Resumo: Este estudo descritivo e qualitativo identificou percepções e conhecimentos de médicos de unidades de terapia intensiva sobre a limitação do suporte de vida. Os resultados revelaram diferentes compreensões e estímulos acerca do uso da limitação do suporte de vida: tomadas de decisão isoladas e compartilhadas; empecilhos como família, profissionais, questões jurídicas e imprevisibilidade da morte; e relatos de casos específicos com benefícios, dilemas e especificidades por quadro e faixa etária. Existe consenso quanto à necessidade de limitação do suporte de vida, mas falta preparo na formação e persistem divergências de compreensão. Os diferentes estímulos para seu uso e as dificuldades para tomada de decisão e definição de condutas são permeados por conflitos éticos, culturais e pessoais e demonstram a necessidade de educar sobre o tema em diferentes níveis de formação de profissionais de saúde.
Palavras chave: Cuidados paliativos, morte, unidades de terapia intensiva, tomada de decisão clínica.
Resumen: Este estudio descriptivo y cualitativo identificó las percepciones y el conocimiento de los médicos en las unidades de cuidados intensivos sobre la limitación del soporte vital. Los resultados revelaron diferentes comprensiones y estímulos sobre el uso de la limitación del soporte vital: toma de decisiones aislada y compartida; obstáculos como la familia, los profesionales, las cuestiones legales y la imprevisibilidad de la muerte; e informes de casos específicos con beneficios, dilemas y especificidades por condición y grupo de edad. Existe consenso sobre la necesidad de limitar el soporte vital, pero carece de preparación y persisten las diferencias de comprensión. Los diferentes estímulos para su uso y las dificultades para la toma de decisiones y la definición de conductas están impregnados de conflictos éticos, culturales y personales, además de que demuestran la necesidad de discutir sobre el tema en los diferentes niveles de formación de los profesionales de la salud.
Palabras clave: Cuidados paliativos, muerte, unidades de cuidados intensivos, toma de decisiones clínicas.
Abstract: This qualitative, descriptive study identified perceptions and knowledge of intensive care unit physicians about limiting life support. Results revealed different understandings and reasons for limiting life support: shared and isolated decision-making; obstacles such as family, professionals, legal issues and unpredictability of death; and specific case reports with benefits, dilemmas, and specificities by clinical picture and age group. Physicians agree on the need to limit life support but lack training on the topic and differences in understanding remain. The multiple reasons for its use and difficulties in decision-making and definition of conduct are permeated by ethical, cultural and personal conflicts, demonstrating the need for better education on the theme at different levels of health professional training.
Keywords: Palliative care, death, intensive care units, clinical decision-making.
Pesquisa
Percepções e conhecimentos médicos sobre limitação de suporte de vida
Percepciones y conocimientos médicos sobre la limitación del soporte vital
Physician perceptions and knowledge about limiting life support
Recepção: 17 Agosto 2022
Revised document received: 22 Março 2023
Aprovação: 28 Março 2023
Os avanços das tecnologias médicas, especialmente a partir do século XX, proporcionaram diversos benefícios à saúde humana, como controle de doenças, diminuição da mortalidade e melhoria da prestação da assistência médica. Contudo, observa-se que o aumento da expectativa de vida nem sempre implica melhor qualidade de vida, surgindo discussões relacionadas à finitude, limites terapêuticos e condição do viver 1 , 2 .
As possibilidades de intervenções terapêuticas em doenças graves ampliaram-se, dificultando determinar o momento em que, tecnicamente, não há mais como ajudar um paciente. Dessa forma, a obstinação terapêutica e a distanásia tornaram-se, cada vez mais, parte das rotinas dos serviços. Assim, em muitos casos, mesmo quando o quadro do paciente tem um prognóstico ruim, o tratamento é mantido até a morte, adicionando terapias para novos diagnósticos e manobras de ressuscitação em caso de parada cardíaca. Atualmente, porém, é permitido aos profissionais lançar mão da limitação do suporte de vida (LSV) durante a assistência nesses casos, considerando o quadro e respeitando a vontade do paciente e de seus familiares, como apresentado no Código de Ética Médica (CEM) 3 , 4 .
A LSV pode ser entendida como a decisão de retirar ou não oferecer suporte avançado de vida para pacientes terminais irrecuperáveis, sem acrescentar tratamento para novas ocorrências clínicas até que sobrevenha o óbito 5 - 7 . Em alguns casos, ela envolve o reconhecimento da inutilidade de tratamentos, e vem sendo discutida como forma de possibilitar uma morte digna aos pacientes, com menos sofrimento e de acordo com as condições em que se encontram 8 .
