Resumo: A participação do paciente no planejamento de seus cuidados de saúde respeita seu direito à autodeterminação. Com isso, esta pesquisa teve como objetivo avaliar o posicionamento de médicos que atuam no Serviço de Emergência Hospitalar do Hospital de Clínicas de Porto Alegre em relação às diretivas antecipadas de vontade de pacientes. Trata-se de estudo transversal com 32 médicos. A maioria dos participantes (81,3%) afirmou conhecer as diretivas antecipadas de vontade, mas apenas 6,3% tinham conhecimento suficiente; 87,5% foram favoráveis à sua utilização e a vontade do paciente foi considerada determinante em três dos quatro cenários apresentados; e 84,4% consideraram necessária legislação específica além da Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Ao final do estudo foi concluído que a maioria dos médicos tinha conhecimento prévio sobre diretivas antecipadas de vontade e se posicionara a favor da utilização deste tipo de documento em emergência hospitalar.
Palavras chave: Tomada de decisões, Diretivas antecipadas, Serviços médicos de emergência, Bioética.
Abstract: Patient participation in planning their health care means respecting the patient’s right to self-determination. In this sense, this study aimed to examine the position of doctors working in the Hospital Emergency Service of the Hospital de Clínicas de Porto Alegre regarding patient advance directives. This is a cross-sectional study conducted with 32 physicians. Most participants (81.3%) declared to have knowledge about advance directives, but only 6.3% declared having sufficient knowledge; 87.5% were in favor of their use and the patient’s will was considered decisive in three of the four scenarios presented; and 84.4% considered that specific legislation on the matter is necessary in addition to Resolution 1995/2012 of the Federal Council of Medicine. Our results allowed us to conclude that most physicians had prior knowledge about advance directives and were in favor of using this type of document in hospital emergency care.
Keywords: Decision making, Advance directives, Emergency medical services, Bioethics.
Resumen: La participación del paciente en la planificación de su atención médica respeta su derecho a la autodeterminación. Así, esta investigación tuvo como objetivo evaluar el posicionamiento de médicos que actúan en el servicio de emergencia hospitalaria del Hospital de Clínicas de Porto Alegre en relación a las directivas anticipadas de voluntad de los pacientes. Se trata de un estudio transversal con 32 médicos. La mayoría de los participantes (81,3%) afirmó conocer las directivas anticipadas de voluntad, pero solo el 6,3% tenía conocimiento suficiente; el 87,5% se mostró a favor de su uso y la voluntad del paciente fue considerada determinante en tres de los cuatro escenarios presentados; y el 84,4% consideró necesaria una legislación específica además de la Resolución 1995/2012 del Consejo Federal de Medicina. Al final del estudio se concluyó que la mayoría de los médicos tenían conocimiento previo sobre directivas anticipadas de voluntad y se habían posicionado a favor de la utilización de este tipo de documentos en emergencias hospitalarias.
Palabras clave: Toma de decisiones, Directivas anticipadas, Servicios médicos de urgencia, Bioética.
Pesquisa
Diretivas antecipadas de vontade em unidade de emergência hospitalar
Advance directives in a hospital emergency department
Directivas anticipadas de voluntad en una unidad de emergencia hospitalaria
Recepção: 11 Fevereiro 2021
Revised document received: 7 Fevereiro 2022
Aprovação: 14 Fevereiro 2022
A ampliação da longevidade é um dos grandes desafios da ciência na área da saúde humana. Esta busca tem sido associada à tentativa de postergar o momento da morte e modificar o curso natural da doença, assim como ao aumento da incidência de múltiplas comorbidades. A maior longevidade pode, algumas vezes, apenas prolongar a existência, sendo acompanhada do comprometimento da qualidade de vida 1 , 2 .
Da mesma forma, nas últimas décadas vem ocorrendo sensível avanço do reconhecimento da autonomia e do direito do paciente a se autodeterminar. Isto tem gerado desafios para os profissionais em termos de como informar adequadamente para permitir que o paciente decida sobre seu tratamento, com a liberdade de autorizar ou recusar procedimento ou terapêutica 1 .
