Resumo: Nanotecnologia é a utilização de materiais na escala nanométrica, em que estes adquirem características próprias. A área de pesquisa e desenvolvimento de novos nanomedicamentos é uma das mais promissoras atualmente, todavia essas partículas necessitam de avaliação particular e ainda não há consenso referente às testagens específicas a serem seguidas, o que dificulta a formação de uma legislação que garanta a segurança e eficácia destes medicamentos, além de um processo de registro mais eficaz. Assim, é necessária uma abordagem bioética da nanotecnologia e sua utilização em medicamentos, visando garantir que o progresso científico não acarrete impactos irreversíveis. Diante dessa problemática, busca-se promover uma discussão nanoética referente ao processo de pesquisa e desenvolvimento de nanomedicamentos, por meio de estudo qualitativo, exploratório-descritivo e de caráter analítico, utilizando revisão bibliográfica, análise documental e dados quantitativos disponíveis como técnicas de pesquisa.
Palavras chave: Bioética, nanotecnologia, toxicologia, marcos regulatórios em saúde.
Resumen: La nanotecnología utiliza materiales nanométricos, en que estos adquieren características propias. El área de investigación y desarrollo de nuevas nanomedicinas es una de las más prometedoras en la actualidad, sin embargo, estas partículas requieren de una evaluación particular y aún no existe consenso en cuanto a las pruebas específicas que seguir, lo que dificulta establecer una legislación que garantice la seguridad y eficacia de estos medicamentos, además de un proceso de registro más efectivo. Por lo tanto, se necesita un enfoque bioético de la nanotecnología y su uso en medicamentos para garantizar que el avance científico no tenga impactos irreversibles. Ante esta problemática, se pretende promover el debate sobre la nanoética en el proceso de investigación y desarrollo de nanomedicinas a partir de un estudio cualitativo, exploratorio-descriptivo y analítico, que utiliza como técnicas de investigación la revisión bibliográfica, el análisis de documentos y los datos cuantitativos disponibles.
Palabras clave: Bioética, nanotecnología, toxicología, marcos reguladores en salud.
Abstract: Nanotechnology consist of using materials at the nanoscale, in which they acquire specific characteristics. Nanodrug research and development is one of the most promising fields today; however, these particles require particular evaluation. Moreover, studies lack consensus on which specific tests to follow, thus hindering the elaboration of legislation that ensure their safety and efficacy, as well as a more effective registration process. Thus, a bioethical approach to nanotechnology and its use in drug development is necessary to ensure scientific progress without irreversible impacts. Given this scenario, this article proposes a nanoethics discussion regarding nanodrug research and development by means of a qualitative, exploratory and descriptive analysis, based on literature review, documental analysis and quantitative data available.
Keywords: Bioethics, nanotechnology, toxicology, regulatory frameworks for health.
Atualização
Pesquisa e desenvolvimento de nanomedicamentos: olhar bioético
Investigación y desarrollo de nanomedicinas: desde la mirada bioética
Nanodrug research and development: a bioethical approach
Recepção: 9 Julho 2021
Revised document received: 19 Agosto 2022
Aprovação: 4 Janeiro 2023
As nanopartículas (NP) são materiais localizados na escala nanométrica que apresentam propriedades químicas, físicas e biológicas e/ou comportamentais distintas daquelas encontradas nos mesmos materiais em macroescalas. Um dos principais campos de aplicação dos nanomateriais é a área farmacêutica, em que essa tecnologia possibilita novas formulações de liberações controladas utilizando nanocarreadores, gerando uma nova classe de medicamentos, denominada nanomedicamentos 1 - 3 .
Pereira e Binsfeld 4 definem nanomedicamentos como qualquer substância ou combinação de substâncias com propriedades físico-químicas distintas utilizada para fins profiláticos, curativos, paliativos ou diagnósticos. Trata-se da forma farmacêutica terminada que contém um fármaco em nanoescala ou associado a um nanoadjuvante com ação farmacológica específica visando modular funções metabólicas ou fisiológicas4 .
O processo de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de um novo medicamento deve estar pautado na garantia de eficácia e segurança. Para tanto, os esforços científicos e recursos empregados devem atender ao rigor metodológico e aos princípios envolvidos nesses estudos clínicos 5 .
