Resumo: Este artigo realiza uma análise comparativa entre os direitos humanos descritos na Declaração Universal de Direitos Humanos e as Leis Orgânicas 8.080/1990 e 8.142/1990, que regulamentam o Sistema Único de Saúde. O método se baseou na associação e comparação dos três documentos, sendo o primeiro de nível internacional e os demais de cunho nacional, a fim de identificar valores humanísticos e éticos nas bases legais da saúde pública brasileira. Discussões acerca dessa temática são fundamentais para que profissionais da saúde identifiquem lacunas entre teoria e prática hospitalar e, dessa forma, garantam os direitos dos pacientes.
Palavras-chave: Bioética, Direitos humanos, Sistema Único de Saúde.
abstract: This article presents a comparative analysis between the human rights described in the Universal Declaration of Human Rights and Organic Laws 8,080/1990 and 8,142/1990, which regulate the Brazilian Unified Health System. The three documents were related and compared, the first, an international one and the other two of national character, to identify humanistic and ethical values in the legal framework of Brazilian public health. Discussions on this topic are fundamental so health professionals can identify the gaps between theory and hospital practice, thus ensuring the rights of patients.
Keywords: Bioethics, Human rights, Unified Health System.
resumen: Este artículo realiza un análisis comparativo entre los derechos humanos descritos en la Declaración Universal de los Derechos Humanos y las Leyes Orgánicas 8.080/1990 y 8.142/1990, que regulan el Sistema Único de Salud en Brasil. El método se basó en la asociación y comparación de los tres documentos, con el primero de ámbito internacional y los otros de carácter nacional, con el fin de identificar valores humanísticos y éticos en las bases jurídicas de la salud pública brasileña. Las discusiones sobre este tema son esenciales para que los profesionales de la salud puedan identificar lagunas entre teoría y práctica en el hospital y, de esa manera, garantizar los derechos de los pacientes.
Palabras clave: Bioética, Derechos humanos, Sistema Único de Salud.
Pesquisa
Análise comparativa: direitos humanos e as leis orgânicas da saúde
Comparative analysis: human rights and the organic laws of health
Análisis comparativo: los derechos humanos y las leyes orgánicas de la salud
Recepção: 06 Março 2021
Revised document received: 30 Maio 2022
Aprovação: 02 Junho 2022
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) surgiu em 1948, em meio a um triste e deplorável contexto de atrocidades e genocídios de minorias que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial. A declaração é constituída por ideais que buscam orientar a conduta da sociedade e ações governamentais, além de prescrever leis que garantam a proteção dos direitos humanos 1. O documento reconhece que dignidade, liberdade de expressão e igualdade perante a lei são condições devidas a todos os seres humanos, independentemente de idade, sexo, cor ou nacionalidade 1, 2.
O Sistema Único de Saúde (SUS), por sua vez, foi criado em 1988 pela Constituição Federal Brasileira, com o intuito de garantir acesso à saúde para toda a população. Para aqueles nascidos no início do século XX no Brasil, a criação de princípios que democratizassem a saúde certamente parecia uma utopia, visto que a população da época estava vulnerável a diversas epidemias. Doenças como poliomielite, malária e tuberculose foram responsáveis pela morte de parcela significativa da população, principalmente das classes mais baixas, que dependiam exclusivamente de ações filantrópicas 3. Em contraposição a esse cenário, em 1990, o governo federal implementou as Leis Orgânicas 8.080/1990 4 e 8.142/1990 5, com a finalidade de afirmar os princípios e diretrizes do SUS, de forma que o Estado passou a ser responsável pela garantia do direito de acesso à saúde.
Embora a DUDH e as Leis Orgânicas do SUS tenham surgido em contextos e com definições primárias distintas, os três regimentos possuem diretrizes que fomentam a garantia dos direitos humanos essenciais, com destaque ao acesso à saúde 1, 6. Entender os direitos de acesso à saúde permite que lacunas entre teoria e prática sejam identificadas, possibilitando que profissionais da saúde e a população em geral requeiram melhorias e participem ativamente da construção de mudanças para solucionar tais déficits. Portanto, faz-se necessário identificar os valores éticos presentes nas bases legais da saúde pública brasileira e o alinhamento destes em relação à visão humanística mundial sugerida pela DUDH 4.
Dessa forma, este trabalho busca realizar uma análise comparativa entre os direitos descritos na DUDH e as Leis Orgânicas 8.080/1990 e 8.142/1990, que regulamentam o SUS.
Inicialmente, os três documentos, todos disponíveis on-line, foram pesquisados e lidos integralmente. Em seguida, os autores, de forma independente, compararam os artigos da DUDH com as Leis Orgânicas do SUS para identificar semelhanças e diferenças. Os artigos escolhidos por cada autor foram selecionados separadamente e qualquer desacordo foi sanado mediante discussões a respeito do tema. Além disso, realizou-se breve revisão de literatura para embasar o estudo. Por fim, os artigos selecionados foram analisados criticamente, sob uma visão bioética, com intuito de identificar aproximações pertinentes entre os diferentes documentos.
Sabe-se que os seres humanos precisam de direitos básicos para viver de forma harmônica e justa 1, 7. Assim, é importante observar se as políticas nacionais de saúde empregam uma conduta digna e igualitária, como proposto pela DUDH 7. Diversos aspectos se assemelham entre as leis que regulamentam o SUS e a DUDH, como mostrado nos exemplos a seguir.