Um dos objetivos contemporâneos da área da saúde é garantir que a alta qualidade assistencial se associe ao respeito à autonomia do paciente. Isto tem sido especialmente desafiador nas emergências hospitalares 2 , nas quais existe a constatação médica de condições de saúde que implicam risco iminente de morte ou de sofrimento intenso. Estas condições exigem rápida tomada de decisão para permitir adequado tratamento médico em curto período 3 . Tal situação pode inclusive caracterizar paternalismo justificado, quando não existe possibilidade de o paciente participar do processo de tomada de decisão.
O princípio do respeito à autonomia se associa ao direito pessoal de escolher de forma livre, com o mínimo possível de influência externa. A garantia do respeito à autodeterminação – poder expressar seus desejos e participar ativamente do planejamento dos seus cuidados de saúde – vem sendo progressivamente incorporada à prática dos profissionais da área 4 . É importante diferenciar autonomia, entendida como capacidade de decidir, e autodeterminação, como exercício de decisão 5 .
No Brasil existem inúmeras garantias para o direito de participação das pessoas. A liberdade é direito fundamental assegurado pelo artigo 5º da Constituição Federal 6 . O Código Civil 7 , em seu artigo 15, garante o poder de participar ativamente das decisões que envolvem tratamentos e procedimentos médicos. A Lei 10.741/2003 8 estabelece em seu artigo 17 proteção adicional aos idosos para garantir esta mesma participação, prevendo ainda que, caso o paciente esteja incapacitado de decidir, esta decisão deverá ser tomada por seu curador, se houver, seus familiares ou mesmo seu médico, em situações de risco à vida.
Entretanto, nem todas as pessoas têm condições de exercer plenamente sua autonomia. O desenvolvimento psicológico-moral ocorre ao longo da vida e pode ser reduzido por inúmeros fatores físicos e mentais, prejudicando total ou parcialmente sua capacidade de se autodeterminar devido a doenças, distúrbios mentais ou circunstâncias que severamente restrinjam a liberdade 9 . Adicionalmente, muitas vezes pacientes atendidos em emergência hospitalar podem não estar em condições de se autodeterminar, e seus familiares tomar decisões que não estejam de acordo com seus desejos. Isto pode ser evitado com o uso de diretivas antecipadas de vontade (DAV) ou com a definição prévia de representante que poderá tomar decisões em seu lugar quando estiver incapacitado 10 , 11 .
No Brasil, esta possibilidade é assegurada pela Resolução 1.995/2012 12 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que estabeleceu condições e procedimentos para garantir que os desejos do paciente sejam considerados mesmo quando não puder participar ativamente das decisões sobre tratamentos de saúde. Esta resolução 12 estabeleceu que a vontade expressa pelo paciente em DAV, registradas em seu prontuário pela equipe médica, prevalece sobre as decisões de seus familiares. A indicação de representante, também identificado em prontuário, garantirá que esta pessoa será sua interlocutora com a equipe assistencial. Somente o próprio paciente poderá alterar as DAV. Segundo esta mesma Resolução CFM 1.995/2012 12 , as DAV devem ser levadas em consideração pela equipe assistencial quando da tomada de decisão envolvendo paciente incapaz de participar deste processo. As diretivas, contudo, são orientações, não obrigações 12 .
Alguns estudos demonstram que profissionais de saúde têm dúvidas a respeito das DAV, e a este desconhecimento se agregam temores associados à falta de legislação específica sobre o tema no Brasil 13 . Apesar da reconhecida ausência de leis próprias sobre DAV, a legislação existente engloba esta possibilidade em artigos da Constituição Federal 6 , do Código Civil 7 e do Estatuto do Idoso 8 . A Resolução CFM 1.995/2012 12 estabelece explicitamente as DAV e a possibilidade de indicar representante para fins de tomada de decisão em saúde. A associação destes documentos garante a adequação de seu uso do ponto de vista legal e deontológico 12 .
