Resumo: O planejamento antecipado de cuidados é um processo de discussões entre profissionais de saúde e pacientes que permite a tomada de decisão compartilhada quanto a objetivos de cuidados de saúde, atuais e/ou futuros, com base nos desejos e valores do paciente e em questões técnicas do cuidado. É considerado fundamental na prestação de cuidados de excelência em fim de vida, permitindo que profissionais de saúde alinhem os cuidados prestados com o que é mais importante para o paciente. Apesar de seus benefícios, ainda é muito pouco realizado na prática clínica, especialmente no Brasil. Considerando a necessidade de guias práticos de planejamento antecipado de cuidados adaptados à realidade brasileira, pautados em estratégias de comunicação empática, este estudo é uma proposta de guia baseada em revisão integrativa da literatura (PubMed e SciELO), com recomendações de evidências atuais, incluindo instrumentos validados para o português (Brasil), para facilitar sua implementação na prática clínica.
Palavras-chave: Planejamento antecipado de cuidados, Tomada de decisão compartilhada, Comunicação, Cuidados de fim de vida.
abstract: Advance care planning is a process of discussion between health professionals and patients that allows shared decision-making regarding current and/or future health care objectives, based on patient desires and values and technical care issues. Advance care is considered fundamental in the provision of terminal care of excellence, allowing health professionals to align the care provided with what is most important to the patient. Despite its benefits, it remains underused in clinical practice, especially in Brazil. Considering the need for practical guides for advance care planning adapted to the Brazilian reality, based on empathic communication strategies, this study is a guide proposal based on an integrative literature review (PubMed and SciELO), with recommendations of current evidence, including instruments validated for Portuguese (Brazil), to facilitate its implementation in clinical practice.
Keywords: Advance care planning, Decision making shared, Communication, Terminal care.
Resumen: La planificación anticipada de atención es un proceso de discusión entre los profesionales de la salud y los pacientes que permite la toma de decisiones relacionadas a los objetivos de atención médica actuales y/o futuros, basadas en los deseos y valores del paciente y en cuestiones técnicas de la atención. Resulta ser una apropiada atención terminal, ya que estos profesionales pueden adecuar la atención con los deseos del paciente. Pese a sus beneficios, es poco realizada en la práctica clínica, especialmente en Brasil. Dada la necesidad de guías prácticas para la planificación anticipada de atención, adaptadas a la realidad brasileña y basadas en estrategias comunicativas empáticas, este estudio propone una guía a partir de una revisión integradora de la literatura (PubMed y SciELO), con recomendaciones de evidencia actual, incluidos instrumentos validados para el portugués brasileño para facilitar su aplicación en la práctica clínica.
Palabras clave: Planificación Anticipada de Atención, Toma de decisiones conjunta, Comunicación, Cuidado Terminal.
Pesquisa
Planejamento antecipado de cuidados: guia prático
Advance care planning: a practical guide
Planificación anticipada de atención: una guía práctica
Recepção: 21 Junho 2022
Revised document received: 10 Agosto 2022
Aprovação: 16 Agosto 2022
Poucas pessoas conversam com seus familiares, amigos e/ou profissionais de saúde sobre suas preferências de cuidados futuros caso apresentem doença grave e avançada. Embora a maioria dos indivíduos deseje cuidados que priorizem qualidade de vida e alívio do sofrimento no fim de sua vida, o sistema de saúde tende a oferecer intervenções para manutenção da vida, muitas vezes, sem melhora da qualidade de vida. Na ausência de conversas sobre prognóstico, objetivos e expectativas do tratamento, os pacientes não têm a oportunidade de expressar seus valores e preferências, levando médicos a decidir por intervenções adicionais, geralmente incompatíveis com as prioridades e desejos dos pacientes 1, 2.
Grande parte das pessoas considera muito importante e deseja discutir com seus médicos sobre suas condições de saúde e opções de cuidado que melhor se adaptam a seus desejos e valores pessoais, mas essas discussões ainda são pouco frequentes na prática clínica 3.