Tendo como base a legislação sanitária, os ensaios clínicos são divididos em quatro etapas: na primeira, conhecida como etapa de pesquisa, seleciona-se o alvo molecular de determinada patologia e, então, faz-se o desenho molecular racional com base na química medicinal, em que seus ligantes têm maior afinidade com o alvo eleito, passando por testes farmacológicos in vitro e in vivo , culminando na descoberta de um novo composto protótipo e, posteriormente, em sua otimização 6 .
Na sequência, prossegue-se para a etapa de desenvolvimento, dividida em fase inicial – de ensaios pré-clínicos com o composto protótipo, abrangendo os testes toxicológicos – e fase tardia, que compreende os estudos clínicos em humanos, divididos em fase I, fase II, fase III e fase IV 6 .
A etapa pré-clínica tem como objetivo avaliar o composto candidato a fármaco, trazendo os métodos utilizados na pesquisa, os animais utilizados, os testes laboratoriais empregados e os dados obtidos referentes a sua farmacodinâmica, farmacocinética, margem terapêutica e toxicologia. Por fim, há uma discussão referente à relevância desses resultados diante dos efeitos terapêuticos desejados e possíveis efeitos adversos, para que, assim, seja possível avançar para a fase clínica 7 .
Para avaliar a toxicidade na fase pré-clínica, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em seu Guia para a condução de estudos não clínicos de toxicologia e segurança farmacológica necessário ao desenvolvimento de medicamentos , lista os ensaios a que devem ser submetidos os novos compostos, para que, em caso de aprovação, possam prosseguir para as demais etapas de P&D. Todavia, não indica nenhum teste específico para medicamentos de base nanotecnológica. A Anvisa recomenda ainda que, havendo possibilidade, os testes in vivo sejam substituídos por testes in vitro , desde que validados e aceitos internacionalmente 8 , 9 .
Por fim, há a etapa regulatória, em que ocorre o registro do novo composto pelo órgão de regulação de cada país – como a Anvisa, Food and Drug Administration (FDA) ou European Medicines Agency (EMA). Após o registro, o protótipo, agora já como medicamento, entra em sua etapa de comercialização, com concomitante avaliação da farmacovigilância (vigilância pós-comercialização) do novo fármaco, em que se devem relatar os efeitos adversos (EA) decorrentes do uso desse medicamento 6 .
Os nanomedicamentos têm como objetivo gerar grandes benefícios, como diminuição de EA e da dose empregada, o que possibilita melhor adesão ao tratamento 10 , 11 , além da liberação modificada do fármaco 4 , 9 . Contudo, há características que tornam os nanomateriais muito atrativos para a área de P&D, ao mesmo tempo que podem gerar preocupação e desconfiança, já que suas características intrínsecas desconhecidas podem causar danos irreversíveis à saúde e ao meio 12 , 13 .
Diversos estudos apontam que as NP podem apresentar riscos à saúde, devido à potencial atividade citotóxica, genotóxica e teratogênica. Isso ocorre em razão de sua metabolização no organismo e da permeação nas células, além de sua capacidade de interagir com as biomoléculas do organismo, causando diversos tipos de reações, conforme o local em que ocorre essa ação. Ademais, essas partículas podem acarretar a produção de espécies reativas de oxigênio e de neurotoxicidade, por atravessarem a barreira hematoencefálica, além de modular o metabolismo e modificar as funções e estruturas das células 13 - 16 .
Apesar da grande preocupação com o controle da utilização de NP e das diversas indagações a respeito de sua toxicidade e de suas peculiaridades, a produção e padronização de testes toxicológicos são insuficientes para que se avaliem as possíveis consequências que as NP possam causar tanto ao ser humano como ao meio ambiente 17 .
Diante disso, a nanotoxicologia veio para preencher essa lacuna, visando implementar estudos específicos sobre interação entre as nanoestruturas e os sistemas biológicos e almejando obter uma melhor avaliação da toxicidade nos estudos pré-clínicos no desenvolvimento de novos nanomedicamentos, para que, assim, possa se garantir maior segurança ao paciente 9 , 18 .
