Resumo: Este ensaio aborda, à luz da bioética, a transformação do currículo médico no Brasil de um modelo multidisciplinar para um inter ou transdisciplinar. Em revisão narrativa, discutem-se a teoria da complexidade e a transdisciplinaridade, estabelecendo analogia entre a maneira como bioéticas latino-americanas usufruem dessa teoria para a compreensão da realidade, formulando bases conceituais de um currículo médico que supere a fragmentação na formação. Para as bioéticas do sul global, o pensamento complexo e a transdisciplinaridade são fundamentais para compreender uma realidade não reducionista, aberta à construção de conhecimentos que não se isolem na explicação biomédica do mundo. De maneira semelhante, para a formação de médicos com visão de saúde ampliada, que valorizem os determinantes sociais e subjetivos do processo saúde-doença, o currículo deve proporcionar a religação dos saberes. A introdução do pensamento complexo no currículo médico pode estimular o ensino não reducionista.
Palavras-chave: Bioética, Educação médica, Currículo, Práticas interdisciplinares.
abstract: Adopting bioethics as the framework, this essay discusses the transformation of medical curricula in Brazil from a multidisciplinary model to an inter- or transciplinary one. The narrative review method is used to discuss the theory of complexity and transdiciplinarity, establishing an analogous understanding between how Latin American bioethics views use this theory to understand reality, creating conceptual framework of a medical curricula that goes beyond fragmentation in training. Complex thought and transdiciplinarity are fundamental for the bioethics views of the global south to understand a non-reductionist reality, one that is open to constructing knowledge that is not isolated in a biomedical understanding of the world. Likewise, to train physicians with a broader view of health and who value the social and subjective determinant aspects in the health-disease process, the curriculum must provide a rekindling of pieces of knowledge. The introduction of complex though in medical curricula can stimulate non-reductionist teaching.
Keywords: Bioethics, Education, medical, Curriculum, Interdisciplinary placement.
resumen: Este ensayo muestra, basándose en la bioética, la transformación del currículo de medicina en Brasil del modelo multidisciplinar al modelo inter- o transdisciplinar. Desde una revisión narrativa se discute la teoría de la complejidad y la transdisciplinariedad bajo una analogía de cómo las bioéticas latinoamericanas utilizan esa teoría para comprender la realidad, sentando bases conceptuales para un currículo de medicina que supere una formación fragmentaria. Para las bioéticas del sur global, el pensamiento complejo y la transdisciplinariedad son claves para comprender una realidad no reduccionista, abierta a la construcción de saberes que no se restringen a la explicación biomédica de mundo. Asimismo, para una formación médica con visión amplia de la salud y que valora los determinantes sociales y subjetivos del proceso salud-enfermedad, el currículo debe propiciar la reconexión de saberes. La introducción del pensamiento complejo en el currículo de medicina puede fomentar una enseñanza no reduccionista.
Palabras clave: Bioética, Educación médica, Curriculum, Interdisciplinary placement.
Pesquisa
Complexidade e transdisciplinaridade no currículo médico comprometido com bioéticas latino-americanas
Complexity and transdisciplinary in medical curricula committed to Latin American bioethics
Complejidad y transdisciplinariedad en el currículo médico comprometido con las bioéticas latinoamericanas
Recepção: 29 Agosto 2021
Revised document received: 12 Abril 2022
Aprovação: 02 Junho 2022
No âmbito da educação médica, há muito se debate sobre os malefícios da fragmentação dos diferentes saberes para o aprendizado e futura prática profissional dos estudantes 1– 3. Consequentemente, desde a década de 1980, vêm-se empreendendo estratégias para reformular currículos e práticas pedagógicas das escolas médicas brasileiras. Apesar das diferentes abordagens e alcances das iniciativas, de modo geral, o objetivo era que futuros médicos estivessem mais bem preparados para cuidar das necessidades de saúde da população 4.
Um dos marcos nessa trajetória foi a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Medicina pelo Conselho Nacional de Educação, em 2001. Esse documento previa adaptações nas escolas médicas de todo o território nacional, para que tivessem como egressos profissionais com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitados a atuar, pautados em princípios éticos, (…) na perspectiva da integralidade da assistência5.