Apesar de ser uma prática crescente no mundo, especialmente nos ambientes de terapia intensiva, a LSV ainda é cercada de inseguranças e dificuldades no que tange à tomada de decisão para sua adoção e definição de condutas. Unidades de terapia intensiva (UTI) são os locais com maior probabilidade de surgir a necessidade de LSV. A terapêutica de pacientes críticos, frequentemente com capacidade de decisão comprometida, fica a cargo da equipe médica e da família 7 . No contexto da UTI, onde muitos recursos tecnológicos e tratamentos especializados são mais frequentes, além da complexidade e gravidade das doenças, as implicações da morte na relação entre profissional de saúde, paciente e familiares ficam ainda mais evidenciadas 8 , 9 .
Levin e Sprung 10 ressaltam o aumento do emprego da LSV em até 90% nos ambientes de terapia intensiva, o que pode ser explicado devido à maior longevidade da população e ao consequente crescimento da ocorrência de doenças limitantes. Apesar disso, especialmente em UTI, ainda são necessários estudos relacionados ao tema, considerando especialmente questões como autonomia e independência 11 . Levando em conta a complexidade dessa temática, este estudo objetiva identificar percepções e conhecimentos de médicos de UTI sobre a LSV.
Trata-se de estudo descritivo, de abordagem qualitativa, realizado em quatro hospitais maranhenses de gestão pública. A amostra foi de 24 profissionais e teve como critério de inclusão ser profissional médico vinculado aos hospitais investigados com lotação nas UTI dos serviços. Aqueles que estavam de férias e/ou licença foram excluídos, assim como os com menos um ano de experiência em terapia intensiva.
A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário elaborado pelos pesquisadores, a fim de caracterizar o perfil sociodemográfico da amostra (com variáveis relacionadas a questões pessoais, sociais, educacionais, laborais e de hábitos de vida), seguido de entrevista semiestruturada para avaliar as percepções dos profissionais médicos sobre LSV. Em virtude da pandemia de covid-19, a coleta se estendeu de dezembro de 2020 a setembro de 2021.
Os dados coletados foram transcritos na íntegra, e a análise se deu entre setembro de 2021 e janeiro de 2022, à luz do referencial de análise de conteúdo na modalidade temática proposta por Bardin 12 .
A pesquisa segue todos os preceitos éticos contidos nas Resoluções 466/2012 13 e 510/2016 14 , do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Os participantes foram identificados por meio de codificação para garantir anonimato e sigilo das informações. Dessa forma, para composição dos códigos foi utilizada a letra “M” de médico, seguida de algarismos arábicos de acordo com a ordem de entrada no estudo.
A caracterização dos participantes está apresentada na Tabela 1 e indica maioria do sexo masculino, com idade entre 30 e 49 anos e tempo de formação e de atuação em UTI de um a dez anos.

Em relação às falas dos entrevistados, os resultados coletados por meio de entrevista semiestruturada resultaram em três grandes categorias surgidas após análise do conteúdo: “limitar é não instituir terapia inútil”; “existem dúvidas quanto ao uso de LSV na prática”; e “o ensino médico é deficiente na abordagem de LSV e cuidados paliativos na graduação”.
Quando convidados a definir a LSV, os entrevistados demonstraram diferentes compreensões sobre o que a prática representa. Para a maioria, trata-se de uma limitação com diferentes possibilidades. Entretanto, uma minoria ainda a associa à suspensão total de suporte terapêutico.
“Limitar é deixar de oferecer um suporte que não tem mais benefício. É retirar o que se tornou fútil naquele momento e para aquele paciente” (M16).
“É a falta de suporte medicamentoso e aparato de equipamentos e procedimentos auxiliares” (M7).
“Limitar é retirar procedimentos desnecessários, mas não é retirar tudo. Somente o que não tem benefício. É relativo. O que é desnecessário para esse pode ser necessário para outro. Então, são diferentes decisões” (M24).
“É quando o paciente é considerado terminal e todo suporte é suspenso para deixar ele morrer pela doença que ele tem” (M21).