Planejamento antecipado de cuidados (PAC) é um processo de discussões entre profissionais de saúde e pacientes que permite a tomada de decisão compartilhada quanto aos objetivos de cuidados de saúde, atuais e/ou futuros, baseados nos desejos e valores do paciente e em questões técnicas do cuidado. Para os pacientes, as discussões sobre os objetivos de cuidados, opções de tratamento e prognóstico são importantes, e a maioria deseja ter esse tipo de conversa com seus médicos. Porém, embora muitos médicos concordem com a importância dessa discussão, menos de 20% relatam discutir rotineiramente com seus pacientes sobre isso 4, 5.
Assim, o PAC justifica-se por ser um instrumento que possibilita respeitar a autonomia do paciente 6, 7 mediante um processo contínuo e dinâmico em que preferências e metas de cuidados devem ser revisadas e discutidas ao longo da evolução da doença. Dessa forma, são consideradas cada intercorrência ou internação, bem como o prognóstico, que deve ser discutido sempre que houver mudança no curso clínico da doença. Seu conteúdo pode ser alterado e outros aspectos podem ser acrescentados a qualquer momento 3, 6.
Fazem parte do espectro do PAC 8:
As decisões de tratamento discutidas no PAC podem incluir seu registro em DAV, que faz parte do planejamento de cuidados, mas nem sempre é obrigatório, apesar de seu grande valor. O testamento vital é o registro por escrito de pacientes com capacidade decisória preservada sobre decisões de tratamento e/ou cuidados a que deseja ou não ser submetido, em caso de doença avançada e irreversível, a ser utilizado quando o paciente perder sua capacidade de decisão e de comunicação 9.
O processo de tomada de decisão pode ser mais difícil quando a doença avança e o paciente perde a capacidade de se expressar. Nesses casos, o procurador de cuidados de saúde (geralmente um familiar) deve intervir para tomar decisões que considera de melhor interesse do paciente no âmbito dos valores que este expressou previamente. O PAC também tem o papel de orientar a escolha de substitutos, caso o paciente prefira, para representá-lo quando não puder mais decidir e se expressar, e preparar esse substituto para tomar decisões em nome do paciente.
Isso pode minimizar a dificuldade dos familiares em tomar decisões durante intercorrências, pois estes muitas vezes estão emocionalmente vulneráveis e sem condições adequadas para responder por seu ente. Por isso se justifica que o PAC seja realizado o quanto antes, quando o paciente ainda tem sua capacidade cognitiva preservada para determinar o que é importante para si. Vale lembrar que qualquer pessoa, mesmo sem doença crônica ou grave, pode compartilhar com seus médicos ou pessoas mais próximas suas preferências e prioridades relacionadas ao fim de sua vida 7, 10.
Além de garantir que os pacientes recebam tratamentos consistentes com suas preferências, de reduzir o ônus decisório da família e da sobrecarga emocional importante sobre decisões envolvendo cuidados de fim de vida de seu familiar, estudos apontam outros benefícios do PAC, como: menor sofrimento moral dos profissionais de saúde; maiores taxas de DAV; maior probabilidade de médicos e familiares entenderem e cumprirem os desejos do paciente; redução de tratamentos extraordinários no fim da vida, com maior acompanhamento por equipes de cuidados paliativos; maior probabilidade de o paciente morrer no local preferido; maior satisfação com a qualidade do atendimento; menor risco de ansiedade e depressão em familiares durante o luto 11– 15.
Apesar das inúmeras evidências dos benefícios do PAC, esse importante recurso, que visa garantir a autonomia do paciente até o fim de sua vida, ainda é pouco realizado na prática clínica no Brasil. Por isso, este artigo tem como objetivo traçar estratégias de comunicação para estimular, iniciar e melhor conduzir o PAC.
Ainda é muito comum que conversas sobre objetivos de cuidados aconteçam tarde demais, nos momentos de maior criticidade – exacerbação da doença de base, por exemplo –, que demandam tomada de decisão mais urgente relacionada ao tratamento, quando, muitas vezes, o paciente não tem mais condições de decidir. Nessas circunstâncias, equipe de saúde e familiares acabam tomando decisões que nem sempre representam os valores e prioridades do paciente. Por isso, a conversa sobre objetivos de cuidados deve ser iniciada gradativamente e o mais precocemente possível, a partir da definição prognóstica 4, 14, 16.
