuges e 15% irmãos. No que se refere ao tempo como cuidadores, 70% acompanham o paciente há menos de um ano e 30% há mais de um ano. Para exercer essa função, 97% não recebem nenhum tipo de remuneração, e 66% discordam que o cuidado ao paciente atrapalhou sua vida profissional.
Sobre o estresse e a sobrecarga, 56% afirmam que nunca se sentem sobrecarregados pelo cuidado ao paciente oncológico, 20% “às vezes”, 13% “geralmente” e 11% “raramente”. Em 90% das respostas os cuidadores dizem se sentir capazes de exercer tal função, 65% afirmam que recebem apoio da equipe médica e 73% relatam que o médico conversou abertamente com eles sobre o estado de saúde do doente.
Quanto às perspectivas de futuro, metade dos cuidadores diz não se sentir esperançosa com o que há por vir, enquanto outra metade diz ter essa esperança. No que se refere ao conhecimento sobre assistência paliativa, 63% desconhecem os cuidados paliativos, 81% desconhecem os termos “testamento vital” ou “diretivas antecipadas de vontade”, e 75% desconhecem a ordem de não reanimar. Após explicação sobre o testamento vital, 60% demonstraram interesse por esse instrumento. Porém, após elucidação do termo “ordem de não reanimar”, 62% disseram que recusariam essa possibilidade em caso hipotético de doença crônica progressiva avançada.
Por meio do teste qui-quadrado, identificou-se associação entre tempo de cuidado e sobrecarga [χ2 (1)=4,55, p =0,033; OR=2,88; IC de 95%=1,18, 7,06]. As chances de um cuidador que exerce essa função há mais de um ano apresentar sobrecarga elevada são 2,8 vezes maiores do que as de um cuidador que assumiu essa tarefa há menos de um ano. Além disso, também por meio do teste qui-quadrado, observou-se associação entre auxílio da equipe médica e sentimento de capacidade para exercer a função de cuidador. As chances de um cuidador que recebeu apoio se sentir capacitado para sua função são 5,9 vezes maiores do que as de um cuidador que não teve tal apoio.
Mais da metade dos pacientes oncológicos que participaram da pesquisa tinham idade acima de 55 anos, o que era esperado, uma vez que a prevalência de neoplasias malignas cresce com o avanço da idade, devido à queda progressiva da capacidade de regeneração celular19 , 20 . Além disso, dos 625 mil casos novos de câncer estimados para cada ano do triênio 2020-2022 no Brasil, quase 63% afetam a população brasileira com idade superior a 60 anos21 , 22 .
Quanto à distribuição em relação ao sexo, 74% dos pacientes da amostra são mulheres. Esses dados condizem com as taxas de incidência de câncer em outros países em desenvolvimento, nos quais os programas de detecção e prevenção de câncer estão voltados a neoplasias ginecológicas e mamárias23 .
A maior parte dos pacientes tem ensino fundamental incompleto. A baixa escolaridade e outros fatores socioeconômicos, como baixa renda familiar, contribuem para o aumento da prevalência de doenças crônicas. Parcelas populacionais socialmente desfavorecidas têm maiores dificuldades de acesso à saúde e à informação, o que resulta em diagnóstico tardio de enfermidades como o câncer20 , 24 .
A religião predominante, tanto no grupo de pacientes quanto no grupo de cuidadores, é a católica. Esse dado está em consonância com os resultados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que aponta o catolicismo como principal religião da população brasileira (64,6%), seguida pela religião evangélica (22,2%)25 .
O tipo mais frequente de câncer entre os pacientes participantes da pesquisa é o de mama (40%), seguido pelo câncer de próstata e de colo uterino (ambos com 6%). Essa prevalência guarda semelhança com dados do Instituto Nacional de Câncer, que indica as neoplasias de mama e de próstata como as mais incidentes em 2020 depois do câncer de pele não melanoma21 .