Em atendimentos de emergência, algumas peculiaridades agregam outros fatores que podem dificultar a adequada utilização das DAV. Um fator é a falta de conhecimento prévio do paciente, de suas necessidades e de suas preferências. Em pacientes com doenças crônico-degenerativas, a agudização de sua doença de base pode gerar importantes questões éticas sobre a adequação dos tratamentos a serem oferecidos. Isto se torna ainda mais difícil quando estes pacientes não têm mais possibilidade terapêutica de cura. Pacientes, familiares e equipe assistencial nem sempre concordam acerca destas perspectivas 14 .
Em situações envolvendo pacientes com doenças incuráveis ou em fim de vida, alguns tratamentos disponibilizados em serviços de emergência podem ser considerados obstinação terapêutica 15 . Este tipo de atendimento pode ter consequências para o paciente em termos de desconforto físico e perda de qualidade de vida. Para os familiares, este tratamento pode acarretar falsas expectativas e custos elevados. Do ponto de vista da sociedade, este tipo de atendimento pode gerar consumo fútil de recursos 16 .
Porém, nem sempre esta situação é clara. Muitas vezes, o médico que atua em unidade de emergência se defronta com casos de difícil decisão, associada a alto grau de incerteza e exigindo rápida intervenção. O desenvolvimento psicológico-moral influencia diretamente a abordagem dessas circunstâncias. É ele que permite melhor qualidade em todo o processo, em função da complexidade dos múltiplos interesses envolvidos 17 .
O desconhecimento e a incerteza associados às situações de emergência tornam a tomada de decisão ainda mais complexa. Podem ocorrer expectativas conflitantes, principalmente quanto à conduta e aos procedimentos a serem adotados. O paciente, mesmo em final de vida, quando é levado para atendimento de emergência, tem a expectativa de ter sua vida preservada. A busca de atendimento emergencial pode ser entendida como pedido de socorro. O relacionamento profissional-paciente-família é fundamental 18 .
A comunicação eficiente e afetuosa entre médicos, pacientes e familiares é componente primordial do cuidado centrado no paciente; entretanto, nos atendimentos de emergência o tempo de interação é restrito ou mesmo nulo. As DAV podem ser importante fator neste processo de comunicação e de tomada de decisão ao envolver não apenas a vida, mas também o viver do paciente. Porém, na maioria das vezes, as vontades, expectativas e desejos dos pacientes associados ao seu viver futuro não são valorizados, não foram compartilhados ou são, até mesmo, desconhecidos 4 . Com isso, o objetivo do presente artigo é avaliar o posicionamento dos médicos que atuam em serviço de emergência hospitalar acerca das DAV de pacientes, em termos de conhecimento, valorização e respaldo ético-legal.
Realizou-se estudo transversal envolvendo médicos que atuam no Serviço de Emergência Adulto do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Todos os 43 médicos que desempenhavam atividades clínicas no local de pesquisa foram convidados a participar e os dados foram coletados no próprio local de trabalho assistencial dos participantes.
Dados sociodemográficos e características profissionais dos participantes foram coletados, incluindo idade, sexo e tempo de atividade em emergência. Foram apresentadas questões envolvendo o grau de conhecimento pessoal sobre DAV, a posição pessoal acerca de sua utilização e eventual justificativa para seu uso. Foi questionada também a necessidade de legislação específica. Outra questão buscou verificar se, em sua percepção pessoal, os médicos entendem que existem diferenças, do ponto de vista ético, entre não implantar ou retirar medidas terapêuticas fúteis. Foram apresentados ainda 11 diferentes aspectos que poderiam estar associados à utilização das DAV. Para avaliar o posicionamento dos médicos no processo de tomada de decisão, foram apresentados quatro diferentes cenários, cada um com seis alternativas: o paciente tem papel determinante; o paciente influencia a decisão do médico; o paciente e seus familiares influenciam a decisão do médico; somente os familiares influenciam a decisão do médico; falta amparo legal; ou risco judicial associado.
O desenvolvimento psicológico-moral dos profissionais foi verificado utilizando instrumento previamente validado 19 . Esta ferramenta propõe que o participante selecione nove sentenças entre 30 diferentes opções que se associam às diferentes fases do desenvolvimento psicológico-moral: impulsiva, oportunista, conformista, conscienciosa, autônoma e integrada. A pessoa é considerada capaz de tomar decisões no seu melhor interesse quando for classificada nas fases conformista, conscienciosa, autônoma e integrada. Com base na seleção de frases, realizada de forma individual, cada participante é classificado em uma das fases.
