Resumo: Educar para a bioética é um desafio na atualidade. Ainda maior se torna este desafio, quando pensamos no ensino da bioética a estudantes de enfermagem, que irão desempenhar uma profissão que tem como expoente máximo o cuidar da outra pessoa. Tratando-se de uma profissão que implica a relação com o outro e a prestação de cuidados humanizados e adequados a cada situação específica, torna-se importante desenvolver ferramentas de ensino que promovam não só o desenvolvimento técnico e o conhecimento de como fazer, mas essencialmente o desenvolvimento de competências morais, pessoais e profissionais que conduzam a cuidados de saúde de excelência. Este artigo pretende apresentar uma reflexão sobre o ensino da bioética e a sua relação com o desenvolvimento da competência moral dos estudantes de enfermagem, assim como sugerir algumas estratégias no ensino da Bioética que potenciem a formação de enfermeiros cada vez mais competentes.
Palavras-chave: Desenvolvimento moral, Bioética, Ensino, Estudantes de enfermagem, Competência profissional.
abstract: Educating for bioethics is a challenge today. This challenge is even greater when we think of the teaching of bioethics to nursing students, who will perform a profession that has as its maximum target the care of other people. Because it is a profession that implies the relationship with the other and the provision of humanized and appropriate care to each situation, it is important to develop teaching tools that promote not only technical improvement and knowledge of how to do a task, but also the development of moral, personal and professional skills that lead to excellent health care. This article presents a reflection on the teaching of bioethics and its relationship with the development of moral competence of nursing students, suggesting some strategies that enhance the teaching of bioethics and the education of increasingly competent nurses.
keywords: Moral development, Bioethics, Teaching, Students nursing, Professional competence.
Resumen: Educar en bioética es un desafío en la actualidad. Esto se vuelve más grande cuando pensamos en la enseñanza de bioética a estudiantes de enfermería, quienes desempeñarán una profesión que tiene la máxima expresión la asistencia a las personas. Por ser una profesión que involucra la relación con el otro y la prestación de una asistencia humanizada y adecuada a cada situación específica, es importante desarrollar herramientas didácticas que promuevan no solo el desarrollo técnico y el conocimiento de cómo hacerlo, sino fundamentalmente el desarrollo de competencias morales, personales y profesionales que promuevan una excelente atención en salud. Este artículo reflexiona sobre la enseñanza de la bioética y su relación con el desarrollo de la competencia moral de los estudiantes de enfermería, así como sugiere algunas estrategias para la enseñanza de la Bioética que promueva una formación de profesionales cada vez más competentes.
Palabras clave: Desarrollo moral, Bioética, Enseñanza, Estudiantes de enfermería, Competencia profesional.
Atualização
Educar para a bioética: desafio em enfermagem
Educating for bioethics: a challenge in nursing
Educar en bioética: desafío en la enfermería
Recepção: 11 Fevereiro 2021
Revised document received: 11 Agosto 2022
Aprovação: 16 Agosto 2022
Vivemos numa era em que surgem cada vez mais avanços em matéria de cuidados de saúde, que geram inúmeros dilemas éticos. Aliado a este facto, denota-se uma maior dificuldade por parte dos estudantes de enfermagem em tomarem decisões e agirem de acordo com essas decisões. Esta capacidade, também designada por competência moral, deve ser intrínseca ao enfermeiro, pelo que, na formação pré-graduada do estudante de enfermagem, é importante enfatizar o desenvolvimento das suas competências morais e profissionais.
O ensino da bioética, ao promover o debate dos mais diversos dilemas éticos da atualidade, parece-nos ter um papel relevante no aperfeiçoamento da competência moral dos estudantes de enfermagem, pelo que, decidimos fazer um estudo sobre este tema, analisando o estado da arte atual, relativamente à relação entre o ensino da bioética e a competência moral dos estudantes de enfermagem.
A literatura relacionada com esta temática e com a possível relação que poderá existir entre o ensino da bioética e o desenvolvimento da competência moral é ainda escassa. Alguns autores encontraram uma estagnação da competência moral em estudantes de enfermagem 1– 3 ou mesmo uma diminuição da mesma, com a conclusão do curso 4, o que leva a refletir sobre o que poderá ser feito no sentido de contrariar esta tendência e promover o desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo e da capacidade para tomar decisões nos estudantes de enfermagem.