Em relação ao conhecimento dos pacientes oncológicos e seus cuidadores sobre cuidados paliativos, ordem de não reanimar e testamento vital, a maioria desconhecia todos esses termos. O desconhecimento foi maior no que se refere ao testamento vital entre pacientes. Esses achados provavelmente se devem, ao menos em parte, ao perfil socioeconômico dos indivíduos, considerando o nível de escolaridade, menor entre os pacientes do que entre os cuidadores14 , 26 .
O desconhecimento dos pacientes e cuidadores sobre os conceitos citados pode ser visto como um dos reflexos da falta de diálogo entre equipe multiprofissional de saúde e o doente e seus familiares. Falar da morte na relação médico-paciente ainda é uma tarefa difícil, principalmente por dois motivos. O primeiro é a incapacidade de lidar com o sofrimento alheio, relacionada ao confronto com a própria finitude – incapacidade essa que gera a urgência de tratar somente aspectos físicos da doença, em detrimento da dimensão emocional do paciente3 , 7 . O segundo motivo é a linguagem técnica empregada pelos profissionais de saúde, na maioria das vezes incompreensível para o paciente. A ausência de esclarecimentos sobre o prognóstico e a exclusão do doente da tomada de decisões pode reforçar sentimentos de angústia e impotência, tanto no paciente quanto em seus familiares4 .
Após os pesquisadores esclarecerem o conceito de testamento vital e de diretivas antecipadas de vontade, a maioria dos pacientes (60%) e cuidadores (60%) demonstraram interesse em fazer seu testamento vital – resultado semelhante ao encontrado por Comin e colaboradores14 . Em contrapartida, no que se refere à ordem de não reanimar, apenas 18% dos pacientes e 38% dos cuidadores concordaram com a possibilidade de não serem reanimados em caso de doença grave e incurável.
Apesar da opinião favorável à reanimação, 69% dos pacientes disseram não desejar que sua vida fosse mantida por aparelhos em situação de doença grave e incurável. Esses resultados mostram que, no primeiro momento, a preferência da maioria é pela sobrevivência a qualquer custo, mesmo em condição de terminalidade da vida. Porém, com a mudança de cenário, poucos concordam com a manutenção artificial da vida (distanásia). Comin e colaboradores14 argumentam que tal comportamento provavelmente se deve ao desconhecimento das sequelas de uma reanimação malsucedida, como disfunção miocárdica, acidente vascular encefálico e disfunção múltipla de órgãos27 .
Apesar de outros estudos14 , 28 identificarem relação entre gravidade da doença e confronto do paciente com a possibilidade de que sua condição seja incurável, não houve associação significativa, na presente pesquisa, entre a incidência de metástases e a reflexão gerada pela consciência de estar em uma situação de terminalidade da vida.
Dentre as doenças crônicas mais frequentes, o câncer é uma das mais estigmatizantes, e entre pacientes oncológicos a prevalência de transtornos psiquiátricos é maior do que na população em geral. A ansiedade, comum no início do tratamento quimioterápico antineoplásico, e a depressão, que pode estar presente em qualquer etapa da doença, afetam a qualidade de vida do doente29 . Nesse sentido, tem se reconhecido o papel da espiritualidade e da religiosidade na aceitação do diagnóstico e na criação de um propósito para a vida, ajudando a superar a ansiedade e o sofrimento do paciente30 .
Além da dimensão espiritual e religiosa, o apoio familiar e da equipe de saúde também podem melhorar a qualidade de vida do doente. Na presente pesquisa, pacientes que relataram apoio no momento do diagnóstico e boa comunicação com o médico atribuíram nota maior para a qualidade de vida após a descoberta da doença. Esse resultado reforça a necessidade de que os profissionais de saúde sejam capacitados para cuidar do paciente oncológico de maneira integral.
De acordo com dados da ANCP31 , em 2019 havia 191 centros de cuidados paliativos no Brasil, o que equivale a um serviço por 1,1 milhão de habitantes, número muito abaixo do que a Associação Europeia de Cuidados Paliativos recomenda (dois serviços por 100 mil habitantes). Além disso, esses centros enfrentam diversas dificuldades, como ausência de diretrizes próprias para manejo da dor; ausência fora do ambiente hospitalar (por exemplo, na atenção primária); desigualdade na distribuição geográfica, já que a maioria se concentra nas regiões Sudeste e Sul; e inexistência de portarias que regulamentem a fiscalização e o financiamento dessas instituições31 .