Os dados obtidos foram analisados por metodologias mistas. Foram utilizadas técnicas estatísticas descritivas e inferenciais. Associações foram obtidas por meio do teste exato de Fisher, em função do tamanho da amostra estudada. O nível de significância estabelecido foi de 5% ( p <0,05). O sistema SPSS, versão 18, foi utilizado para estas avaliações, e os dados qualitativos foram avaliados por análise de conteúdo 20 .
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HCPA, estando de acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional da Saúde 21 . Todos os participantes autorizaram o uso de seus dados por meio de termo de consentimento livre e esclarecido.
Foi obtida amostra de conveniência de 32 médicos, representando 74,4% dos 43 profissionais que atuavam no Serviço de Emergência do HCPA e que foram convidados a participar da pesquisa. A idade dos participantes variou de 32 a 58 anos. A distribuição quanto ao sexo foi equilibrada, sendo 50% dos participantes mulheres e 50%, homens. O menor tempo de atividade em atendimentos de emergência foi seis meses, e o maior, 25 anos, com média e mediana de 10 anos.
A avaliação do desenvolvimento psicológico-moral demonstrou que todos os participantes tiveram resultados compatíveis com a capacidade de decidir adequadamente, situando-se nas fases conformista, conscienciosa, autônoma e integrada. A fase autônoma foi a mais frequente, com 20 (62,5%) médicos, seguida da fase conscienciosa, com 10 (31,3%) médicos. As fases conformista e integrada tiveram apenas um médico (3,1%) cada.
Afirmaram conhecer as DAV 26 (81,3%) participantes da pesquisa, dos quais apenas dois (6,3%) declararam ter conhecimentos suficientes. Dos demais, 12 (37,5%) afirmaram ter conhecimento médio e os outros 12 (37,5%), pouco conhecimento sobre o tema. Quanto à utilização das DAV, a maioria dos participantes (28 médicos, 87,5% da amostra) posicionou-se a favor, dois (6,3%) afirmaram que talvez as utilizassem, um (3,1%) afirmou que não as utilizaria e outro (3,1%) não respondeu.
Foram apresentadas justificativas para a utilização das DAV por 25 (78,1%) participantes, sendo possível agrupá-las em quatro categorias: duas relacionadas ao paciente – autonomia (50%) e seu esclarecimento prévio e adequado (6,3%) – e outras duas relacionadas ao médico – facilitar sua tomada de decisão (15,6%) e evitar a utilização de medidas terapêuticas fúteis (6,3%). Do ponto de vista legal, 27 (84,4%) participantes consideram legislação específica necessária para situações de uso das DAV, além da Resolução CFM 1.995/2012 12 . Caso houvesse legislação específica, 28 (87,5%) médicos afirmaram que acatariam as DAV, e os quatro (12,5%) restantes responderam que talvez as considerassem em suas decisões.
Apenas um (3,1%) dos 32 participantes não respondeu às questões envolvendo os quatro cenários de tomada de decisão. Nas respostas dadas, nenhum participante escolheu as alternativas referentes a “falta de amparo legal” ou “risco judicial”. Todas as escolhas envolviam o paciente ou os familiares no processo de tomada de decisão ( Tabela 1 ).
O primeiro cenário apresentado questionava como o médico se posicionaria em relação a paciente plenamente capaz e ainda com possibilidades terapêuticas de cura que se negasse a autorizar procedimento. A maioria dos respondentes (25 médicos, 80,6%) indicou que a vontade do paciente seria determinante para a tomada de decisão, quatro (12,9%) médicos assinalaram que a decisão envolveria o paciente e seus familiares, e apenas dois (6,5%) responderam que a vontade do paciente iria influenciar a decisão do médico.
