Resumo: O objetivo deste estudo foi avaliar o conhecimento de profissionais de saúde e usuários sobre diretivas antecipadas de vontade em hospital-escola brasileiro. Aceitaram participar 145 pessoas, sendo 66,9% delas profissionais de saúde e 33,1%, usuários. A maioria dos participantes não conhecia diretivas antecipadas de vontade, com maior incidência entre usuários (61,9% dos profissionais, 91,7% dos usuários; p <0,001). Após serem instruídos acerca das diretivas antecipadas, 97,9% dos profissionais e 95,8% dos usuários ( p =0,60) afirmaram que pessoas deveriam elaborar diretivas e que a responsabilidade de iniciar a conversa era do médico (56,7%, 58,3%, respectivamente, p =0,71). Após a pesquisa, 73,2% dos profissionais e 58,3% dos usuários ( p =0,19) pensava em elaborar diretivas. Conclui-se que o conhecimento sobre o tema ainda está aquém do ideal no campo assistencial no hospital-escola avaliado, sendo menor entre usuários.
Palavras chave: Testamentos quanto à vida, Diretivas antecipadas, Conhecimento, Percepção.
Abstract: This study evaluated the knowledge of health professionals and users regarding advance directives in a Brazilian teaching hospital. The study sample comprises 145 participants – 66.9% of them health professionals and 33.1% users. Most participants had no knowledge about advance directives, with a higher incidence among users (61.9% of professionals, 91.7% of users; p <0.001). After learning about advance directives, 97.9% of professionals and 95.8% of users ( p =0.60) stated that individuals should draft directives and that physicians were responsible for initiating the conversation (56.7% and 58.3%, respectively, p =0.71). After the research, 73.2% of professionals and 58.3% of users ( p =0.19) thought about drafting directives. In conclusion, knowledge on the subject is still less than ideal in health care in the teaching hospital evaluated, especially among users.
Keywords: Living wills, Advance directives, Knowledge, Perception.
Resumen: El objetivo de este estudio fue evaluar el conocimiento de profesionales de salud y usuarios sobre directivas anticipadas de voluntad en un hospital docente brasileño. Un total de 145 personas aceptaron participar, el 66,9% de ellos profesionales de la salud y el 33,1% usuarios. La mayoría de los participantes no conocían directivas anticipadas de voluntad, con mayor incidencia entre usuarios (61,9% de los profesionales, 91,7% de los usuarios; p <0,001). Después de ser instruidos acerca de las directivas anticipadas, el 97,9% de los profesionales y el 95,8% de los usuarios ( p =0,60) afirmaron que las personas deberían elaborar directivas y que la responsabilidad de iniciar la conversación era del médico (56,7%, 58,3%, respectivamente, p =0,71). Después de la encuesta, el 73,2% de los profesionales y el 58,3% de los usuarios ( p =0,19) pensaba en elaborar directivas. Se concluye que el conocimiento sobre el tema aún está lejos del ideal en el campo de la atención en el hospital docente evaluado, siendo menor entre los usuarios.
Palabras clave: Voluntad en vida, Directivas anticipadas, Conocimiento, Percepción.
Pesquisa
Conhecimento sobre diretivas antecipadas de vontade em hospital-escola
Knowledge regarding advance directives in a teaching hospital
Conocimientos sobre directivas anticipadas de voluntad en un hospital docente
Recepção: 18 Junho 2021
Revised document received: 30 Novembro 2021
Aprovação: 1 Dezembro 2021
Diretivas antecipadas de vontade (DAV) foram definidas no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no artigo 1º da Resolução CFM 1.995/2012 como conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade1 . Trata-se de manifestação autônoma de pessoa que, enquanto consciente e informada, expressou-se sobre tratamentos a que pretende ou não se submeter quando em quadro de doença terminal e incurável.
As manifestações em fim de vida surgiram nos Estados Unidos com o advogado e ativista pelos direitos humanos Luis Kutner, que desenvolveu o conceito de living will , documento que permitia às pessoas se pronunciar previamente sobre tratamentos em saúde que aceitariam ou não receber quando não pudessem se comunicar em função do adoecimento 2 - 6 . No mesmo país, em 1990, foi publicada a primeira legislação federal de que se tem notícia, denominada Patient Self Determination Act7 .