Esse planejamento é um processo complexo e não deve ser realizado em uma única conversa. É preciso tempo para estabelecer uma relação médico-paciente de confiança, que permita explorar as informações sobre o que é mais importante para o paciente. Essa discussão pode ser iniciada a qualquer momento ao longo da trajetória da doença, mas idealmente quando a pessoa está clínica e emocionalmente estável, para que possa refletir e expressar plenamente suas preferências.
O conteúdo do planejamento pode variar conforme a condição de saúde do paciente: desde um contexto de ausência de sintomas, passando pela fase inicial da doença e até uma situação de terminalidade. Além disso, o conteúdo deve ser revisado regularmente, sobretudo quando há mudança no quadro clínico – após a admissão do paciente no hospital, por exemplo –, para constatar se houve mudanças nas preferências de cuidados ou para acrescentar nova informação 6, 17.
Algumas características relacionadas ao prognóstico indicam necessidade de discussão sobre objetivos de cuidados, entre elas 18, 19:
Questão surpresa: “Você ficaria surpreso se esse paciente morresse no próximo ano?”;
Declínio funcional pela doença de base: Palliative Performance Scale (PPS) ou Karnofsky Performance Scale (KPS) ≤50;
Falta de resposta ao tratamento inicial ou incerteza quanto à resposta terapêutica;
Quimioterapia de segunda ou terceira linha;
Admissões hospitalares recorrentes;
Exacerbações de doenças, apesar do tratamento otimizado;
Características relacionadas ao prognóstico da doença de base 20.
Todos os pacientes com necessidades de cuidados paliativos devem ter seu PAC, atualmente reconhecido como bom indicador de qualidade de cuidados paliativos de excelência 6, 7. Alguns podem ter mais dificuldades para essa conversa, principalmente se não estiverem bem informados sobre seu diagnóstico e prognóstico.
Evidências sugerem que certas características demográficas, como idade avançada e baixa escolaridade – o que ainda é comum no Brasil –, podem influenciar a tomada de decisão sobre cuidados de saúde, tornando esses indivíduos mais propensos a confiar tais decisões a seus médicos. Nesses casos, cabe aos profissionais de saúde explorar os valores e prioridades do paciente, considerando sua história de vida, para definir o cuidado baseado no melhor interesse do paciente 21, 22.
Apesar do crescente interesse pelo tema e dos diversos estudos e guias propostos para elaboração do PAC na literatura internacional, ainda não há uma sistematização sobre o conteúdo desse instrumento, que pode ser dividido nas etapas descritas na sequência 2:
Preparação: antecede a conversa com o paciente, incluindo revisão completa do histórico clínico, prognóstico e opções de tratamento. Além disso, informações sobre os aspectos psicossociais e dinâmica familiar podem ser acessados na discussão com outros membros da equipe de saúde.
Introdução: etapa em que se esclarece o objetivo da conversa. É o momento para estabelecer uma relação de confiança entre médico e paciente, visando a uma conversa mais efetiva.
Identificação da percepção do paciente: etapa em que se acessam as perspectivas do paciente e o enfrentamento da doença, envolvendo finitude, emoções (medos e preocupações, esperança) e questões práticas relacionadas ao fim da vida. É a parte central da conversa.
Ação: envolve o registro das informações da discussão, o qual pode ser realizado por meio de:
Registro do que foi discutido no prontuário (que é considerado um documento legal);
Elaboração de DAV, por exemplo, por meio de documento à parte em que o paciente descreve seus desejos e preferências de cuidados, com a devida orientação do profissional de saúde que lhe conhece e acompanha;
Designação de um procurador de cuidados de saúde do paciente quando ele não puder mais se expressar (mandato duradouro);
Estratégias para que o paciente compartilhe o conteúdo do PAC com pessoas próximas e de sua escolha, para que fiquem cientes de suas preferências de cuidados;
Orientação sobre questões legais.
O quadro 1 traz algumas recomendações práticas sobre cada uma dessas etapas da discussão do PAC, baseadas em diretrizes atuais sobre o tema 2, 4, 7, 23.