Competência é entendida como o uso habitual e criterioso de comunicação, conhecimento, habilidades técnicas, julgamento clínico, emoções, valores e reflexões na prática diária para beneficiar tanto o indivíduo quanto a comunidade em geral 5. De acordo com o Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN), competência é uma das características que define o desempenho de um enfermeiro, e um enfermeiro competente deve ter conhecimento, compreensão e julgamento crítico 6. Da mesma forma, esses profissionais devem demonstrar habilidades cognitivas, técnicas e interpessoais sólidas e uma gama de atributos e atitudes pessoais adequadas 6.
Benner define competência como uma área de desempenho qualificado, identificada e descrita pela sua intenção, função e significados7. O autor apresenta o modelo de desenvolvimento de competências do enfermeiro intitulado the novice to expert model, que compreende várias etapas que descrevem e interpretam o desenvolvimento de habilidades e julgamento clínico na prática de enfermagem 7, 8. A última etapa, denominada “perícia clínica”, é alcançada quando os conhecimentos teóricos e práticos se fundem e quando o enfermeiro experiente tem capacidade para tomar decisões adequadas, mesmo em situações de grande complexidade.
Os enfermeiros, nesta fase, devem ter um entendimento completo de como melhor interagir com os pacientes aos quais prestam cuidados e devem ser capazes de combinar a sua intuição com os seus conhecimentos teóricos e práticos para prestar cuidados de enfermagem de excelência 7, 8. Falamos aqui, portanto, de uma competência profissional para a prática de enfermagem de natureza mais técnica em que a experiência de interagir com os pacientes no ambiente clínico contribui diretamente para o aumento da competência.
O conceito de competência moral estará mais relacionado com teorias sobre o desenvolvimento do juízo moral, que é considerada uma capacidade psicológica necessária para a tomada de decisão e pode ser entendida como a capacidade de resolver problemas e conflitos com base em um princípio moral, por meio da deliberação e da discussão ao invés do uso de força, poder ou violência9. Neste caso, competência moral é a capacidade de avaliar várias situações e responder de acordo com os princípios morais aprendidos ao longo da vida.
Existem, no entanto, diferentes abordagens sobre este tema, com alguns autores argumentando que o indivíduo desenvolve as suas habilidades morais e profissionais em paralelo ao longo da educação em enfermagem 10, enquanto outros enfatizam a importância de desenvolver competências morais específicas para a profissão de enfermagem, como competência moral na mediação de situações de stress e na promoção da esperança, mesmo em situações de grande adversidade 11. Além disso, a capacidade de ensinar e acompanhar os estudantes é apontada como um dos desafios vivenciados pelos professores de enfermagem ao tentarem melhorar a competência moral dos enfermeiros na prática clínica 12.
Outra definição de competência moral específica da enfermagem combina competência profissional com competência moral, e define-a como a habilidade de um enfermeiro de utilizar os valores profissionais de enfermagem, os princípios de ética e os padrões de enfermagem num ambiente de trabalho favorável para pensar criticamente, tomar decisões éticas ou morais e resolver problemas na prestação de cuidados de qualidade e éticos, atendendo às necessidades e satisfação dos pacientes na prática de enfermagem13.
Para compreender estas definições, acreditamos que é necessária uma reflexão sobre o conceito de moralidade. A palavra “moral” deriva do latim moralis, que significa “relativo aos costumes”. Relaciona-se com as normas do que é considerado certo ou errado na conduta dos seres humanos, de acordo com a sociedade em que habitam, e abrange normas de conduta relacionadas com princípios morais, direitos, regras e virtudes 14, 15. Logo no início da vida, todos os membros de uma determinada comunidade aprendem as responsabilidades que se espera que assumam e as regras morais que se espera que cumpram. No entanto, existem normas e regras que se referem a grupos específicos (por exemplo, grupos profissionais) e que são regidos por códigos de conduta que muitas vezes assumem a forma de códigos deontológicos, caso em que podemos falar de moralidade profissional 14. Esta moralidade profissional implica, no caso do enfermeiro, que ele atue de acordo com as normas e princípios desenvolvidos durante a sua formação, o que lhe permite prestar um cuidado de excelência adequado a cada paciente.