Vários projetos e políticas foram implementados nos anos seguintes, visando a mudanças na formação de profissionais de saúde como um todo, a exemplo das DCN dos Cursos da Área de Saúde, do Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed) e do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) 6.
Essa nova orientação pedagógica, envolvendo conhecimentos e práticas tanto da educação quanto das profissões de saúde, ultrapassa a divisão clássica do conhecimento científico em disciplinas 3. A ruptura com um modelo tradicional de formação biologicista buscava introduzir a perspectiva da integralidade, ainda que haja vários sentidos para esse conceito na formação de profissionais de saúde 7. Tais mudanças requerem modificações nas práticas de estudantes, docentes e profissionais de saúde envolvidos na formação, o que representa um desafio desde o início do processo 8 até os dias atuais.
A disputa parece ir além do embate entre o modelo hegemônico biomédico e o modelo da integralidade. É importante perceber que os currículos – e também as práticas pedagógicas deles decorrentes – são fruto de processos políticos, em determinado tempo histórico e arranjo social, expressando princípios e teorias 9. Assim, o ensino que considera o saber compartimentalizado não compartilha das mesmas bases epistemológicas do ensino fundamentado no saber inter ou transdisciplinar.
Pode-se traçar um paralelo entre esse processo de mudança paradigmática em curso na educação de profissionais de saúde e a ampliação das fronteiras da bioética para além da ética biomédica, promovida por correntes bioeticistas, sobretudo latino-americanas. A partir da percepção de que a bioética principialista não era suficiente para responder a várias questões bioéticas, especialmente nas nações periféricas, buscou-se novo referencial epistemológico para o campo, incluindo os conceitos de multi-inter-transdisciplinaridade e do paradigma da complexidade 10. Refletir sobre essa trajetória pode ajudar a compreender as potencialidades e desafios da mudança de paradigma no campo da educação médica.
Não existe consenso sobre o momento exato em que o campo da bioética surgiu. A maioria dos bioeticistas acredita que seu marco inicial foi a publicação da obra Bioethics: bridge to the future ( Bioética: uma ponte para o futuro), de Van Rensselaer Potter 11, em que o autor defende uma ética aplicada à vida, não apenas humana, e que essa aplicação ética aos fatos biológicos garantiria a sobrevivência da humanidade e do ecossistema. Ou seja, a bioética deveria acompanhar o desenvolvimento científico mantendo uma vigilância ética sobre ele, por meio da democratização desse conhecimento, porém o desenvolvimento da bioética nos países anglo-saxões modificou a visão inicial de Potter.
Contemporaneamente à publicação de Potter, Henry K. Beecher 12 publicou artigo contundente revelando violações de direitos humanos a sujeitos de pesquisa em 22 estudos publicados em periódicos científicos de prestígio mundial, financiados por órgãos governamentais ou pela indústria farmacêutica. Diante do impacto dessa publicação, o governo estadunidense formou uma comissão de especialistas visando conter esses abusos, dando origem, em 1978, ao Relatório Belmont. Nesse documento, o comitê defendeu que a pesquisa com seres humanos fosse guiada pelos valores éticos do respeito à autonomia das pessoas, da beneficência e da justiça 13.
No ano seguinte, Beauchamp e Childress publicaram a obra Principles of biomedical ethics ( Princípios da ética biomédica), incorporando os três princípios do Relatório Belmont e acrescentando o princípio da não maleficência 14. Essa importante obra teve grande aceitação não apenas no mundo anglo-saxão, mas em todos os continentes. Todavia, a ideia inicial da bioética como ética da vida foi reduzida à esfera biomédica, focada na pesquisa com seres humanos e nas relações entre profissionais de saúde e pacientes, a chamada bioética principialista 10.
Somando-se à difusão e à ampliação do campo da bioética pelo mundo, observações acerca dos limites da bioética principialista começaram a ser realizadas nos anos 1990. Inicialmente, críticas advindas de autores europeus e estadunidenses questionaram os aspectos filosóficos do principialismo, sua base epistemológica e sua validade como teoria 15. Clouser e Gert 16 afirmam que a existência de princípios éticos nega implicitamente a ideia da moralidade como unidade. Ademais, o uso exclusivo dos quatro princípios como estratégia de análise de conflitos éticos poderia excluir outras questões morais relevantes, além de estar intrinsecamente ligado ao contexto estadunidense, com grandes dificuldades de transposição direta a outras culturas 17.