O segundo cenário envolvia paciente considerado plenamente capaz, mas fora de possibilidades terapêuticas de cura, que se nega a autorizar procedimento. O padrão de distribuição do cenário anterior foi mantido, apenas com ampliação das respostas que caracterizam a vontade do paciente como determinante, escolhida por 28 (90,3%) médicos. O envolvimento do paciente e de seus familiares foi apontado por dois (6,5%) participantes, e apenas um (3,2%) respondeu que o paciente influenciaria a decisão.
O terceiro cenário mantém a situação de paciente fora de possibilidades terapêuticas de cura, mas que havia deixado DAV documentadas em prontuário, nas quais manifesta sua negativa. As respostas mantiveram distribuição semelhante às do primeiro e segundo cenários, pois 26 (83,9%) participantes optaram pela vontade do paciente ser determinante, quatro (12,9%) considerariam a vontade do paciente e dos familiares, e um (3,2%) apenas seria influenciado pela vontade manifestada pelo enfermo.
No quarto e último cenário, paciente fora de possibilidades terapêuticas de cura que não está em condições de participar do processo decisório apenas manifestou verbalmente a um familiar sua negativa para a realização do procedimento. O padrão de respostas se alterou nesta situação. A vontade do paciente foi considerada determinante por 14 (45,2%) participantes, seguida da consideração da vontade do paciente e de seus familiares por 12 (38,7%) médicos. A opção de apenas o paciente influenciar a decisão foi escolhida por quatro (12,9%) respondentes, e somente um (3,2%) selecionou que apenas a vontade dos familiares seria levada em consideração.
A avaliação das respostas dadas aos quatro cenários permite verificar padrão que mantém a vontade do paciente como determinante quando manifestada diretamente pelo enfermo ao seu médico ou por meio de DAV, independentemente de o paciente estar ou não fora de possibilidade terapêutica de cura. Foi verificada alteração deste padrão com associação significativa (X2=19,09; p =0,003) apenas quando a manifestação do paciente é indireta, por meio de familiar. Nesta situação houve distribuição das respostas entre a vontade do paciente ser determinante e a vontade do paciente e dos familiares ( Tabela 1 ). Se isolado o fator de o paciente estar ou não fora de possibilidade terapêutica de cura, a associação não foi significativa quanto a considerar sua vontade determinante (X2=0,3583; p =0,549 NS). Por outro lado, quando esta associação envolve a manifestação direta do paciente ou por meio de DAV, comparativamente àquela manifestada por familiar, sem documentação associada, ela passa a ser muito significativa (X2=17,5627; p =0,00001).
Houve quase unanimidade entre os médicos (29 participantes, 90,6%) em relação a não haver diferença, do ponto de vista ético, entre não implantar ou retirar medidas terapêuticas consideradas fúteis. Os três (9,4%) médicos restantes afirmaram que se justifica apenas não implantar medida fútil.
Foram apresentados 11 diferentes aspectos que poderiam influenciar a utilização de DAV em decisões envolvendo pacientes atendidos em serviço de emergência hospitalar. Cada participante poderia selecionar os aspectos que julgasse relevantes. Os aspectos éticos foram os mais selecionados (93,8%), seguidos de aspectos morais (87,5%), técnicos (81,2%), legais (78,1%), religiosos do paciente (56,2%), deontológicos (34,3%), financeiros do paciente (12,5%), educacionais (15,6%), religiosos do profissional (3,1%) e financeiros da instituição (3,1%). Apenas a alternativa referente aos aspectos financeiros do profissional não foi selecionada ( Figura 1 ).
A amostra de médicos que participaram da pesquisa tinha boa experiência em atendimentos de emergência, pois mais de 50% do grupo atuava na área há mais de 10 anos. Todos os participantes apresentaram desenvolvimento psicológico-moral necessário para a tomada de decisão adequada, sendo que a maioria (65,6%) estava na fase autônoma ou integrada. Nestas duas fases, a pessoa já apresenta a noção de regra introjetada, permitindo a tomada de decisões livre de constrangimento externo e independente 22 .