O impacto das NP no ser humano depende de vários fatores e das propriedades que estas apresentam, como tamanho, massa, composição química e superfície, além da maneira como ocorre a agregação dessas NP. O modo como elas penetram o corpo (através da pele, por inalação ou por via oral) também gera diversos impactos 18 - 20 .
Uma das maiores problemáticas da nanotecnologia é a falta de padronização de ensaios para avaliar a segurança dos nanomedicamentos, visto que há inúmeras diferenças apresentadas por tais compostos no que tange às macromoléculas, para as quais já há uma série de testes padronizados 8 , 21 .
Essa falta de respostas sobre as nanotecnologias deve-se, também, ao fato de ser uma ciência ainda em desenvolvimento, caracterizada, até o cenário atual, por apresentar mais incertezas do que respostas concretas 22 , 23 .
Além da ausência de respostas sobre a toxicologia de nanomateriais e do fato de estes terem aplicações em diversas áreas, é necessário desenvolver métodos de pesquisa e testes alternativos que possibilitem avaliar melhor os possíveis impactos dessa tecnologia. Esses testes, dadas as inúmeras aplicações da nanotecnologia, devem ser capazes de avaliar as diversas propriedades de cada NP, a toxicidade das vias de exposição a estas e suas formas de eliminação. A avaliação individual e específica de cada material é necessária para determinar o risco decorrente de seu uso 17 .
No que diz respeito a sua aplicação na área farmacêutica, os riscos apresentados pela nanotecnologia devem ser analisados com prudência e antecedência, de modo a evitar possíveis problemas que futuramente possam tornar-se irreversíveis para as gerações futuras 9 , 24 .
Na P&D de novos nanomedicamentos avaliam-se as interações entre as nanoestruturas e os sistemas biológicos, em busca de respostas sobre a toxicidade desses novos nanocompostos na fase pré-clínica de desenvolvimento, o que garante maior segurança na utilização dos nanomedicamentos nas diferentes fases clínicas 18 , 25 .
Após adentrar um sistema biológico, a toxicidade de NP deve-se, em grande parte, às alterações em suas propriedades físico-químicas, adquiridas após contato com fluidos biológicos, podendo haver alterações de tamanho, carga, superfície química, dado que a via de administração também é um fator importante nessas mudanças de características, e isso representa uma das principais problemáticas relacionadas às NP 26 , 27 . Além dessas dificuldades, a comparação entre NP que têm propriedades físico-químicas semelhantes acaba por apresentar discrepâncias significativas 1 , 2 .
Conforme suas características intrínsecas, as NP têm uma “identidade sintética”, que descreve suas características-padrão ao serem fabricadas; porém, adquirem uma “identidade biológica” ao adentrarem um organismo vivo. Além disso, a falta de métodos adequados e a complexidade dessa avaliação tornam difícil predizer se o nanomedicamento conseguirá superar as barreiras físicas e fisiológicas do organismo, alcançando seu alvo terapêutico 26 .
Os estudos realizados na fase pré-clínica do processo de P&D de medicamentos são necessários para avançar o desenvolvimento do novo composto e justificar a pesquisa em humanos; porém, em razão das peculiaridades apresentadas pelas NP, o comportamento exato de um nanomedicamento em um sistema vivo ainda não pode ser compreendido com clareza 26 , 27 .
Além do contexto toxicológico, é necessária uma abordagem bioética, considerando a política de testagem animal de Russell e Burch 28 , conhecida como política dos 3Rs – replacement , reduction e refinement (substituir, reduzir e refinar) –, em que se busca uma melhor utilização de modelos alternativos para os ensaios dos efeitos necessários no processo de P&D. No caso das NP, ao elaborar ferramentas para ensaios in vitro , in silico e ex vivo , propicia-se uma redução na utilização de modelos animais, além de refinamento dos resultados obtidos 8 , 27 .
Nesse sentido, são necessárias simulações in silico , a fim de prever a captação de NP in vitro , deduzindo-se sua distribuição intracelular, bem como o comportamento e a eficiência in vivo dessa NP ao ser utilizada como nanocarreador. Esses testes são importantes porque permitem projetar um nanocarreador ideal, contemplando sua farmacocinética, toxicidade e biodistribuição dentro das células e dos tecidos 2 .