Em seguida, os bioeticistas provenientes do sul global, especialmente de países latino-americanos, criticaram a aplicação dos princípios à realidade regional, considerando a desigualdade entre países centrais e periféricos 15. Esses pesquisadores argumentaram que o uso do principialismo como ferramenta de análise de conflitos éticos individuais não se mostra adequado no plano dos conflitos morais em saúde coletiva 18. Ademais, a diversidade de olhares e pensamentos resulta em diversas bioéticas, que não se esgotam na doutrina principialista, de modo que a hegemonia dessa teoria passou a ser encarada por muitos bioeticistas como imperialismo moral de países economicamente privilegiados 19.
Assim, nesse contexto de críticas à insuficiência da teoria principialista, redutora da ideia inicial potteriana de ética da vida a ética biomédica, foi preciso propor novas bases conceituais para o campo. A pluralidade de olhares morais possíveis, influenciados por diferentes contextos histórico-culturais, justifica a necessidade de definir novas bases epistemológicas para a bioética, na perspectiva de atender às especificidades dos diferentes dilemas morais nas diversas regiões do planeta.
Sotolongo 20 afirma que o surgimento da bioética ocorreu em meio a um movimento mais amplo de mudança do pensamento para além do ideal clássico de racionalidade, cujos componentes são a primazia da razão, a objetividade do saber e o conhecimento posto a serviço do bem da humanidade, com o domínio da natureza. As situações que emanam das interações entre seres humanos e outros seres vivos, humanos ou não, com as quais a bioética lida, influenciam-se mutuamente: pequenas variações iniciais podem gerar grandes efeitos, para os quais nem sempre há uma solução vista ou pensada. Esta seria a manifestação do paradigma da complexidade no âmbito da bioética.
Esse paradigma tem sido visto como um caminho possível para religar saberes fragmentados, desde o positivismo, em ciências humanas e ciências naturais. Edgar Morin 21 critica essa cultura secular contemporânea pelo fato de ela ser incapaz de resolver problemas que advêm da diversidade, de imprevistos e indeterminações, ou seja, de fatores humanos, assim como o principialismo bioético não dá conta do pluralismo moral, da variedade cultural e dos macroproblemas sociais das nações periféricas 10 observados pela ótica da bioética.
Assim, a teoria da complexidade analisa ponderadamente as interdependências e concatenações entre os fatos, pois as maneiras como os conflitos éticos são percebidos em qualquer sociedade são influenciadas por elementos oriundos de várias esferas da vida dos envolvidos em tais conflitos. Esse entorno cultural é formado por culturas parciais, correspondentes a recortes de diferentes classes e grupos sociais, que, por sua vez, influenciam a cultura mais geral. Nesse sentido, é impossível prever o modo como mudanças nessas culturas parciais afetam o entorno cultural mais geral.
Além disso, mesmo em sua totalidade, toda e qualquer cultura é incompleta 22 e essa incompletude cultural, por si só, exige que se estabeleçam lugares de encontro onde os diálogos interculturais necessitam ocorrer. Todavia, vista numa mesma cultura, essa inerente incompletude dificilmente será identificada, porque o permanente anseio por totalidade gera apropriação da parte pelo todo 23. Portanto, a perspectiva da complexidade mostra que não basta estudar as partes para entender o todo 24.
Morin 21 afirma que, no método racional, para a compreensão “completa” das coisas – do todo –, devem-se compreender as partes, incluindo não apenas os conhecimentos produzidos por cientistas, historiadores e artistas, mas também as questões epistêmicas envolvidas 21. Assim, a abordagem analítica dos saberes busca as causas primeiras, numa tentativa de dissecar a complexidade e reduzi-la a elementos simples. Já a abordagem sistêmica pretende organizar e articular diferentes conhecimentos, tendendo a uma síntese da complexidade 25.