De certa forma, as falas dialogam com o conceito de LSV, que consiste em reconhecer a inutilidade do tratamento. A prática vem sendo apresentada como forma de possibilitar morte digna aos pacientes, diminuindo o sofrimento e considerando suas condições. Como apontado por alguns entrevistados, ela compreende decisões clínicas como retirar ou não oferecer suporte avançado de vida e manter medidas vigentes, sem acrescentar tratamento para novas ocorrências clínicas até que sobrevenha o óbito 8 .
Não se pode ignorar que algumas falas interpretam a LSV como uma espécie de abandono terapêutico. Porém, destaca-se que a limitação terapêutica, se necessária, deve ser compreendida como uma medida para preservar a dignidade do paciente, e não como uma forma de abandono ou negligência 15 . Apesar dessas divergências, todos os entrevistados entendem que a LSV se aplica a pacientes com doenças limitadoras, para as quais não existe possibilidade terapêutica curativa.
“(…) a limitação do suporte de vida é para um quadro irreversível, sem tratamento (…)” (M14).
“Quando o paciente tem um quadro clínico que não é mais viável, a gente entende que precisa limitar o suporte, porque se tratar não vai mudar o quadro do paciente” (M23).
A adoção da LSV decorre do princípio de redução de danos indesejados a pacientes em fase terminal e se baseia na premissa de que o processo de morrer é atribuível à doença que aflige o paciente, e não aos atos de retenção ou retirada, o que é diferente de causar-lhe a morte. Nesses casos, uma vez que os danos superam os benefícios, a forma de tratamento precisa mudar para cuidados de conforto em detalhes meticulosos 16 , 17 .
As sociedades europeias de medicina intensiva inclusive reconhecem a necessidade de limitar tratamentos que prolonguem a vida quando a situação clínica é irreversível e a terapia parece fútil ou desaconselhável 18 , 19 .
Destaca-se que os entrevistados se referem a esses pacientes de maneira bem variada, o que demonstra que, na prática, os profissionais utilizam diferentes terminologias para definir essa condição.
“(…) um paciente que já não é mais viável ou que vai virar um vegetal” (M4).
“(…) sem perspectiva de melhora” (M5).
“(…) a pacientes sem possibilidade de recuperação clínica” (M8).
“(…) quando o paciente é terminal” (M10).
“No caso de pacientes sem prognóstico (…)” (M12).
“(…) nos quadros irreversíveis e sem perspectiva” (M18).
“(…) aquele paciente incurável, em estado vegetativo (…)” (M23).
Por ser um tema muito delicado e cercado por discussões e polêmicas, diferentes eufemismos e terminologias são adotados para referir processos de finitude no contexto da saúde, e isso é perceptível não só na fala de profissionais, mas também na própria produção acadêmica, que apresenta grande diversidade de termos para essas condições.
Ao serem convidados a falar sobre a indicação de medidas de LSV, os entrevistados revelaram que essa tomada de decisão envolve diferentes posturas. Para alguns, trata-se de uma decisão médica isolada, enquanto outros definem-na como algo que deve ser compartilhado com a equipe de saúde, os familiares e, se possível, até o próprio paciente:
“É uma decisão que deve ser tomada com a equipe multiprofissional, os familiares e o paciente, quando possível. Se as coisas acontecessem dessa forma, eu acho que 98% das famílias aceitariam” (M4).
“A decisão pela limitação terapêutica é uma decisão médica. Então, você fica pensando nessa responsabilidade. Está morrendo? Está? Mas, nesse caso, teve uma intervenção sua. Tem que ponderar muito” (M22).
A decisão pela LSV não é fácil de ser tomada, pois esbarra em dilemas éticos centralizados na mão de um único profissional: o médico. São decisões que não costumam ser compartilhadas entre a equipe de saúde e a família 20 , entretanto, devem ser tomadas em conjunto pelo corpo médico e multiprofissional, junto ao núcleo familiar do paciente. Todos os envolvidos precisam estar informados, orientados e em consenso, em paz e à vontade com a conduta 20 , 21 .
De acordo com Araújo e Leitão 22 , cuidadores familiares são percebidos como recursos em benefício do indivíduo doente, mas frequentemente não recebem a devida atenção da equipe de saúde, que negligencia a necessidade de auxílio e apoio também por parte do cuidador.
Ao falarem sobre a indicação da LSV, os entrevistados dividiram suas opiniões em relação a sua instituição durante a prática na UTI. Alguns relataram não ter indicado a nenhum paciente, mas revelaram não ser contrários ao seu uso; outros se mostraram a favor, mas descreveram suas decisões com diferentes estímulos; e houve ainda aqueles que indiretamente demonstraram não concordar com a prática.