Contudo, além do necessário desenvolvimento psicológico-moral, a capacidade de decisão abrange diversas outras habilidades, como a possibilidade de se envolver com o assunto, compreender e avaliar alternativas e comunicar sua preferência 23 . Nos ambientes assistenciais de atendimento de emergência, o relacionamento profissional-paciente e a comunicação podem ficar prejudicados em função da falta de conhecimento prévio. As DAV são capazes de suprir, pelo menos em parte, esta falta de informações a respeito dos desejos e preferências dos pacientes.
A maioria da amostra (81,3%) afirmou conhecer as DAV, ainda que de maneira precária, pois apenas pequeno grupo informou ter bons conhecimentos (6,3%). Vários estudos 24 - 26 realizados no Brasil nos últimos anos verificaram baixo conhecimento sobre DAV entre estudantes de medicina, mesmo que conheçam a Resolução CFM 1.995/2012 12 .
Grande parte dos médicos participantes do presente estudo (87,5%) se posicionou a favor do uso desta forma de documentar desejos e preferências dos pacientes. Vale destacar a relação entre acatar a vontade do paciente e saber o que são as DAV. Os dois médicos que responderam que o paciente poderia apenas influenciar, mas não definir a decisão a ser tomada tinham pouco e médio conhecimento sobre as diretivas. O único médico que respondeu que não levaria em consideração a vontade antecipada pelo paciente em sua tomada de decisão desconhecia as DAV.
A maioria de respondentes (87,5%) se manifestou ainda quanto à necessidade de legislação específica sobre o tema, além da Resolução CFM 1.995/2012 12 . A frequência das respostas dos médicos que utilizariam as DAV caso houvesse suporte legal próprio se manteve no mesmo patamar (87,5%), ou seja, a existência de legislação específica poderia amparar melhor as decisões, mas não alteraria a disposição dos profissionais de considerar as DAV. Outro estudo também identificou esta questão, enfatizando que os médicos poderiam tomar decisões de forma mais segura caso houvesse legislação específica sobre as diretivas 27 .
A utilização das DAV tem respaldo legal na Constituição Federal 6 , em seu artigo 5º, e no Código Civil 7 , no seu artigo 15. A primeira estabelece a autonomia como direito fundamental, e o segundo garante a participação do paciente e a possibilidade de consentir ou não em tratamentos médicos. Da mesma forma, o Estatuto do Idoso, Lei 10.741/2003 8 , que se aplica às pessoas com mais de 60 anos, reitera a garantia de participação em situações de atendimento médico. A Resolução CFM 1.995/2012 12 estabelece a forma eticamente adequada de instrumentalizar a participação ativa do paciente, ainda que antecipada na eventualidade de sua incapacidade, no processo de tomada de decisão.
Contrariamente ao que foi contestado por alguns autores 28 , o CFM pode estabelecer rotinas e procedimentos que permitam o adequado exercício da medicina. Isto já ocorre, por exemplo, na área da reprodução assistida, por meio da Resolução CFM 2.168/2017 29 , e dos critérios para o diagnóstico de morte encefálica, com a Resolução CFM 2.173/2017 30 . O CFM tem atribuição legal de dispor sobre o desempenho ético da medicina, de acordo com a Lei 3.268/1957 31 .
Vários estudos 24 , 26 , 32 , realizados com diferentes amostras de médicos e estudantes de medicina, apresentaram igualmente resultados a favor de acatar as orientações dadas por pacientes em DAV. Estudo que visou identificar variáveis que influenciam médicos a implementar as DAV, assim como avaliar seu impacto nos cuidados de fim de vida, demostrou resultados similares 32 . Os profissionais tendiam a acatar o desejo de seus pacientes e concordaram que a diretriz antecipada ajudava o processo de tomada de decisão, levando ainda em consideração outros fatores, em especial condições de prognóstico e irreversibilidade.
As razões dadas pelos médicos para a utilização adequada das DAV englobaram as perspectivas dos pacientes e dos próprios profissionais. Do ponto de vista do paciente, as justificativas abordam as duas questões centrais para decisão adequada: a necessidade de estar apropriadamente esclarecido e o respeito à sua autonomia. Na perspectiva do médico, as diretivas facilitam a tomada de decisão por dar visibilidade aos desejos e expectativas do próprio paciente e, também, por respaldar a não utilização de medidas terapêuticas caracterizadas como fúteis, ou seja, que não beneficiam o paciente 32 .