Um exemplo concreto seria a reflexão bioética sobre a introdução de organismos geneticamente modificados no ambiente, sem que haja clareza de seus efeitos sobre o ecossistema, inclusive os de longo prazo. Pela perspectiva positivista, os riscos são avaliados separadamente, inferindo-se que a soma de seus efeitos representa suas consequências. Porém, essa abordagem se mostra insuficiente para avaliar questões complexas, por não considerar as relações que se estabelecem nesse sistema 26.
A epistemologia clássica, ou de primeira ordem, da modernidade enfatiza o papel do objeto de indagação e a aspiração do indagador de alcançar a objetividade pura. Para a epistemologia não clássica, ou de segunda ordem – da qual é tributária a bioética global, na medida em que enfatiza a articulação entre os valores e o saber e a atitude de responsabilidade dos sujeitos uns em relação aos outros, à natureza e ao futuro –, o indagador está intimamente envolvido com o objeto da indagação em um contexto específico que sempre condiciona o processo de indagação. O indagador integra a indagação como processo, e esta apresenta características de reflexividade 20.
Nessa ótica, surge a necessidade de refletir sobre o conceito de realidade, como não apenas os aspectos fenomênicos, mas também em sua essência. Nessa perspectiva, a realidade constitui-se como conjunto dinâmico, integral e estruturado, a totalidade concreta, e não apenas o conjunto dos fatos. Então, o conhecimento dessa realidade torna-se uma jornada de concretização, que vai do todo às partes, mas também das partes ao todo, não se limitando à análise destes, mas garantindo seu caráter dialético 27. Esse processo de conhecimento da realidade integrada e dinâmica pode ser visualizado como uma espiral de compenetração e esclarecimento mútuo dos conceitos 10.
Tomando como exemplo a atuação dos profissionais de saúde, cada dia mais especializados, a divisão positivista do conhecimento em partes torna incompreensíveis as relações dinâmicas que o paciente estabelece com a sociedade, com o ambiente e com a totalidade. Assim, os núcleos de saberes, quanto mais se especializam, ficam cada vez mais “associais”, afastados da totalidade, e os profissionais que os executam, por seu turno, ficam cada vez mais desvinculados da realidade, da qual seus pacientes e eles mesmos fazem parte 10.
Outro aspecto relevante para perceber a bioética com base no pensamento complexo é a incorporação da perspectiva oriunda do pensamento sistêmico, de sistemas abertos e fechados e de suas inter-relações não lineares. Tomando como exemplo a relação paciente-profissional de saúde, caso esta seja encarada pela perspectiva racional analítica, será vista como um sistema fechado, em que as relações ocorrem apenas entre esses dois indivíduos. Porém, tais interações são influenciadas pela família, instituição de saúde, organismos financiadores, entre outros agentes, cujas relações não lineares a tornam um sistema aberto 28.
Segundo a perspectiva da complexidade, não há desordem, mas uma ordem complexa, formada por essas interações não lineares e os mundos físico-químico, dos vegetais e animais não humanos e dos seres humanos e sociedades que se auto-organizam em tais interações. Como consequência, pensar metodologicamente a bioética sob a ótica da complexidade exige estudar essas interações não lineares, seus atratores, suas bifurcações e o surgimento de tal auto-organização de mundo em torno da questão estudada, sem perder de vista o lugar do próprio pesquisador nesses processos do ponto de vista transdisciplinar. É preciso estar aberto a incorporar novos métodos para novas questões, entendendo a equivalência epistemológica entre a capacidade de predizer e a impreditibilidade 20.
Assim, a perspectiva da complexidade fornece um referencial teórico que possibilita vislumbrar a bioética como sistema aberto de “metapontos de vista”, o qual permite vê-la por um prisma teórico de articulação de saberes, necessariamente interdisciplinares, para além do normativismo estrito da regulação técnica ou moral 29. A intenção é construir uma bioética ampliada, mais comprometida com questões éticas persistentes em nações periféricas, na qual os dilemas sejam estudados não apenas pela ótica de teorias éticas, princípios e regras, mas com uma complementaridade entre ética empírica e reflexão ética. Ou seja, uma necessidade de contextualização, com as contribuições das ciências sociais, sem perder a universalização, própria das éticas normativas 30.
Um campo de conhecimento específico, com seu caráter definido e legitimado por uma comunidade científica, é considerado uma disciplina 31. Tem suas origens na divisão positivista do conhecimento em partes, o que prejudica a compreensão das relações dos seres humanos com seu entorno social, com o ambiente, com a totalidade.