“Depende muito da rotina da UTI, eu particularmente não sou contra, mas nunca cheguei a indicar, pois não é essa a rotina aqui. O máximo que fiz foi trocar uma medicação” (M20).
“Eu vejo o ser humano como uma máquina, se ele não é viável pra mim, não é que ele precisa ser eliminado, mas se ele não é mais viável, não tem porque ficar investindo recursos em uma coisa que você sabe que não vai dar certo” (M4).
“Essencial, acho que tem que se praticar porque na unidade de terapia intensiva você sempre vai ter pacientes que precisam de cuidados paliativos, apesar de a maioria a gente desejar que seja de cuidados curativos, nem sempre isso é possível” (M2).
“Existe limite na nossa prática, isso é necessário. Tem casos [em] que se evita uma tortura ao paciente, entende? É uma questão de empatia” (M19).
“Eu não tenho como ter certeza do que vai acontecer, porque tem gente que surpreende, e temos muitas possibilidades na UTI. Retirar os procedimentos é uma carga muito grande. É como desistir, abandonar. Prefiro insistir e ver o resultado” (M21).
Salins e colaboradores 17 destacam que ainda há uma considerável variabilidade de decisões em todo o mundo quanto a limitar/retirar terapias de suporte à vida. Downar e colaboradores 16 destacam que nos países não desenvolvidos e em desenvolvimento, essas decisões são ainda menos frequentes.
Ao se deparar com os processos de morte nos cuidados ao fim de vida, que requerem decisões acerca dos limites terapêuticos, embora as características do paciente possam facilitar o seu prognóstico a partir do declínio progressivo da sua condição clínica durante sua última etapa de vida, são comuns os casos de obstinação terapêutica na UTI 23 .
A dificuldade para determinar quando a pessoa está morrendo, em seus últimos dias ou semanas de vida, pode também influenciar as atitudes e frustrar ainda mais a tomada de decisão sobre oferta, limitação ou retirada de suporte de vida. Prever o fim da vida é muitas vezes impreciso, e ferramentas e modelos de prognóstico atuais ainda são limitados. No entanto, é crucial minimizar essa incerteza para garantir que ela não impeça decisões importantes entre profissional de saúde, sujeito terminal e aqueles que são importantes para ele 23 , 24 .
Também houve divergência de opiniões quanto ao momento certo de instituir a LSV segundo os profissionais. Para alguns, a LSV deveria acontecer antes de o paciente chegar à UTI e, no caso em que já estivesse na UTI, deveria ser instituída o mais cedo possível. Outros acham que essa deve ser a última decisão da equipe, devendo ser praticada quando o paciente já está em fase ativa de morte.
“Um paciente com prognóstico reservado nem deveria chegar pra nós. A limitação devia iniciar lá fora, não enviando o paciente pra cá” (M15).
“Se for um caso em que o paciente já está em processo ativo de morte, acho que podemos limitar alguns procedimentos. Ele já está morrendo, então não faz diferença” (M10).
“O paciente que chega terminal, que já vem com alguma doença irreversível, sabe? Muitas vezes a gente já sabe o final. Então, já deve pensar nas limitações que vão ajudar a melhorar esse final” (M9).
A bioética é fundamental para auxiliar os profissionais de saúde a melhor encarar os conflitos dos cuidados de fim de vida, podendo facilitar e fundamentar tomadas de decisão na medida em que as questões morais forem apropriadamente consideradas 3 .
Os médicos de UTI enfrentam cada vez mais decisões difíceis sobre a continuação dos tratamentos para manutenção da vida e, nessas situações, tem-se escolhido suspender as medidas de suporte à vida quando os pacientes pioram ou até mesmo retirá-las depois de já iniciadas uma vez que o prognóstico a curto prazo é ruim 25 .
Em estudo de 2012 sobre intervenção de cuidados paliativos implementado pelo Centro de Câncer Clínico Emily Couric da Universidade da Virgínia, Romano e colaboradores 26 concluíram que a introdução precoce de cuidados paliativos reduz significativamente as admissões à UTI no final da vida e leva a menos mortes no hospital ou na UTI, evidenciando que cuidados paliativos exercem maior influência quando aplicados precocemente e podem orientar o cuidado dos pacientes para seus objetivos finais, evitando que lidem com as consequências de internações não intencionais em terapia intensiva. Entretanto, um fator que pode ser decisivo para esse encaminhamento precoce é a formação do médico 27 .