Portanto, entendemos que essa moralidade profissional poderá estar relacionada com a competência profissional, e que competência profissional e competência moral não podem ser dissociadas, uma vez que ambas evoluem paralelamente ao longo da formação do enfermeiro. É a competência moral que determina a forma como os enfermeiros atuam em cada situação específica; entretanto, esse desempenho também depende do que foi previamente aprendido e desenvolvido durante a prática clínica. A moralidade profissional pode moldar a competência moral, mas os princípios internos inerentes a cada indivíduo afetarão as suas escolhas e ações, e a conduta relacionada a questões fraturantes que podem ser aceitáveis dentro do grupo profissional (moralidade profissional), como o aborto ou a eutanásia, nunca devem ser aceites e praticadas por um enfermeiro que rejeita esses atos, por prejudicarem a sua integridade moral.
Sendo a ética relacionada ao estudo das razões do agir, acreditamos que o ensino da bioética terá um papel relevante no desenvolvimento da competência moral dos estudantes de enfermagem.
Acreditamos que existem algumas medidas no ensino da bioética a estudantes de enfermagem que poderão ter um papel de extrema relevância, pelo que apresentamos e discutimos estratégias a implementar ou a aprofundar no ensino desta disciplina.
A família de outrora era composta por várias pessoas que moravam na mesma casa e que mantinham um relacionamento direto e permanente com irmãos de várias idades ou com avós que em determinada altura poderiam estar debilitados ou dependentes. Neste ambiente familiar, o ato de cuidar dos outros era aprendido desde cedo, como algo natural. No entanto, o conceito de família vem sofrendo mudanças estruturais nos últimos anos e, estando o mundo em constante mudança, torna-se urgente adaptar a educação às novas exigências que vão surgindo.
Nunes 16 refere que, na sociedade atual, existe uma aparente ausência de valores e normas morais, tornando-se importante refletir sobre o que pode ser feito para contrariar esta tendência. Vários autores abordaram a importância e os contributos do ensino da bioética na escola 17– 19, como promotora do trabalho de equipa, da resolução de problemas, da autoconfiança 19, no entanto, torna-se necessário o planeamento de intervenções constantes e efetivas.
Acreditamos que a discussão de casos concretos, vivenciados pelos jovens nas suas relações, ou visualizados nas redes sociais, a partilha de opiniões e sentimentos, liderados por um professor com formação ética, podem ser os primeiros passos para despertar o interesse e o respeito dos jovens pela comunidade. Se a reflexão e o julgamento crítico forem promovidos desde cedo, podemos construir bases para o futuro, fomentando o desenvolvimento de uma sociedade mais solidária e democrática 20.
É importante que a ideia de uma iniciativa educativa centrada na bioética nas escolas seja transversal a todos os alunos, mas pode desempenhar um papel mais importante em programas baseados no contacto com a pessoa em diferentes contextos e em diferentes fases da vida, como a enfermagem.
Com o desenvolvimento de novas tecnologias, o ensino torna-se um desafio para os professores ao longo de todo o percurso escolar. As crianças conhecem desde cedo uma série de estímulos que não existiam há algumas décadas, por isso, é crescente a necessidade dos professores desenvolverem metodologias pertinentes que envolvam o aluno. Essa situação estende-se aos programas de ensino superior, enfermagem e ensino da bioética em enfermagem.
A literatura sugere que o desenvolvimento de metodologias de ensino que combinem métodos expositivos com métodos de simulação e resolução de problemas estarão indicadas no ensino da bioética aos estudantes de enfermagem 21, 22, no entanto, a simulação e discussão de casos reais pelos estudantes, conduzida por um professor, tem demonstrado ser um método mais efetivo no ensino da bioética 21– 24.
Atividades como a realização de jogos 25, 26 e a visualização de filmes demonstram também efeitos positivos no ensino da bioética ao promover a reflexão e o desenvolvimento do pensamento crítico reflexivo 10, 27. A este respeito, Duane 28 indica que é importante que professores e alunos desenvolvam a capacidade ética em conjunto, mas também fomentem a capacidade criativa como pessoas e como enfermeiros, desenvolvendo métodos pedagógicos que inspirem e apoiem a utilização desta criatividade na prática clínica.
Nem sempre o plano curricular no curso de Enfermagem é semelhante para todas as instituições de ensino, havendo escolas que optam pelo ensino da bioética antes do ensino clínico, enquanto outras escolas, pelo ensino da bioética antes e após o ensino clínico. A carga horária proposta pela Unesco 29 para o ensino da bioética deverá ser de, no mínimo, 30 horas letivas, ficando à consideração de cada escola o total de horas disponível para o ensino da bioética.