A multidisciplinaridade, utilizada aqui como sinônimo de pluridisciplinaridade, prevê uma justaposição de saberes sobre o objeto de uma disciplina 32. Portanto, qualquer abordagem multidisciplinar é um corolário da insuficiência da abordagem por uma única disciplina para a maioria das questões que surgem neste mundo complexo. Atualmente, cientistas não podem se acomodar em suas próprias disciplinas, o que os distancia do mundo real, complexo 33. Enriquecendo a compreensão sobre os problemas, a multidisciplinaridade busca subsidiar a elaboração de soluções melhores 31.
Ainda assim, a multidisciplinaridade gera acúmulo, mas não integração entre saberes, enquanto a interdisciplinaridade prevê diálogo entre disciplinas, com transferência de métodos entre elas 32, e até o surgimento de novas disciplinas, a exemplo da medicina e do direito. A bioética pode ser considerada interdisciplinar desde seu nascimento, unindo conhecimentos biomédicos a valores morais, visto que, nas análises bioéticas, conceitos de diversas disciplinas são necessários para lidar com as questões do mundo atual 34. Pensar em soluções para antigos e novos desafios bioéticos exigirá conhecimentos, valores e experiências diversificados 33, interagindo entre si.
No entanto, na interdisciplinaridade não se rompem as fronteiras entre os espaços disciplinares, pois, para o pensamento complexo, é necessário enxergar a transdisciplinaridade entre, através e além das disciplinas 32. Para o pensamento clássico, essa ideia não faz sentido, pois nesse espaço existe apenas o vazio, não havendo um objeto, porém, em razão dos vários níveis de realidade, o espaço entre as disciplinas não é um vazio, o que faz a pesquisa transdisciplinar se interessar pela dinâmica da interação desses vários níveis ao mesmo tempo 31. Portanto, seus três pilares são os níveis de realidade, o pensamento complexo e a lógica do terceiro incluído 10.
Então, o objetivo da visão transdisciplinar é a construção de um conhecimento o mais amplo possível, sem perder de vista a singularidade das experiências, capaz de dialogar com outros conhecimentos variados, incluindo aqueles que não são considerados científicos, para ampliar as possibilidades de resposta aos problemas observados pelo pensamento complexo 31. Para a bioética, esse olhar é fundamental, pois tentar resolver questões morais que surgem nos mais diversos contextos com uma ferramenta única, como no principialismo, certamente não trará soluções aceitáveis pela moral local 33.
Assim, a transdisciplinaridade é fundamental para os campos do conhecimento que se dedicam a entender a relação das ciências com os aspectos sociais, culturais, filosóficos e espirituais da humanidade. Em busca de refletir moralmente acerca das intervenções científicas, médicas e sanitárias sobre indivíduos e coletivos, a bioética deve fazer o exercício de conhecer a realidade com um olhar que vá para além de todas as disciplinas.
A complexidade como posição epistemológica envolve uma pluralidade de elementos distintos cuja leitura deve buscar a totalização (globalização), a qual ocorre como procedimento de leitura sintética em que a explicação de caráter mais analítico das partes (positivista) permanece tão inseparável do todo quanto o todo dessas partes. Assim, a globalização do conjunto, mais que sua totalidade, constitui uma unidade em que não necessariamente há hierarquização dos componentes – sendo reafirmada a interdependência entre eles. Desse modo, o todo será diferente da soma das partes 35.
Essa relação entre fragmentos e conjunto contribui para a reflexão sobre uma medicina que não compreenda o ser humano como mero conjunto de células, tecidos e órgãos.
Ardoino afirma que o conjunto deverá ainda supor, para poder ser reconhecido como complexo, a inteligência de uma pluralidade de constituintes heterogêneos, inscritos numa história, ela mesma aberta em relação às eventualidades de um devir36. O autor retoma a ideia de uma epistemologia aberta, na qual esse conjunto seria uma unidade relativamente autônoma, que considera que os elementos de determinado objeto podem ser decompostos – como o ser vivo em sua materialidade físico-química –, mas conservando o caráter interativo de seus traços heterogêneos.