Os cuidados de fim de vida devem começar quando necessários, e podem durar alguns dias, meses ou anos. Pessoas em diferentes situações podem se beneficiar de tais cuidados: enquanto alguns podem morrer nas próximas horas ou dias, outros recebem esses cuidados durante muitos meses 28 .
Quando favoráveis à indicação da LSV, os entrevistados relatam tomar a decisão considerando benefícios como dignidade, conforto, alívio do sofrimento, controle da dor e suspensão de medidas fúteis. Nesses discursos, o termo cuidado paliativo emergiu em diversas falas como uma prática que sustenta as decisões de limitar os procedimentos dos pacientes sem possibilidades de terapia curativa.
“A questão aqui seria amenizar o sofrimento do paciente, ter cuidado com o suporte de dor, suporte psicológico da família. Não é mais uma questão curativa, mas uma questão de paliação mesmo, cuidados paliativos” (M2).
“Ao limitar, a gente deixa de oferecer procedimentos que vão prolongar um sofrimento e não vão mudar o prognóstico. É um cuidado paliativo. A gente dá conforto para o paciente, e só usa procedimentos que permitam isso, o conforto” (M24).
“Não tem por que manter esse ser humano sem qualidade de vida nenhuma, podendo ter infecções repetitivas, internações repetitivas” (M4).
O dever do profissional médico é mitigar o sofrimento, o que inclui curar algumas vezes, aliviar muitas vezes e confortar sempre. Não existe exceção a esse princípio quando a doença é incurável e a morte é iminente, haja ou não consenso médico. Intervenções médicas indiscriminadas e agressivas em tais situações violam o direito do indivíduo de viver e morrer com dignidade. Os procedimentos médicos devem, portanto, ser limitados quando há consenso, entre os profissionais de saúde, de que a continuação do tratamento causaria mais danos que benefícios 29 .
Os que não são favoráveis ou não realizam a LSV em sua prática assistencial relataram desconforto diante dessa tomada de decisão e destacaram alguns motivos que dificultam sua indicação, como a equipe, a rotina do serviço, complicações jurídicas e até as suas próprias crenças intervencionistas.
“É uma decisão difícil, não dá pra ter certeza do que vai acontecer. Eu tenho por obrigação lutar pelo paciente” (M21).
“Isso é procurar problemas pra vida da gente. Essa história de tirar o tratamento é pedir para ser processado pela família. E não existe legalização para isso. É problema (…)” (M13).
“Às vezes eu acho que seria melhor, mas a família nunca aceita, a equipe, assim, tem muitos que não aceitam. Não é nossa rotina” (M20).
Apesar dessas posições, a LSV é prática legal no Brasil, garantida pela publicação da Resolução CFM 1.805/2006 30 e pelo CEM de 2019 4 , ambos do Conselho Federal de Medicina (CFM), que dão respaldo ao médico para limitar ou suspender procedimentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, respeitada a vontade da pessoa ou a de seu representante legal. O médico deve esclarecer as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação, registrar a decisão em prontuário, assegurar ao doente e a sua família o direito a uma segunda opinião médica e continuar prestando assistência integral para alívio do sofrimento 7 .
Dentre os empecilhos, a família merece especial destaque, uma vez que, de acordo com os relatos dos profissionais, eles influenciam em grande medida a tomada de decisão, até mesmo dos profissionais que são favoráveis à LSV. Para os entrevistados, a família é movida por sentimentos pessoais e tem dificuldades para concordar com limitações de suporte, chegando a agredir e/ou ameaçar os profissionais quando sondados sobre a possibilidade:
“As pessoas esperam que a gente faça tudo para salvar os pacientes. Uma vez eu fui sondar a família. Era uma paciente sem jeito mesmo. Eles sabiam, e ela estava sofrendo. Mas aí me ameaçaram e até me levaram para a ouvidoria” (M13).
“Geralmente alguns problemas acontecem com os acompanhantes em relação ao entendimento dessa prática (…) são cheios de sentimentos pelo seu ente querido, ele é apegado sentimentalmente, então às vezes tem alguns problemas” (M4).
“A família tem apego ao paciente, tem esperanças. A gente sabe que é por apego, que não conseguem ver o sofrimento do paciente como prioridade. É incômodo, mas eles não aceitam e a gente respeita a decisão deles (…)” (M17).