Declarações de vontade em fim de vida estão subordinas à legislação de cada país 2 - 6 . O modelo americano 7 não estabeleceu formato fixo de documento e não obrigava o registro em base de dados, mas cada estado americano pode estabelecer leis específicas mais ou menos restritivas 8 . O modelo australiano, descrito pelo Consent to Medical Treatment and Palliative Care Act9 , é formal, exige registro de documento e estabeleceu o cadastro nacional de manifestações. O modelo português instituiu banco de registros nacional 10 .
No Brasil, as DAV são regidas por resolução do CFM 1 que orienta o paciente a se manifestar ao médico assistente, competindo ao profissional registrar as diretivas no prontuário. No entanto, a aparente facilidade gerou insegurança nos profissionais e na sociedade 2 , 3 . A maioria dos profissionais de saúde, incluindo médicos, alega desconhecer as diretivas, a resolução do CFM e questões ético-legais em fim de vida 6 , 11 - 13 , e refere que a ausência de modelo ou lei federal poderia levar a judicialização 4 , 6 , 11 , 14 , 15 .
Até o momento em que se redigiu este artigo, a temática fora abordada apenas em leis estaduais que versam sobre o direito do paciente à informação, recusa terapêutica, cuidados paliativos e escolha do local do óbito, como a Lei 10.241/1999 do estado de São Paulo 16 , a Lei 3.613/2001 do estado do Rio de Janeiro 17 e a Lei 20.091/2019 do estado do Paraná 18 . Localizaram-se no Senado Federal projetos de lei sobre cuidados paliativos, DAV e terminalidade da vida: o Projeto 267/2018 19 foi retirado pelo autor, e os projetos 149/2018 20 , 493/2020 21 e 883/2020 22 ainda tramitavam.
Elaborar DAV envolve consciência da finitude da vida e dos processos de adoecimento. O médico deve esclarecer ao paciente suas condições de saúde atuais e o que se pode esperar do futuro. É necessário que o enfermo seja competente para decidir, esteja consciente e compreenda claramente o resultado provável de aceitar ou recusar cuidados específicos, assim como sua própria percepção de qualidade de vida. A fim de definir quais itens e como serão manifestados nas diretivas, é adequado o diálogo acolhedor e verdadeiro entre paciente, familiares diretamente envolvidos nos cuidados e médico assistente 2 , 3 . Como é provável que ao longo da trajetória outros profissionais de saúde sejam envolvidos nos cuidados, como enfermeiros e técnicos de enfermagem, seria importante que estes compreendessem o que está envolvido nas manifestações descritas na DAV do paciente sob seus cuidados.
Com isso, este estudo teve o objetivo de avaliar o conhecimento e as percepções de profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem) e usuários (pacientes e acompanhantes) do Sistema Único de Saúde (SUS) sobre DAV em hospital-escola brasileiro e convidá-los para oficinas de elaboração do documento.
Trata-se de estudo transversal aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná e registrado na Plataforma Brasil, seguindo as recomendações para pesquisa em seres humanos vigentes no país.
As autoras desenvolveram questionário para coletar dados sobre o conhecimento e as percepções acerca das DAV. Esse instrumento foi baseado em outros questionários disponíveis na literatura, em artigos que abordaram a temática no território brasileiro 23 - 25 . Foram elaboradas questões simples, de múltipla escolha, que poderiam ser respondidas em até dez minutos. O instrumento desenvolvido foi revisado por outros três médicos experientes em DAV e testado em grupo-piloto de três médicos antes de ser aplicado aos participantes da pesquisa. O questionário final continha três questões demográficas e sete sobre o conhecimento das DAV, respondidas por alternativas.
Foram convidados para participar da pesquisa todos os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem) que trabalhavam nos setores assistenciais da clínica médica de hospital-escola localizado na cidade de Curitiba/PR. Foram convidados ainda usuários do SUS (pacientes e acompanhantes) que estavam na sala de espera do setor de consultas ambulatoriais eletivas no mesmo hospital, entre os dias 20 e 31 de janeiro de 2020.
Os critérios de inclusão de participantes foram: 1) ter pelo menos 18 anos de idade; 2) desejar e ter disponibilidade para participar; e 3) compreender os termos da pesquisa. Os participantes foram voluntários, não estavam em setores de urgência/emergência, foram orientados e tiveram o tempo desejado para ler e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).