O pensamento complexo afasta-se de uma ideia de domínio sobre determinado campo do saber, atribuindo à incerteza uma legitimidade muito maior, mantendo-se aberta. Os defensores desse pensamento preferem a ideia de multirreferencialidade à de multidimensionalidade, já que esta última parece reforçar o pensamento analítico (das dimensões do objeto).
Ardoino faz referência à existência de dois imaginários concorrentes no pensamento complexo – um de ordem lógico-matemática, e outro, de ordem biossocioantropológica – que interagem entre si com representações comuns e também com contradições que precisam ser aprofundadas, no intuito de estabelecer “visões de mundo” 35.
Nessa mesma perspectiva, Le Moigne 37 chama atenção à necessidade de propor outros paradigmas epistemológicos e alguns procedimentos que legitimem os conhecimentos ensinados. O autor critica os axiomas aristotélicos e aponta limites da lógica dedutivista – predominante a ponto de ele considerá-la o “arquétipo” do raciocínio perfeito. Defende, para tanto, o ensino da abordagem sistêmica como uma nova retórica, ampliando o conhecimento para além da dedução, pois a argumentação impede que se creia numa verdade eterna, absoluta, categórica, impedindo, portanto, que ela seja imposta.
Le Moigne 37 considera que a modelização sistêmica parte da contextualização do objeto de estudo, levantando pontos de argumentações para relativizar a decomposição analítica, que fundamentou o ensino por mais de dois séculos. É possível aprender a modelizar, a representar fenômenos, percebendo-os como ativos em seu contexto, em relação a algum projeto que eles formem, transformando-se neles com o passar do tempo. Os saberes em questão estão disponíveis, acumulados ao longo de pelo menos 2.500 anos de história humana. Basta olhar para eles, reconhecê-los, mobilizá-los 37.
A formação médica no Brasil vem passando por uma mudança de caráter epistemológico 2, com objetivo de adequar o egresso às necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus princípios. A escolha deste ensaio por focar o olhar no médico também encontra sentido nessas transformações. As atuais DCN da profissão, como será explorado mais adiante, dirigem as escolas médicas para a formação de egressos cada vez mais aptos a atuar nesse contexto.
Quatro princípios nortearam a reforma sanitária brasileira (ético-normativo, científico, político e sanitário). Os princípios ético-normativo e político consolidam a saúde como um direito humano, como um direito de todo cidadão em um estado democrático. O princípio científico amplia o conceito de saúde, compreendendo o processo saúde-doença como determinado por aspectos sociais e culturais, e o princípio sanitário protege a saúde de maneira integral 38. Essa transformação da visão de saúde parece requerer profissionais com visão mais abrangente, cuja formação necessita de currículos que considerem a teoria da complexidade.
A ênfase em um cuidado de saúde com base comunitária, buscando a integralidade, requer dos médicos novas competências para lidar com a realidade, já que o modelo de pensamento e atuação exclusivamente biomédico e hospitalar não é capaz de responder às novas demandas de um “novo” campo de trabalho, mais próximo à realidade dos brasileiros. Os médicos, então, passaram mais comumente a ter de lidar com problemas característicos da maioria dos brasileiros: pobreza, exploração, opressão, violência, ausência de educação, entre outros.
Dessa maneira, o cuidado do médico não consegue escapar da necessidade de contextualizar os determinantes sociais da saúde. Pensando na complexidade como epistemologia e no ser humano como sujeito singular, o papel da escola médica deve ser ensinar o profissional a entender cada pessoa humana como um conjunto, cujo processo saúde-doença requer uma perspectiva de pensamento complexo.
Para Ardoino, a educação deve oferecer um terreno de práticas do pensamento complexo, pois ela é sempre mestiçagem, invenção de um compromisso em favor de uma duração39. Considerando que, na escola, além de adquirir “saber” e aprender a “saber fazer”, o sujeito é ensinado a “ser”. Assim, as bases epistemológicas que embasam o ensino tradicional são colocadas em xeque. Ensinar com base na teoria da complexidade retira a educação do lugar da aprendizagem somente “do que foi o passado”, passando a compreendê-la como a “descoberta do futuro”.