A família geralmente não aceita que a impossibilidade de recuperação, assim, insiste na manutenção dos tratamentos, na expectativa de uma cura irreal 31 .
Por vezes há o reconhecimento da importância da família e seus valores, mas, em caso de opiniões discordantes, a decisão médica prevalece. Segundo os profissionais, a família dificilmente concorda com o diagnóstico de terminalidade por causa do envolvimento emocional, então tende a decidir pelo que seria melhor para si e não para seu ente querido 7 .
Quando o paciente já não tem capacidade de decidir e a LSV é comunicada à família, é comum que ela insista na manutenção fútil, mas mesmo diante dessa obstinação as medidas terapêuticas não devem ser mantidas indefinidamente, pois isso provocaria agressão desnecessária ao paciente, o que não é um dever nem objetivo médico 32 .
Em relação aos familiares e à sua interferência na tomada de decisões, alguns profissionais destacaram que o nível de formação e o tempo de acompanhamento do paciente influencia positivamente na aceitação de alguns acompanhantes quanto à adoção de LSV:
“Quando o acompanhante tem um nível de conhecimento melhor e é mais orientado, a gente percebe que ele entende e compreende que é o melhor a se fazer” (M4).
“Às vezes a família acaba cedendo, com o tempo vão perdendo as esperanças, com o tempo conseguem perceber que existe um sofrimento grande para eles e para o paciente (…)” (M17).
Para que a família aceite a morte como parte da vida, os profissionais devem atuar efetivamente, buscando minimizar o sofrimento de ambas as partes, família e paciente. Cabe à equipe esclarecer dúvidas, encorajar atitudes positivas e, sobretudo, ser sincera e acessível, pois um núcleo familiar desorientado dificulta o processo, enquanto uma família consciente dos benefícios da prática oferece apoio para paciente e equipe 33 .
A compreensão sobre possíveis vantagens dos cuidados paliativos exige tempo e acesso a informações claras. Dependendo de como a equipe apoia esse processo, as motivações do cuidado são percebidas pela família, desenvolvendo progressivamente confiança e cumplicidade mútuas 34 .
Vale notar, porém, que diferenças de ética, religião, cultura e capacidade preditiva dificultam a formulação de uma abordagem consistente para a limitação do tratamento na doença crítica 25 .
Alguns entrevistados que já indicaram a LSV para seus pacientes descreveram a experiência por meio dos procedimentos que foram evitados ou suspensos, falando sobre como realizaram essa prática.
“É retirar ou limitar o suporte com drogas vasoativas, exames de rotina, medicamentos, procedimentos invasivos, suporte avançado de vida (…)” (M11).
“(…) é terminal! Então mantém alimentação, controla a dor, deixa a medicação necessária, e o resto a gente vai retirando. Se não tá prescrito, não passa, sabe? Tipo CVC, diálise, cirurgia (…)” (M16).
“Desintubação, interrupção de drogas vasoativas, e suspensão de diálise (…)” (M6).
“São situações em que a gente não vai instituir medidas invasivas, monitorização, exames diários e às vezes até antibióticos, e principalmente não reanimar” (M24).
Em pesquisa realizada com médicos intensivistas do Brasil, Argentina e Uruguai, registrou-se que mais de 90% dos participantes já haviam realizado limitação ou retirada de algum tipo de suporte artificial de vida, sendo reanimação cardiorrespiratória, administração de drogas vasoativas, métodos dialíticos e nutrição parenteral as terapias mais frequentemente suspensas ou limitadas 35 , 36 .
Em estudo prospectivo multicêntrico sobre a limitação das técnicas de suporte de vida na admissão na UTI, foram avaliadas retirada e limitação de ressuscitação cardiopulmonar, intubação endotraqueal, ventilação não invasiva, drogas vasopressoras, diálise e/ou transfusão de hemoderivados. Os achados revelaram que a suspensão ou retirada de medidas invasivas foi mais frequente, enquanto decisões para limitar medidas não invasivas de suporte de vida foram menos constantes e quase sempre envolveram a não oferta ao invés do tratamento 37 .
O uso da limitação é descrito como uma escolha centrada na realidade de cada paciente, considerando seu quadro e suas necessidades e respeitando sua história de vida.