Os dados foram coletados por três estudantes de medicina treinadas para os objetivos da pesquisa. Abordaram-se todos os potenciais participantes nos setores mencionados, explicou-se a pesquisa, esclareceram-se as dúvidas, avaliaram-se critérios de inclusão e aplicou-se o TCLE, que, depois de assinado, teve cópia impressa entregue aos participantes. A seguir, solicitaram-se dados demográficos e apresentou-se verbalmente o questionário, optando-se pela coleta na modalidade verbal com a intenção de aumentar a adesão e otimizar o tempo dos participantes. As perguntas foram lidas pelas auxiliares de pesquisa, que não interferiram nas respostas.
Para garantir homogeneidade dos dados obtidos, depois de aplicada e respondida a questão 1, explicou-se a todos os participantes o que seriam consideradas DAV neste estudo, utilizando o seguinte texto padrão: “documento regulamentado no Brasil e em outros países no qual a pessoa tem a possibilidade de descrever tratamentos que deseja ou não receber se estiver impossibilitada de se comunicar na fase final de vida”. Certificou-se da compreensão do participante antes de prosseguir.
Os dados obtidos foram digitados em planilha eletrônica, conferidos, comparados por grupos e submetidos a estudo estatístico no Software R, versão 3.6.1. As variáveis categóricas foram apresentadas em frequências absolutas e relativas, e as variáveis quantitativas em média e desvio padrão. Para as comparações entre variáveis categóricas, utilizou-se o teste exato de Fisher ou o teste qui-quadrado. O nível de significância adotado foi de 5% ( p ≤0,05).
Aceitaram participar da pesquisa 145 participantes, sendo 66,9% deles profissionais de saúde e 33,1%, usuários. Dos profissionais, 65 (67%) eram mulheres e 32 (33%), homens, sendo 30 (30,9%) técnicos de enfermagem, 7 (7,2%) enfermeiros, 37 (38,1%) médicos residentes e 23 (23,7%) médicos contratados do serviço, com média etária de 36,4±10,5 anos (variando de 24 a 67 anos). Dos usuários, 38 (79,2%) eram pacientes e 10 (20,8%) eram acompanhantes, sendo 35 (72,9%) mulheres e 13 (27,1%) homens, com média etária de 48,6±13,4 anos (variando de 19 a 71 anos).
A maioria dos profissionais (61,9%) e quase todos os usuários (91,7%) desconhecia qualquer instrumento de manifestação de vontade em fim de vida ( p <0,001). Entre os participantes que relataram conhecer algum documento, 27 (27,8%) profissionais e 2 (4,2%) usuários conheciam as DAV. Os dados podem ser observados na Tabela 1 .
Nas últimas décadas, a expectativa de vida aumentou. No cenário brasileiro, desde 1940 esse acréscimo foi de 31,1 anos e, em 2019, uma pessoa nascida no Brasil tinha expectativa de viver, em média, até os 76,6 anos de idade, sendo a sobrevida das mulheres sete anos acima daquela dos homens. A longevidade leva a mudanças no perfil de adoecimento, com maior número de diagnósticos de doenças crônico-degenerativas, oncológicas e falências orgânicas 26 .
Tratamentos que possibilitam cura ou modificação do curso de doenças foram largamente incorporados na prática assistencial em saúde. Atualmente, os pacientes – mesmo portadores de doenças graves, avançadas e incuráveis – podem viver cada vez mais tempo. O adoecimento tornou-se etapa de longa duração, cercada de intervenções médicas que podem aumentar o tempo de vida, mas que nem sempre acrescentam qualidade de vida 27 .
O respeito à autonomia do paciente é um dos pilares da bioética principialista 28 , e as DAV têm justamente a intenção de promover tratamentos alinhados com os valores da pessoa quando esta estiver impossibilitada de se manifestar em fim de vida. O enfermo – que deve ser o centro do cuidado em saúde – tem o direito de receber informações sobre diagnósticos, conhecer o prognóstico e participar das estratégias de tratamento e, ainda, ter seus valores pessoais incluídos nos cuidados.