Parafraseando o autor 39, para a educação de profissionais de saúde, a complexidade desloca o ensino de disciplinas isoladas que levam a compreensão de um corpo anatômico, fisiológico e patológico, análogo a todos os humanos, para a descoberta das demandas singulares de cada sujeito em seu lugar no mundo.
A transdisciplinaridade na formação médica parece ser a única saída possível para garantir o perfil de egressos exigido pelas atuais DCN. Segundo seu art. 3°, o graduado em medicina terá formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do ser humano e tendo, como transversalidade em sua prática, sempre, a determinação social do processo de saúde e doença 40.
As DCN advogam pela inclusão das ciências humanas e sociais como eixo transversal na formação profissional. Pelo exposto anteriormente com relação à bioética, a existência dessas disciplinas sem que elas estejam articuladas entre si e com as demais disciplinas do curso médico não parecem ser úteis a uma transformação real da visão fragmentada do ser humano.
No que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem, Rosnay acredita que o ensino deve oferecer referências da abordagem analítica, mas para a sistêmica, essas referências devem desembocar numa relação com a ação41. Incorporar a cultura da complexidade não é saber tudo sobre pequenos pontos nem pequenos pontos sobre tudo. A cultura da complexidade refere-se à construção de sentido da realidade a partir da integração de conhecimentos.
O curso médico, então, deve encontrar saídas para articular os diversos saberes sobre a pessoa humana e formular modos de pensar o sujeito como um conjunto complexo e singular. Encontrar métodos de ensino para esse fim é um desafio para os formadores. As DCN convidam a utilizar métodos que privilegiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e na integração entre conteúdos 40. O uso de métodos ativos de ensino, a problematização de situações reais, entre outros, podem contribuir para essa mudança de pensamento.
Batista 3 afirma que um dos desafios para as escolas médicas é a incorporação da concepção ampliada de saúde em seus currículos, com sua consequente modificação das práticas de cuidado, além da preparação para o trabalho em equipe. Portanto, a fragmentação dos saberes em disciplinas estanques vai na contramão dessa necessidade de profissionais para atuar num mundo com problemas complexos.
Assim como para a bioética, que almeja trabalhadores que se perguntem o que devem ou não fazer diante dos dilemas morais, não porque podem ter problemas judiciais ou com seus conselhos profissionais, mas porque estejam “pautados pelo valor da pessoa humana” 34, é necessário um esforço de transformação nas concepções e práticas da educação médica para efetivamente formar profissionais de saúde nessas novas bases.
Pensando no ensino da bioética, postulam-se novas tecnologias pedagógicas que permitam a aquisição de conhecimentos, mas também de capacidade crítica, a fim de que os egressos estejam aptos a refletir sobre as questões morais de sua futura prática profissional 34, o que está em consonância com a proposta de modificações curriculares e métodos de ensino das escolas médicas, já previstas desde as primeiras DCN para o ensino da medicina 5.
Contudo, apenas essas mudanças não são suficientes; é necessário ampliar a forma de pensar, complexamente e pelo entrelaçamento de saberes, de maneira interdisciplinar, mirando uma transdisciplinaridade futura. Manchola-Castillo sugere que é possível colocar isso em prática criando novos métodos e objetivos, mudando o foco da doença para a pessoa que sofre, dividindo a responsabilidade pelas decisões e pelo cuidado entre profissionais, pessoas, familiares e comunidade e reconhecendo outros saberes e olhares, para além daqueles cientificamente validados 31.
Dessa maneira, acredita-se que, assim como vem ocorrendo com a bioética, a incorporação do pensamento complexo e do ideal de transdisciplinaridade à educação médica tem potencial transformador de mentes e corações, o que naturalmente se refletirá em novas práticas pedagógicas e assistenciais. Assim como vem resgatar o sentido original da bioética – de ponte para a sobrevivência da vida no planeta –, esse pensamento sistêmico pode ajudar a construir uma educação médica que contribua para um futuro mais justo e solidário.
Vinícius Batista Vieira – Doutorando – vinicius.bvieira@ufpe.br
Saulo Ferreira Feitosa – Doutor – saulo.ffeitosa@ufpe.br
Correspondência Viviane Xavier de Lima e Silva – Universidade Federal de Pernambuco. Av. Marielle Franco, s/n, Km 59, Nova Caruaru CEP