Julgamos que faz todo o sentido que o ensino da bioética preceda a experiência na prática clínica, pois, desta forma, o estudante tem conhecimento dos seus direitos e deveres como futuro enfermeiro por meio do contacto com o código deontológico, para além de compreender o objetivo do ensino da bioética em enfermagem e a sua aplicabilidade na sua vida profissional. É ainda através do ensino da bioética que o estudante é confrontado com os primeiros dilemas éticos, que espelham as dificuldades vividas pelos enfermeiros na prática e que reflete e discute possíveis soluções, desenvolvendo a sua competência moral e a sua capacidade para tomar decisões.
Contudo, julgamos que será de igual importância o ensino da bioética após a prática clínica. Sem contacto com a prática clínica e a vivência das situações reais, será difícil para um estudante de enfermagem tomar decisões, uma vez que o cuidar, que fundamenta a prática em enfermagem, tem o expoente máximo na relação com o outro. Todas as situações discutidas em contexto de sala de aula, mesmo baseadas em casos reais, são hipotéticas e idealizadas por cada estudante, e apenas no contacto direto com a pessoa doente é possível tomar consciência de todas as variáveis implícitas num processo de decisão 30. No contacto com a pessoa doente, é possível estabelecer uma relação de empatia e conhecer suas preferências, receios, anseios, expressões, história, família, entre outros. Todos estes fatores poderão ter um peso para uma tomada de decisão.
Este é um pilar da educação, transversal a todas as disciplinas e não apenas ao ensino da bioética. Torna-se difícil para um estudante adquirir aprendizagens se não lhe for permitido questionar as diferentes situações com que se depara; se por cada questão que colocar for corrigido e aconselhado a permanecer em silêncio. Esta situação irá conduzir ao receio e uma dificuldade crescente em revelar os seus pensamentos e exprimir os seus sentimentos 12.
As condições físicas no local de aprendizagem podem nem sempre ser as melhores, mas um ambiente acolhedor, com um professor disponível, que promova o diálogo e a reflexão, reúne as condições indispensáveis para um ensino de qualidade, que produza ótimos resultados na formação do estudante de enfermagem 31, 32.
A enfermagem fundamenta a sua prática na relação com o outro, pelo que o momento marcante da vida de um estudante de enfermagem é o contacto com a pessoa doente, mediante a prática clínica. É nesse momento que toma consciência da profissão que escolheu e experiencia os primeiros dilemas éticos na prática. Nos casos em que a bioética é lecionada antes do ensino clínico, na prática clínica os tutores de ensino têm uma responsabilidade acrescida no desenvolvimento da competência moral dos estudantes de enfermagem. Daí a importância de tutores de ensino clínico que sejam verdadeiros exemplos de boas práticas éticas, pois só assim poderá ser promovida a reflexão nos estudantes e dado o aconselhamento no momento adequado, caso a caso, sobre a decisão a tomar 12, 31.
Consideramos que o ensino da ética poderá ter um papel crucial no desenvolvimento da competência moral e profissional do estudante de enfermagem. São ferramentas essenciais à prática clínica dos enfermeiros a reflexão, o juízo crítico e a tomada de decisão, capacidades estas que poderão ser desenvolvidas nas aulas de bioética através da promoção da discussão de dilemas éticos vivenciados na prática clínica e de um ambiente de aprendizagem onde o estudante se sinta compreendido e estimulado para desenvolver o seu pensamento crítico reflexivo.
Sendo a enfermagem, por natureza, a ciência do cuidar, julgamos de extrema importância investir numa ética do cuidar, voltada para o respeito e responsabilidade para com o outro. Seja na análise de dilemas éticos hipotéticos em contexto de sala deaula ou na prática clínica com o contacto com dilemas éticos reais, é importante assegurar a construção de uma competência moral e profissional de excelência no futuro profissional de enfermagem.
Cristina Maria Nogueira Costa Santos – Doutora – csantos.cristina@gmail.com
Ivone Maria Resende Figueiredo Duarte – Doutora – iduarte@med.up.pt
Correspondência Vera Sílvia Meireles Martins – Universidade do Porto. Faculdade de Medicina. Al. Prof. Hernâni Monteiro,