O paciente tem o direito de aceitar ou recusar aquilo que o médico propõe, desde que seja orientado e informado dos riscos e benefícios, especialmente nas questões da terminalidade da vida. Trata-se do respeito à autonomia humana 28 . Não se trata de ofertar ao acaso o que o paciente quer ou não, mas incluir o que é cientificamente apropriado, indicar o que é proporcional, adequando as intervenções terapêuticas ao momento de vida e doenças que o paciente enfrenta, sem abandoná-lo ou intervir de maneira obstinada 2 , 3 . A falta de compreensão dos profissionais de saúde sobre terminalidade da vida e DAV pode levá-los a ações obstinadas, indicando tratamentos que não trazem conforto, benefícios ou qualidade de vida aos pacientes. Esse tipo de atitude muitas vezes se baseia na tentativa de evitar judicialização, mas apenas prolonga o processo de morrer sem proporcionar a qualidade devida 29 .
Esta pesquisa foi idealizada com a intenção de avaliar se profissionais e usuários de hospital-escola brasileiro localizado em Curitiba/PR precisavam de treinamento em DAV. Assim, foram incluídos médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, por se tratar de profissionais que lidam diretamente com pacientes e cujos códigos de ética profissional descrevem a temática. No entanto, ressalta-se que é importante o envolvimento de toda a equipe multidisciplinar para a assistência integral qualificada e inserção das DAV.
A literatura científica descreve que, quando profissionais de saúde são treinados nas questões da terminalidade da vida, eles se mostram mais confiantes na prática assistencial 30 e manifestam menos angústia moral diante das muitas questões que envolvem esse período, como as DAV 31 . A elaboração das diretivas aumenta a autoestima do paciente e sua confiança na equipe assistencial, melhora a relação médico-paciente-família e a segurança da equipe assistencial, possibilita resolução mais favorável e reduz conflitos com familiares sobre tratamentos e condutas terapêuticas 8 , 29 , 32 - 34 . As DAV também contribuem para reduzir a ocorrência de obstinação terapêutica 12 , 13 , 29 , 34 . No entanto, estudos observam que a principal barreira para sua aplicação é o desconhecimento dos profissionais de saúde e da população 6 , 13 , 34 .
Neste estudo, 38,1% dos profissionais de saúde e 8,3% dos usuários conhecem algum documento relacionado à manifestação de vontade dos pacientes, e apenas 27,8% dos profissionais participantes conheciam o termo “DAV” e 19,6% a Resolução CFM 1.995/2012 1 . Entre os usuários, apenas duas pessoas (4,2% do total de usuários respondentes) conheciam as DAV, e uma delas a resolução. Nota-se que no hospital-escola avaliado poucos profissionais conhecem as diretivas e, portanto, poucos poderão orientar e acolher adequadamente os pacientes neste sentido.
O desconhecimento sobre DAV ainda é grande no Brasil. Mendes e colaboradores 25 relataram que apenas 12,9% dos estudantes por eles entrevistados conheciam as DAV, apesar de 96,6% terem recebido informações sobre o tema nas aulas da graduação. Dos médicos entrevistados por Gomes e colaboradores 24 , apenas 23% conheciam as DAV e 10% conheciam a regulamentação, e, no mesmo estudo, apenas 3% dos usuários conheciam as diretivas. Em estudo que avaliou apenas pacientes em tratamento oncológico, 70% desconheciam DAV 23 .
Com os dados desta pesquisa, reafirma-se que o desconhecimento do instrumento que permite a manifestação da autonomia na fase final de vida ainda prevalece no Brasil, apesar de a Resolução CFM 1.995/2012 1 existir há praticamente uma década. É de especial importância o desconhecimento dos profissionais de saúde acerca das DAV, como foi observado neste estudo, pois compete a eles informar aos pacientes adoecidos e vulneráveis a possibilidade de registrar sua vontade em prontuário. Na ausência de informação ofertada pelos profissionais de saúde, especialmente médicos, poucos pacientes terão a oportunidade de estabelecer as DAV, talvez com apoio de advogados ou outros agentes da sociedade, com o risco de ter o documento invalidado pelos profissionais que participam da assistência.