“Mesmo que a gente monte uma estratégia, a mesma estratégia jamais vai ser igual para cada pessoa. Normalmente a gente monta uma estratégia e vai adequando para cada caso (…). Eu vejo mais pelo lado do próprio paciente ou como ele viveu, para saber qual o limite para esse paciente (…)” (M3).
“Quando a equipe entende que deve limitar, procuro escolher as medidas de acordo com as necessidades daquele paciente e vou adaptando aos diferentes momentos que ele vai experimentando (…) no final já suspendi tudo” (M21).
Uma mudança do quadro clínico do paciente requer um redimensionamento do planejamento terapêutico, com reavaliação do que pode ser melhor para o indivíduo. Na UTI, a presença de um grande arsenal terapêutico leva, por vezes, o intensivista a se perder na ponderação entre benefício e malefício. Respeitar ao máximo a autonomia e o desejo do paciente exige reflexão contínua, na medida em que auxilia a definir o melhor a fazer em um caso específico 17 , 38 .
Os entrevistados revelam ainda que, ao limitarem o suporte de vida, percebem benefícios não só para o paciente, mas também para os familiares, que, em decorrência dos acompanhamentos prolongados do paciente em distanásia, sofrem sobrecarga e prejuízos.
“(…) são pacientes que sofrem muito, então seria um meio de diminuir o sofrimento deles e o sofrimento de seus familiares” (M1).
“Não é só o paciente, tem todo um contexto envolvido, tem uma família, pessoas perdendo emprego. É um contexto muito grande para que esse paciente tenha um suporte, e você vai estar dando suporte a uma coisa que não é mais viável em termos orgânicos e nem em termos sociais” (M4).
“A família tem que abdicar de muita coisa para estar ali com um paciente que não é mais viável. Então, ao limitar a gente ajuda a aliviar essa carga desnecessária” (M17).
A obstinação terapêutica não pode ser vista apenas como um tratamento fútil e desnecessário. É preciso enxergar os malefícios que ela traz para pacientes, em termos de sofrimento, e para familiares, que são obrigados a abandonar rotina, lar, emprego e outros parentes para acompanhar um paciente cujo prognóstico, independentemente dos investimentos, é a morte 39 .
Da experiência com a LSV, alguns entrevistados destacaram sentimento de frustração e culpa como resultado de situações específicas, e alguns casos traziam nas entrelinhas a crença de que essa prática de limitar significa desistir do paciente.
“Eu fiquei arrasado. A filha falava que ela sempre disse que não queria ser intubada, todo mundo reconhecia isso, mas eles não aceitaram (…) então quando passei o tubo me senti ferindo a vontade dela” (M17).
“Conversamos com a família e havia consenso de não reanimar, mas quando ele parou, a mãe se desesperou… ela tentava reanimar, gritava para fazer alguma coisa (…) fiquei vários dias com um peso, sabe? Eu devia ter reanimado. Era a dor dela na minha cabeça” (M23).
“A equipe do dia deixou registrado e a noite, quando ela parou, eu fiquei na dúvida, eu não estava preparada para ficar ali parada. Eu saí arrasada. (…) sabe? Sensação de que não fiz o meu papel” (M12).
Existem vários sentimentos atrelados a prática de LSV entre os profissionais médicos em que a insegurança e a culpa aparecem, por diversos motivos, pois existe um choque de paradigmas e verdades que envolvem valores morais, culturais, éticos e religiosos de vida e morte 39 , 40 .
Ainda sobre a experiência com a LSV, alguns depoimentos insinuaram que a idade do paciente também faz emergir reações de desconforto e incômodo, que parecem estar relacionadas com a dificuldade de aceitar a morte de crianças e jovens.
“Já determinei não reanimar para idosos, e não foi fácil, pois a gente não quer que ninguém morra, mas quando foi com jovens, eu senti um peso maior. É mais difícil falar ‘Deixa morrer’. Entende?” (M14).
“Aqui não tem a UTI Ped, e a gente atende as crianças… Sabe aquela coisa de não querer a morte? Na criança é pior. Muito pior. (…) quando eu percebo que é inviável, eu sinto um certo desconforto, sabe?” (M19).
São muitas as dificuldades relatadas em diferentes publicações quanto à compreensão e enfrentamento da morte em pacientes pediátricos. Há muitas dúvidas e dificuldades em relação às decisões do fim da vida para crianças, principalmente em definir até onde deve ir o esforço curativo, por questões afetivas, ideológicas e outras. Assim, muitas vezes a manutenção de tratamentos e procedimentos fúteis prevalece, em detrimento do conforto das crianças que inevitavelmente morrerão 39 .