Têm-se desenvolvido diversos métodos para avaliar as propriedades farmacocinéticas de NP. Porém, existem graus de complexidade elevados para a aplicação destes 26 .
A farmacocinética é caracterizada pelos processos de absorção, distribuição, metabolismo e excreção (Adme) no organismo. Essas cinéticas podem ser influenciadas pelas propriedades físico-químicas das NP, incluindo tamanho de partícula, composição, morfologia, carga, superfície e estabilidade. O tamanho do agente terapêutico influencia principalmente a farmacocinética, pois determina a quantidade de moléculas e a absorção do fármaco na superfície da nanoentidade. Do mesmo modo, a composição química e físico-química da partícula controla a atividade da substância química, que, por sua vez, influencia a farmacocinética da droga 1 .
Diversos estudos buscam avaliar e comparar a cinética e a toxicidade de NP, utilizando sistemas de avaliação que consistem em células cultivadas in vitro , culturas “organoides” em três dimensões (3D) que imitam estruturas de tecido ou órgãos de diversos sistemas animais in vivo . Contudo, apesar de apresentarem diversas vantagens, importantes resultados, e demonstrarem uma boa correlação entre modelos 3D in vitro e in vivo – além de reduzir notavelmente o uso de cobaias animais, considerando questões éticas de testagens em animais –, cada sistema tem suas limitações 2 , 26 .
A falta de padrões na área da nanotecnologia acaba por agregar problemas nos testes de toxicidade, pois estes incluem tentativas de comparação entre tipos distintos de NP, protocolos de administração diferentes – tanto in vivo como in vitro –, má escolha ou diferenças na célula escolhida, o que resulta em diferenças na cinética de crescimento ou endocitose e frequente falta de testes de estabilidade nanomaterial ou má escolha de métodos de esterilização, ambos aspectos fundamentais para qualquer produto farmacêutico 1 , 2 .
Diante dessa problemática, a União Europeia tornou a investigação das nanotecnologias um ponto essencial à segurança e à saúde no trabalho e do meio ambiente. Utilizando-se dos poucos dados toxicológicos existentes até o momento, a entidade adotou uma abordagem preventiva às nanotecnologias, diante de possíveis ocorrências de exposição a estas. Em contrapartida, o Instituto Nacional para Segurança e Saúde Ocupacional dos Estados Unidos 29 recomendou reduzir a exposição de trabalhadores a NP até a obtenção de resultados conclusivos 17 .
O cenário brasileiro referente a testes toxicológicos de NP não difere muito do de outros países: o documento que indica as avaliações toxicológicas a serem feitas na fase pré-clínica, disponibilizado pela Anvisa, não ressalta nenhum teste específico para NP. Essa falta global de ensaios e normativas específicas para avaliar as consequências da atuação das NP tanto para o ser humano como para o meio ambiente é problemática, pois se soma à questão de bioacumulação no descarte desses produtos, alertando para a necessidade de se desenvolverem pesquisas que avaliem esse impacto no longo prazo 17 .
Apesar de tamanhas incertezas sobre a nanotoxicologia, há no mercado brasileiro diversos medicamentos disponíveis para consumo que já fazem uso da nanotecnologia. Todavia, tais fármacos foram registrados pelo órgão regulatório nacional como medicamentos similares, o que, segundo a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 60/2014 30 , da Anvisa, estaria equivocado, pois estes deveriam ser registrados como novos medicamentos, uma vez que a biodisponibilidade de nanomedicamentos pode ser alterada em relação ao medicamento referência.
Outro fator que prejudica a farmacovigilância é a falta da informação, tanto em bulas como em embalagens, sobre presença e/ou tipo de nanotecnologia empregado na composição de cada medicamento, o que pode dificultar o controle de possíveis EA 11 , 30 .
Quando novas tecnologias surgem, devem ser analisadas cautelosamente, ponderando os impactos que podem causar na qualidade de vida humana, animal ou vegetal. Essa avaliação deve ser feita observando e estudando sua pertinência, sua prioridade, o quesito eficácia/eficiência/efetividade e seu alcance, visando sempre garantir a justiça social e respeitando a dignidade do ser humano 31 .