O risco do desconhecimento das DAV é reforçado pelo fato de mais da metade dos participantes, tanto profissionais como usuários, ter apontado que o médico deveria iniciar a conversa. Se a maioria dos médicos não conhecia as DAV, o tema possivelmente não será discutido na realidade assistencial do hospital-escola avaliado. Ademais, acredita-se que a atribuição da responsabilidade ao médico possa ser motivada por falta de conhecimento, pelo desejo de receber cuidado em situação de sofrimento e vulnerabilidade e, talvez, por resquício do paternalismo médico 34 . Em 2018, Kulicz e colaboradores 35 descreveram que 95% dos estudantes de medicina entrevistados responderam que seria responsabilidade do médico informar aos pacientes sobre as DAV. Entretanto, talvez o menos importante seja a quem compete de fato iniciar a conversa, mas que questões sobre fim de vida fossem discutidas mais frequentemente, incluindo pacientes, familiares e profissionais de saúde.
Informar sobre DAV parece ser caminho oportuno, e os achados desta pesquisa dão suporte a esta hipótese. Neste estudo, após informar os participantes sobre o que seriam as diretivas, quase todos os respondentes indicaram que as pessoas as deveriam registrar, e 73,2% dos profissionais e 58,3% dos usuários apontaram que pensariam em estabelecer as próprias DAV.
A maior parte dos entrevistados, tanto profissionais como usuários do serviço de saúde, respondeu que respeitaria os itens descritos nas DAV, mesmo quando incluísse o desejo pela morte domiciliar. Entretanto, mais profissionais de saúde do que usuários honrariam esta opção. Acatar o desejo de morrer na própria moradia exige preparo para os inúmeros desafios, e não foi o objetivo da pesquisa. No entanto, a questão foi formulada e mantida como espécie de provocação sobre o respeito aos itens descritos em DAV em situações pouco usuais no cenário atual de fim de vida na sociedade brasileira.
A morte domiciliar depende de muitos fatores, entre eles a organização do sistema de saúde e a possibilidade de controle adequado de sintomas desconfortáveis. Considerando-se dados concretos, esse desejo pode estar em risco: mais da metade das pessoas com mais de 60 anos pesquisadas em Belo Horizonte preferiria morrer em casa 36 , mas 88% das pessoas da mesma faixa etária diagnosticadas com câncer morreram em hospitais na cidade de São Paulo 37 .
Para que a morte ocorra no domicílio, é preciso existir vontade e respeito dos familiares por esta escolha, o que aparenta ser improvável, de acordo com parcela dos participantes deste estudo. Assim, compreendeu-se que outro aspecto desafiador para as DAV são escolhas que podem não estar alinhadas com desejos dos familiares, potenciais tomadores de decisão junto dos profissionais de saúde quando o paciente estiver impossibilitado de se manifestar no fim da vida.
A confiança no respeito dos familiares às DAV é outro aspecto importante demonstrado de maneira similar entre os participantes. Dos profissionais, 36% não confiam ou não sabem se podem confiar, e 48% dos usuários responderam da mesma maneira. A possibilidade de tomar decisões mesmo sem a concordância dos familiares é uma das prerrogativas das DAV. A Resolução CFM 1.995/2012 estabeleceu em seu artigo 2º, parágrafo 3º, que as DAV do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares1 . Comunicação empática e resolução de conflitos devem ser privilegiadas 8 , mas, no Brasil, diante de questões que não puderem ser resolvidas de outra maneira, o médico poderá validar os desejos éticos do paciente e seguir itens manifestados nas DAV. Assim, corroboram-se as DAV como instrumento de respeito à autonomia informada e compartilhada entre paciente e médico.
É possível que o interesse em conhecer as DAV e concretizar a manifestação da autonomia dos pacientes esteja relacionado com muitos outros fatores que não apenas a disponibilidade de informação e treinamento. Talvez fosse oportuno que instituições motivassem, incentivassem e apoiassem o enfrentamento de situações de adoecimento e fim de vida. Também é possível que esse interesse seja mais uma forma de resistir ou negar o adoecimento, a terminalidade e a morte que se observam na sociedade atual. Portanto, não se pode responsabilizar apenas os profissionais de saúde pelo desconhecimento das DAV. Aparentemente, as DAV ainda ocupam local restrito e longe da realidade da maioria dos brasileiros 13 , 23 , 38 .
Estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que 44% da população avaliada registrara DAV, com maior frequência na faixa etária acima de 65 anos 39 . Os fatores alegados entre os 56% que não tinham redigido o documento foram não saber do que se tratava, como registrá-lo, custos envolvidos e medo ou desconforto ao conversar sobre a morte 39 . Não há custos envolvidos no registro das DAV no Brasil, exceto caso se opte por registrá-las em cartório. Portanto, as barreiras referem-se a conhecimento, cultura e vontade, que inevitavelmente permeiam o desconforto das conversas sobre a própria morte.
Não basta as DAV existirem, é necessário que sejam elemento importante para selar a relação de confiança entre médico e paciente. Em Portugal, por exemplo, que possui regulamentação nacional e banco de registro das DAV, o que em teoria garantiria a “segurança” jurídica desejada pelos profissionais de saúde, a maioria dos médicos respondeu em pesquisa que raramente ou nunca consultou o banco de registros e acreditava que tal ato não teria implicação nos cuidados 40 . Ou seja, além de conhecimento, é preciso que o profissional de saúde deseje incluir as DAV em sua realidade assistencial.
Embora tenha sido observado pouco conhecimento entre médicos, profissionais da enfermagem e usuários do sistema de saúde, após a explicação a maioria dos participantes percebeu as DAV como documento importante, acreditando que as pessoas deveriam manifestar seu desejo sobre tratamentos em fim de vida e respondendo que pensaria em elaborar as próprias DAV. A discussão sobre as manifestações de vontade não é frequente entre a população brasileira, mas observou-se que há abertura para o diálogo, e apenas desta maneira a população poderá ser conscientizada e informada, para assim exercer seu direito à autonomia.
As limitações deste estudo referem-se ao fato de tratar-se de avaliação primária do conhecimento por meio de questionário embasado em outros estudos e que pode conter fragilidades. Os participantes aparentemente não enfrentavam o fim da vida no momento da pesquisa e, portanto, as respostas poderiam ser diferentes nessa situação. Alguns profissionais alegaram estar atarefados e se recusaram a participar do estudo – não se sabe se o motivo alegado era real ou forma de evitar o assunto tratado na pesquisa. Do total da amostra, 38% eram médicos residentes, e portanto profissionais jovens e menos experientes. Entretanto, há de se ponderar que estes profissionais atuam cotidianamente na assistência do hospital-escola, e seu conhecimento sobre as DAV direciona a história assistencial dos usuários do sistema de saúde.
Com os dados obtidos nesta pesquisa pode-se concluir que a amostra avaliada pouco sabia sobre DAV, observando-se que apenas cerca de ¼ dos profissionais de saúde e 4,2% dos usuários do SUS do hospital-escola conheciam as diretivas. Após serem informados acerca do que seriam as DAV, a maioria dos participantes acreditava que as pessoas as deveriam registrar, que a conversa deveria partir do médico, que respeitariam os itens descritos no documento de familiar e que confiam nestes, sem diferença entre profissionais e usuários. Após a pesquisa, a maioria dos participantes pensaria em registrar as próprias DAV. Espera-se que este estudo colabore com a criação de estratégias para difundir conhecimento não apenas entre profissionais de saúde, mas para a sociedade em geral sobre a importância das DAV.
Fernanda de Souza Ferreira – Graduanda – nanda.sf@hotmail.com
Lorena van der Vinne – Graduanda – lorenavdvinne@gmail.com
Giovana Ferreira de Freitas Miranda – Graduanda – giovanaffmiranda@gmail.com
Úrsula Bueno do Prado Guirro e Fernanda de Souza Ferreira conceberam a ideia, redigiram o pré-projeto e solicitaram a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa. Úrsula Bueno do Prado Guirro ainda interpretou os resultados, redigiu e revisou o manuscrito. Fernanda de Souza Ferreira coletou os dados com Giovana Ferreira de Freitas Miranda e Lorena van der Vinne – que os digitaram – e auxiliou na redação preliminar do manuscrito.
Correspondência: Úrsula Bueno do Prado Guirro – Universidade Federal do Paraná. Faculdade de Medicina. Setor de Ciências da Saúde. Rua Padre Camargo, 280, 4º andar, Alto da Glória CEP 80060-240. Curitiba/PR, Brasil.