O artigo 2 da DUDH preconiza que os direitos são inerentes a todos os seres humanos, independentemente de qualquer característica, como cor, idade, crença, entre outras, para que todos vivam de forma digna 7. Da mesma forma, o SUS tem como um dos seus principais valores a universalização, visando atender o povo brasileiro como um todo, não dependendo de condição financeira, religiosa ou cor 4, 8. Inclusive, o capítulo V da Lei 8.080/1990 é dedicado aos direitos relacionados à saúde de povos indígenas, população por muito tempo negligenciada 4. Assim, a saúde é vista como direito fundamental de todos os cidadãos brasileiros.
Os tópicos a seguir trazem os artigos da DUDH e da Lei 8.080/1990 que tratam da universalização do acesso à saúde:
Art. 2 – DUDH: Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição7;
Art. 21 – DUDH: Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país7;
Art. 7° – Lei 8.080/1990: As ações e serviços públicos de saúde (…) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: (…) I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; (…) IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie (…) 4.
A saúde já foi vista apenas como estado de ausência de doença, no entanto atualmente o conceito de saúde é muito mais complexo e refinado, envolvendo a visão do ser humano como um ser biopsicossocial 9, 10. Dessa forma, é preciso analisar questões biológicas e psicológicas e relações sociais dos indivíduos, em prol da avaliação completa da saúde do paciente.
Tanto o artigo 24 da DUDH 7 quanto o artigo 3° da Lei 8.080/1990 4 definem que a saúde depende de determinantes sociais, além de questões fisiológicas e fatores como moradia, lazer, trabalho e transporte 10– 12. O artigo citado da DUDH tem como foco principal o direito a repouso, lazer, limitação razoável de horas de trabalho e férias remuneradas periódicas, enquanto a Lei 8.080/1990 traz também a importância do transporte, acesso à educação, renda e meio ambiente. Portanto, diversos fatores precisam ser considerados para suprir integralmente as necessidades básicas de cada indivíduo 10– 12.
Os tópicos a seguir trazem os artigos referentes a condicionantes da saúde descritos na DUDH e na Lei 8.080/1990:
Art. 24 – DUDH: Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas7;
Art. 3° – Lei 8.080/1990: Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. (…) Dizem respeito também à saúde as ações que (…) se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social4;
Art. 7° – Lei 8.080/1990: As ações e serviços públicos de saúde (…) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: (…) X – integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico; (…) 4.
O ser humano é complexo e mutável. Assim, à medida que a sociedade se transforma, também é necessário mudar a maneira como a saúde e as políticas públicas são abordadas 1, 6. Visando entender e atender todos de maneira justa, tanto a DUDH quanto as Leis 8.080/1990 e 8.142/1990 indicam a necessidade de participação popular nos processos decisivos periódicos, como exemplificado nos artigos a seguir:
Art. 21 – DUDH: Todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos7;
Art. 1° – Lei 8.142/1990: A Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos com a representação dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes(…) 5.
A universalização dos direitos atribuídos aos cidadãos é de extrema relevância. No entanto, para que todos acessem esses direitos de maneira justa, é necessário promover a equidade, visto que a sociedade é heterogênea, e, desta forma, cada grupo e classe social possui diferentes demandas 6, 8, 13, 14.
Nesse âmbito, a DUDH e as Leis Orgânicas do SUS apontam que certas camadas da população precisam de subsídios, ao contrário de outras. O SUS, por exemplo, disponibiliza assistência terapêutica integral, inclusive farmacológica – diferente de muitos países, como os Estados Unidos, onde esses serviços são pagos, acentuando as desigualdades sociais 15. Os tópicos a seguir descrevem os artigos que tratam do assunto:
Art. 25 – DUDH: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle7;
Art. 6° – Lei 8.080/1990: Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): (…) assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica4;
Art. 19-M – Lei 8.080/1990: A assistência terapêutica integral (…) consiste em: (…) II – oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar (…) 4;
Art. 19-N – Lei 8.080/1990: (…) I – protocolo clínico e diretriz terapêutica: (…) estabelece critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos (…) 4.
É notável, ainda hoje, a quantidade de pessoas que sofrem por falta de assistência à saúde, principalmente nos quesitos de prevenção e atenção básica, mas também em questões mais especializadas, como procedimentos cirúrgicos 6. Infelizmente, muitos brasileiros morrem esperando a execução de seus direitos 14. Diversos aspectos das Leis Orgânicas do SUS se assemelham aos da DUDH, mas existe falha na aplicação de direitos, que deveriam ser plenamente realizados, como propõem os artigos a seguir:
Art. 28 – DUDH: Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados7;
Art. 2° – Lei 8.080/1990: A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício4.
Na concepção desta análise comparativa, buscou-se entender as normas que servem como base para garantir os direitos humanos vinculados à saúde. Com base na leitura integral da DUDH e das Leis Orgânicas do SUS, foi possível alcançar tal objetivo devido às congruências entre os documentos. Ficou evidente a ênfase dada à universalidade de acesso à saúde, sem nenhum tipo de discriminação entre pessoas, independentemente de seus posicionamentos sexuais, religiosos e culturais; à importância dos condicionantes e determinantes de saúde; à necessidade da participação popular; e à disponibilização de assistência médica 4, 5.
Com isso, verificou-se a presença de princípios éticos importantes no sistema de saúde público brasileiro que coincidem com aqueles descritos na DUDH 16. Assim, limitações relacionadas à execução da legislação constituem o grande problema a ser enfrentado 10, 13 – ou seja, muitas vezes, aquilo que está redigido não consegue ser concretizado, devido a questões como gestão inadequada, falta de estrutura e de material hospitalar, entre outras.
Yuri de Jesus Machado – Graduando – mjyuri1999@gmail.com
Correspondência Carolina Dourado de Faria – Av. Luiz Viana Filho, 3146, Paralela CEP