O estudo da ANCP aponta ainda que, embora seja possível observar crescente engajamento dos centros de cuidados paliativos com programas de residência médica ou multidisciplinares, menos de 20% dessas instituições têm vínculos com cursos de graduação e pós-graduação31 . Segundo Nickel e colaboradores32 , a resistência em inserir os cuidados paliativos na grade curricular das faculdades de medicina e de outras áreas da saúde impede uma formação profissional completa e humanizada para lidar com o sofrimento do outro. Isso se reflete na defasagem das equipes multiprofissionais, observada na pesquisa da ANCP nos centros de cuidados paliativos, que contam com poucos profissionais especializados nesse tipo de assistência.
Com relação ao perfil dos cuidadores, a maioria são filhos (41%) e cônjuges (21%) dos pacientes, do sexo feminino (75%), e têm entre 25 e 51 anos (65%). Esse perfil coincide com achados de outras pesquisas16 , 18 , 33 , 34 que revelam predominância de mulheres como reflexo do padrão sociocultural que associa o gênero feminino às tarefas domésticas e ao cuidado do outro. O perfil de idade corresponde às relações de parentesco mais prevalentes.
Quanto à qualidade de vida do cuidador, 66% discordam que a função de acompanhantes/cuidadores atrapalhou sua vida profissional, e 56% não se sentem sobrecarregados pelo cuidado do paciente oncológico. Esses resultados não são compatíveis com o observado na literatura, que aponta recorrente esgotamento físico e mental de familiares responsáveis pelo cuidado de pacientes com diagnóstico de câncer16 , 18 , 33 , 34 . Tendo em vista a impossibilidade, na maioria das vezes, em manter privacidade na aplicação do questionário, com separação física entre cuidadores e pacientes, é possível que nesse quesito as respostas da presente pesquisa tenham sido tendenciosas.
Cuidadores de pacientes com câncer estão mais propensos a apresentar depressão, ansiedade, insônia e estresse inerentes à prestação de cuidados cotidianos e ao atendimento em cirurgias, sessões de quimioterapia e radioterapia. Ademais, na maioria das vezes, o cuidador também precisa lidar com as atividades domésticas e fornecer suporte financeiro e emocional ao doente18 .
Dessa forma, as demandas do paciente são priorizadas em relação aos momentos de lazer, relacionamentos e trabalho do próprio cuidador. Essa realocação de prioridades, com consequente sofrimento psíquico e físico e redução da qualidade de vida, é mais prevalente em três situações apontadas pela literatura: cuidadores que estão há mais tempo exercendo essa função; cuidadores de pacientes com câncer avançado; e na ausência de apoio da equipe médica16 .
Nesta pesquisa, não foi possível avaliar a qualidade de vida de cuidadores de pacientes com câncer avançado, já que a variável presença de metástase foi colocada apenas nos questionários dos pacientes, e nem todos os pacientes estavam acompanhados de cuidador no momento da coleta de dados. Ademais, muitos dos pacientes, mesmo na presença do cuidador, não sabiam ser portadores de metástases.
Em contrapartida, observou-se associação entre tempo de cuidado e sobrecarga referida, já que a chance de o cuidador que exerce essa função há mais de um ano apresentar sobrecarga é superior à do cuidador que começou a cumprir a tarefa há menos de um ano. Também houve associação entre auxílio da equipe médica e sentimento de capacidade para exercer a função de cuidador, resultado que mostra como o apoio da equipe multiprofissional de saúde é fundamental para construir uma relação de confiança com a família do paciente e melhorar a qualidade de vida do cuidador.