Em termos de ética, sempre é conveniente recordar a didática distinção proposta por Vázquez 32 , para quem a moral é um conjunto de normas, enquanto a ética é a ciência que tem como objeto a própria moral. A partir dessa perspectiva, a ética não tem caráter normativo; apenas num segundo momento ela pode assumir esse papel, e, mesmo assim, fica circunscrita às grandes linhas de orientação, e não à casuística.
Assim, uma nanoética precisa estar alicerçada nos princípios próprios da bioética e, dado o status quaestionis, ela terá, aqui, um papel muito mais problematizador do que propriamente normativo. Ainda que a bioética avalie e oriente no tocante aos nanomedicamentos, ela ainda precisa se aprofundar, demonstrando a aplicabilidade de seus princípios aos procedimentos específicos que envolvem as NP.
É sempre oportuno recordar que, neste caso em particular, o princípio da não maleficência pode e deve ser aplicado, sem que com isso sejam paralisadas as pesquisas em andamento e, ao mesmo tempo, sem colocar em risco a vida em geral e, em especial, a vida humana.
A nanotecnologia, por sua vez, por apresentar grande potencial de aplicabilidade e lucro para a indústria, vê suas pesquisas e aplicações crescendo em ritmo demasiadamente alto em relação ao conhecimento científico que dela trata. Esse rumo leva a um estado de incerteza sobre o impacto que será gerado futuramente e a um debate sobre a responsabilidade para regulamentar essa tecnologia, o gerenciamento e o destino de seus resíduos 33 .
Ao analisar a literatura, é possível perceber que há um grande déficit de informações tanto sobre a classificação das NP quanto a respeito de suas questões toxicológicas e experimentações a serem seguidas. É imprescindível, portanto, elaborar um plano de gerenciamento de experimentação para garantir maior eficácia nas testagens de toxicidade de nanoprodutos 33 .
Para buscar sanar esse déficit de informações acerca das nanotecnologias, o investimento em P&D e a discussão sobre o assunto em âmbito público são imprescindíveis para que se criem métodos de gerenciamento de risco para o emprego de agentes terapêuticos em escala nanométrica 33 . Deve-se traçar um limiar, concebendo diferentes análises de risco-benefício do agente terapêutico, seguindo quatro etapas essenciais à avaliação do risco tradicional de materiais perigosos: 1) identificação do perigo; 2) avaliação de exposição; 3) avaliação de toxicidade; e 4) caracterização de risco.
Deve-se, também, avaliar o risco de desenvolvimento do produto, o risco de desempenho e a regulamentação 1 .
Ao utilizar a avaliação de risco tradicional, referente a agentes terapêuticos nanométricos, é preciso estimar toxicidades abrangentes de aquisição de dados, exposições não intencionais, produção de resíduos perigosos e contaminação do suprimento de água 1 .
Esse contexto abre margem para uma análise bioética da utilização da nanotecnologia pelas pessoas, pois isso impacta todo o planeta, deixando de ser somente de interesse humano. O aumento quantitativo de experimentações resulta no uso de uma grande quantidade de cobaias animais, visando, além da saúde humana, atender ao aporte consumista dos mercados nanotecnológicos 33 .
Todavia, os interesses de mercado jamais deveriam sobrepor-se à vida. Neste ponto, entra em discussão, em primeiro lugar, a questão da dignidade universal da vida humana. Trata-se de princípio inalienável e inviolável, que deve estar acima de qualquer outro objetivo, conforme preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos , em seu art. 1º: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade34 .
O reconhecimento da igualdade universal de direitos é aparentemente simples. Porém, qual é o princípio que deve guiar as ações humanas para que, no dia a dia, não se deixe de lado a dignidade de todos? Immanuel Kant, um dos maiores filósofos que a humanidade conheceu, formalizou esse princípio, que pode servir como guia: age de modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio35 . Em outras palavras: pessoas têm valor, e as coisas, preço. E essa relação nunca deveria ser invertida.