A discussão sobre PAC pode incluir ordens de tratamento médico específicas e acionáveis – por exemplo, ordens de não reanimar ou de não passar sonda para dieta enteral –, refletindo as preferências de tratamento do indivíduo e a condição médica atual. É importante que essas ordens de tratamento médico sejam escritas de maneira apropriada e padronizadas para que sejam prontamente compreendidas por profissionais de saúde durante uma emergência ou em qualquer modalidade de assistência 7.

Há vários instrumentos utilizados com o objetivo de facilitar a conversa sobre preferências de cuidados no fim da vida e, assim, permitir a construção de DAV, mas poucos já validados e adaptados à realidade brasileira – a maioria são instrumentos de outras línguas e culturas, principalmente norte-americanos. É importante enfatizar que tais instrumentos não excluem – pelo contrário, reforçam – o papel dos médicos na conversa sobre esses objetivos de cuidados. É essencial a orientação dos profissionais de saúde nesse processo, incluindo a conversa sobre a doença e o prognóstico.
O quadro 2 traz alguns exemplos de instrumentos já validados para o português do Brasil, os quais podem ser utilizados como recursos na elaboração do PAC.

Cuidar de pacientes é uma tarefa desafiadora e que requer não apenas uma visão holística do indivíduo, mas também a compreensão das circunstâncias familiares, sociais, legais, econômicas e institucionais que os cercam, especialmente à medida que se aproximam do fim da vida. Infelizmente, existem muitos mitos e equívocos sobre o que pode ou não ser legal nesse cenário. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa (Portugal, França, Reino Unido e Espanha, por exemplo), as DAV já são consideradas documentos legais que orientam a tomada de decisão de tratamento.
No Brasil, ainda não existe legislação específica sobre as DAV, mas há a Resolução 1.995/2012 29, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que determina que todo médico deve considerar as diretivas antecipadas de vontade do paciente nas decisões sobre cuidados e tratamentos daqueles que se encontram incapazes de se comunicar ou expressar de maneira livre e independente seus desejos, estabelecendo, também, que o médico registrará em prontuário as DAV que lhe forem comunicadas pelo paciente 7, 29.
Essa resolução visa garantir que a autonomia do paciente seja respeitada, com base na ortotanásia – sem qualquer relação com a eutanásia –, reconhecendo o direito do paciente de recusar tratamento extraordinário, entendido como aquele que visa apenas prolongar a vida, sem garantir qualidade de vida ou benefício na perspectiva do paciente. Assim, o que tiver sido determinado nas DAV prevalece sobre qualquer outra decisão de terceiros, desde que em conformidade com os preceitos ético-legais 29.
Alinhar os valores dos pacientes às melhores alternativas disponíveis de tratamento exige habilidades de comunicação para entender suas necessidades e prioridades e estabelecer metas de cuidados com base no que foi compartilhado. Não existe plano único para um cenário clínico específico, e essa flexibilidade requer alguma prática.
Este artigo trouxe sugestões e recomendações de evidências atuais para facilitar o PAC na prática clínica, que deve ser pautado numa comunicação empática, desde a informação do diagnóstico e prognóstico – essencial para que o paciente identifique suas prioridades –, passando por uma escuta ativa para explorar o que é importante para o paciente, até a tomada de decisão propriamente dita e o posterior compartilhamento de informações e registro do plano de cuidados.
Há evidências suficientes que justificam o PAC como processo-chave para melhorar cuidados de fim de vida e, portanto, deve ser rotineiramente integrado à prática clínica por todos os médicos que assistem pacientes com doenças crônicas e potencialmente graves. Quanto antes iniciadas essas discussões, maiores as chances de o paciente receber tratamento consistente com seus desejos e valores, refletindo em melhor qualidade de vida, além de menor sobrecarga emocional para familiares e redução dos custos com intervenções desproporcionais.
Mirella Rebello Bezerra – Doutoranda – mirebello@outlook.com
Williams Fernandes Barra – Doutorando – ajuru2@gmail.com
Rui Nunes – Doutor – ruinunes@med.up.pt
Francisca Rego – Doutora – mfrego@med.up.pt
Correspondência Laiane Moraes Dias – Trav. Dom Romualdo de Seixas, 1476/2207, Umarizal CEP