O sentimento de incapacidade do familiar cuidador deve-se à ausência de formação e preparação. Desamparados pela junta médica, os cuidadores muitas vezes se sentem despreparados para lidar com uma doença que desconhecem e que é divulgada como extremamente temível33 , 34 . Vinculado ao pavor socialmente estabelecido, há o desejo de não perder um ente querido: como mostra a presente pesquisa, 50% dos cuidadores sentem-se mal em relação à perspectiva de evolução da doença do paciente.
As consequências da sobrecarga dos cuidadores são relevantes e devem ser objeto de atenção. Níveis altos de estresse em cuidadores são fatores predisponentes para que o luto seja mais traumático e prolongado33 . Prezar pelo bem-estar desses indivíduos, com garantia de apoio psicológico pela equipe de saúde, é também pensar na qualidade de vida do paciente.
Com a descoberta de novos tipos de câncer, as equipes de saúde precisaram se adaptar a um novo cenário em que a terminalidade da vida está cada vez mais presente. Nesse cenário, garantir a “qualidade de morte” do paciente torna-se mais importante do que preservar a vida a qualquer custo, por meio da obstinação terapêutica. Como fruto dessa evolução, conquistas legais e médicas vão se consolidando, a exemplo dos cuidados paliativos e de documentos como a ordem de não reanimar e o testamento vital, ou diretivas antecipadas de vontade.
Apesar desses avanços, a terminalidade da vida é um assunto consideravelmente novo, ainda em processo de construção e adaptação, tanto para aqueles que recebem o diagnóstico de uma doença incurável quanto para a equipe profissional. Cuidar de pessoas com doenças crônicas progressivas avançadas exige não apenas conhecimento técnico, mas também controle emocional, já que essas situações suscitam o confronto com a própria finitude e demandam habilidades comunicativas para manutenção de um diálogo efetivo com o paciente e seus familiares.
Conversar abertamente sobre o estado de saúde do doente e esclarecer dúvidas são ações essenciais para assegurar que o cuidador se sinta capaz de exercer sua função, e esse sentimento de confiança se reflete na qualidade do cuidado fornecido ao paciente oncológico. Nesse sentido, o apoio dos profissionais de saúde mostrou-se uma variável significativa na qualidade de vida de pacientes e cuidadores, em especial daqueles que estão há mais de um ano nessa condição.
Com relação aos cuidados paliativos, ordem de não reanimar e testamento vital, os resultados demonstraram desconhecimento geral, especialmente no que se refere às diretivas antecipadas de vontade entre pacientes. Tal desconhecimento por parte de doentes e cuidadores pode ser reflexo da ausência de capacitação dos profissionais de saúde para abordar esses temas. No entanto, fornecer informações a pacientes e familiares sobre seus direitos e outras questões éticas deve ser parte da conduta médica. Essa ação, que leva ao abandono do paternalismo, é a melhor forma de empoderar os pacientes para que exerçam sua autonomia justamente num momento em que ela está mais enfraquecida.
Suppl1.pdf (pdf)
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Laura Marques Angelo Neto – Graduanda – lauramarquesangelo@gmail.com
Viviane Maria Cavalcante Tavares – Graduanda – vivianemct97@gmail.com
Lícia Pereira da Silva Tuller – Graduanda – pereiratuller@gmail.com
Criselle Tenório Santos – Graduanda – criselle.santos@famed.ufal
Jorge Artur Peçanha de Miranda Coelho – Doutor – jorgearturcoelho@outlook.com
Laura Marques Angelo Neto foi responsável pela concepção do estudo. Viviane Maria Cavalcante Tavares contribuiu com a coleta e análise de dados. Lícia Pereira da Silva Tuller colaborou com o desenho da metodologia e o aporte de referências. Criselle Tenório Santos colaborou com a redação do artigo. José Humberto Belmino Chaves foi responsável pela revisão crítica. Jorge Artur Peçanha de Mirando Coelho contribuiu com a análise dos dados no software SPSS.
Correspondência: José Humberto Belmino Chaves – Campus A.C. Simões. Av. Lourival Melo Mota, s/n CEP 57072-900. Maceió/AL, Brasil.