Com isso em mente, é preciso agir com cautela a fim de impedir que essa incerteza científica acarrete danos irreversíveis à humanidade no futuro, como já alertou Hans Jonas 36. Assim, torna-se inevitável a adoção do princípio da precaução, uma vez que este tem como objetivo garantir e/ou preservar os direitos básicos voltados à preservação da vida sem que o desenvolvimento tecnológico seja interrompido 9 .
Com a adoção do princípio da precaução, uma avaliação mais detalhada e rigorosa acerca dos riscos contidos na exposição a NP é conduzida, colocando em pauta todo o cenário em que se está inserido. É necessária uma legislação que regule as atividades que utilizam nanotecnologia, com o intuito de minimizar os riscos atrelados ao ser humano e ao meio ambiente, devendo, em determinados momentos, retardar ou até mesmo proibir práticas relacionadas à nanotecnologia que possam causar danos irreversíveis futuramente 37 .
Contudo, órgãos regulatórios de todo o mundo, responsáveis pelo registro e monitoramento dos medicamentos, encontram dificuldades relacionadas à insuficiência ou à incerteza de informações científicas. Ao inserir a política do princípio da precaução na tomada de decisões regulatórias no campo da saúde, seria prudente controlar o uso de nanomedicamentos até que se obtenham resultados específicos que comprovem sua segurança, avaliando o possível custo-benefício de sua utilização, visando proteger o paciente e o meio ambiente. É preciso reduzir os níveis de risco a padrões aceitáveis, mesmo não sendo possível reduzi-los a zero 11 .
A nanotecnologia está em processo de desenvolvimento e, por isso, há muitas incertezas acerca dos impactos de longo prazo sobre o ser humano e o meio ambiente. No que tange ao uso da nanotecnologia no processo de P&D de novos nanomedicamentos, até o presente momento não há informações científicas suficientes que garantam sua utilização segura, bem como sua efetividade; essa escassez de provas é um empecilho que acaba por dificultar a criação de legislações que regulamentem a produção, definam o registro e indiquem os processos de avaliação pré-clínicos e clínicos a serem realizados nas etapas de desenvolvimento de um nanomedicamento.
Essas dificuldades referentes à utilização e à segurança das NP estão distribuídas ao redor do globo, o que acarreta grande incerteza quanto à nanotecnologia. A ciência ainda não foi capaz de fornecer respostas suficientes que garantam a integridade humana e do meio ambiente, corroborando a necessidade de uma abordagem bioética sobre a inserção dessa tecnologia no processo de P&D de nanomedicamentos, visando prevenir a ocorrência de possíveis efeitos deletérios irreversíveis para a sociedade.
Nesse contexto, é possível observar que, no presente momento, vive-se em uma sociedade de risco, que requer a adoção do princípio da precaução a fim de se obter uma análise mais rigorosa e detalhada do emprego da nanotecnologia e, assim, minimizar os riscos atrelados à sua utilização, visando garantir e/ou manter os direitos básicos voltados à preservação da vida sem interromper o desenvolvimento tecnológico.
Apesar de a nanotecnologia ser uma área promissora, principalmente quando voltada à área da saúde e ao desenvolvimento de novos fármacos, deve-se ter cautela em sua utilização até que a ciência possa desvendar as lacunas atreladas a suas peculiaridades, as quais, em certos momentos, causam euforia, na medida em que apresentam ampla gama de utilização e/ou inovação, dadas as suas características únicas, e, em contrapartida, provocam sentimento de preocupação, pelo fato de os nanomateriais gerarem mais dúvidas do que respostas.
Daniela Fernandes Ramos – Doutora – daniferamos@gmail.com. 0000-0001-6888-9553
Paulo Gilberto Gubert – Doutor – gilbertogubert@gmail.com. 0000-0002-6443-4479
Enir Cigognini – Doutor – filoenir@gmail.com. 0000-0002-0836-0778
Fabian Teixeira Primo – Doutor – fabian.primo@ucpel.edu.br. 0000-0002-2946-4920
Correspondência: Pedro Borges de Souza – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências Biológicas. Rua João Pio Duarte Silva, 241, sala 201, bloco F, Córrego Grande CEP 88037-000. Florianópolis/SC, Brasil.