Questão adicional se refere à diferença entre não implantar ou retirar medida terapêutica considerada fútil. Para a maioria dos participantes do presente estudo (90,6%), as ações se equivalem. Os demais participantes afirmaram que é adequado apenas não implantar (9,4%). Estas decisões sempre geram algum tipo de desconforto. Do ponto de vista ético, suspender ou não implantar medida terapêutica fútil são decisões equivalentes 33 , mas alguns médicos podem considerar inadequado retirar medidas consideradas fúteis pelo impacto psicológico associado às consequências desta ação.
Decisões médicas tomadas em ambientes de emergência são sempre sensíveis. Decidir não reanimar o paciente ou não implantar tratamentos invasivos é sempre difícil para a equipe assistencial. A carência de pesquisas na área, a falta de clareza em reconhecer nuances nessas situações e as diferentes atitudes e valores pessoais de profissionais, familiares e pacientes são elementos que dificultam ainda mais este processo 16 , 34 .
Na avaliação dos quatro cenários apresentados neste estudo, três deles tiveram mesmo perfil de respostas e apenas um se destacou. Nos cenários em que se conheciam os desejos do enfermo, seja diretamente pela sua manifestação à equipe assistencial, seja por meio de diretivas documentadas, e independentemente de o paciente estar ou não fora de possibilidade terapêutica de cura, sua vontade foi determinante. Porém, quando a vontade do paciente foi comunicada apenas por intermédio de familiar, esta manifestação indireta e não documentada foi considerada, mas com menor grau de determinação.
Na avaliação dos quatro cenários, fica evidente a importância de os médicos em serviço de emergência hospitalar incluírem os familiares do paciente no processo decisório. Isto se torna ainda mais necessário nos casos em que não existem DAV. Nesta situação, a família participa do processo com a finalidade de informar aos profissionais de saúde preferências, desejos e vontades manifestadas pelos pacientes a estas pessoas 35 .
Os aspectos associados às DAV e destacados pelos médicos neste estudo puderam ser classificados com base em suas frequências relativas. Os aspectos éticos, morais, técnicos, legais e religiosos do paciente tiveram mais respostas. Por outro lado, foram menos citados os aspectos financeiros do paciente, da instituição e do profissional, os deontológicos e os religiosos do profissional. Estes resultados demonstram que o processo decisório dos médicos é bastante abrangente.
Isto evidencia que a tomada de decisão na área da saúde deve considerar a adequação técnica das indicações médicas, as preferências e a qualidade de vida do paciente e o contexto externo, que inclui o marco legal associado 36 . Todos estes aspectos coincidem com as respostas dadas pelos médicos da amostra. Os dados do presente estudo são ainda semelhantes a pesquisa anteriormente realizada com médicos intensivistas de cinco diferentes hospitais brasileiros 37 .
Com base nas informações obtidas desta amostra de médicos que atuam em serviço de emergência hospitalar, é possível verificar a necessidade de ampliar a divulgação sobre as bases éticas e legais das DAV. Apesar disso, a maioria dos participantes se dispõe a acatar a vontade manifestada pelos pacientes neste tipo de instrumento. As justificativas para seu uso ressaltaram a participação do paciente e do médico no processo decisório, e os aspectos éticos, legais e técnicos foram os mais destacados pelos profissionais. Os dados do presente estudo reforçam a necessidade de promover ações educativas que tranquilizem os médicos que atuam em serviços de emergência no processo de considerar os desejos e preferências dos pacientes manifestados por meio das DAV.
José Roberto Goldim – Doutor – jrgoldim@gmail.com
Paula Azambuja Gomes idealizou o tema, pesquisou bibliografia e coletou dados do estudo. José Roberto Goldim orientou o trabalho, auxiliou na análise dos dados e efetuou a revisão crítica do conteúdo. Ambos os autores redigiram o artigo.
Correspondência: Paula Azambuja Gomes – Rua Luiz Fontoura Júnior, 230, apt. 803B CEP 91215-095. Porto Alegre/RS, Brasil.