Embora alguns relatem preparação com algum tipo de formação, segundo os entrevistados, na maioria das vezes a experiência com a LSV emerge da prática. Destacam preparo insuficiente na graduação e questionam a falta de investimentos das instituições para educação permanente de cuidados paliativos, assim admitindo que o aprendizado surge com as demandas de cada caso.
“Durante a graduação em medicina não tive contato. No entanto, eu fiz uma pós-graduação em terapia intensiva e lá nós tivemos uma disciplina voltada para este conteúdo, foi muito bem ministrada. Lá nós tivemos contato com médicos, psicólogos e simulação com atores” (M1).
“Nunca tive aula de cuidados paliativos. Nem na residência, pois quando fiz nem se falava disso. Fui aprendendo aqui na UTI, quando começaram a discutir essas questões. Foi aquele aprender fazendo” (M18).
“Hoje em dia, você tem que aprender porque é uma situação que vai aparecer, entende? Em nenhum lugar te ensinam, nem no próprio hospital. Mas o paciente te ensina (…) eu fui fazendo, pois era preciso… fui aprendendo ali” (M19).
Os profissionais de saúde costumeiramente lidam com situações de morte, mas não contam com formação suficiente sobre o tema 41 . Além disso, muitos médicos entendem que cuidados paliativos significam cuidados terminais, o que aumenta o risco de encaminhamento tardio, implicando não envolvimento com práticas de LSV 27 , 42 .
Em estudo sobre LSV, Forte 36 encontrou que os entrevistados que retirariam SAV mais frequentemente participaram de cursos ou palestras relacionados a fim de vida ou cuidados paliativos em UTI, leram artigos ou textos sobre tais temas, exercem medicina intensiva como atividade principal e têm interesse em participar de discussões acerca dessas questões em UTI. Assim, é necessário que instituições formadoras em saúde invistam na capacitação dos alunos, a fim de fomentar não apenas o desenvolvimento de habilidades técnicas assistenciais, mas interpessoais, como empatia, congruência, acolhimento e diálogo, fundamentais para o cuidado humano, sobretudo diante da morte 43 .
O mundo registra aumento na frequência de LSV em pacientes críticos, sugerindo uma tendência de aceitação crescente sobre a realidade dos tratamentos fúteis. Porém, entre os entrevistados, a compreensão sobre a limitação transita entre 1) prática que visa possibilitar uma morte digna ao paciente; 2) prática que deve ser adequada ao quadro e necessidade do paciente; e 3) abandono terapêutico, tornando a percepção do momento um critério para indicar retirada, limitação e não oferta.
Há consenso de que a LSV é indicada a pacientes em fim de vida, e ao mesmo tempo existem inseguranças relacionadas às dificuldades para prognosticar a morte, o que dificulta a tomada de decisão. Nesse processo de escolha, surgem ainda divergências sobre o grau de compartilhamento da decisão médica (se deve ser isolada ou dividida com equipe de saúde, pacientes e familiares), embora as falas relatem apenas situações nas quais a interferência familiar foi dificultadora, não participativa.
A não aceitação da família foi criticada e, ao mesmo tempo, admitiu-se que familiares mais conscientes aceitam o processo com mais facilidade, implicando a necessidade de comunicação e orientação entre esse grupo e os profissionais. De acordo com as experiências junto aos familiares, mesmo quando apoiam a LSV, surgem sentimentos de insegurança e culpa relacionados à morte e a reações de outros parentes.
Ainda, existe consenso sobre a falta de preparo na formação: os entrevistados afirmam que a experiência com a LSV emerge da prática ou de cursos de educação permanente.
Logo, percebe-se a necessidade de investir na educação sobre o tema nos diferentes níveis de formação dos profissionais de saúde, para que as condutas de LSV sejam indicadas no momento adequado, utilizadas de maneira correta e praticadas com segurança. Deve-se, também, preparar tais profissionais para informar adequadamente pacientes e familiares quanto às possibilidades de LSV, permitindo sua autonomia na tomada de decisão.
Natasha Fiterman Rodrigues – Graduada – natashafiterman@gmail.com
Amanda Namíbia Pereira Pasklan – Doutora – amanda.namibia@ufma.br
Julia Bacelar Barros – Especialista – jubacelar@me.com
Vanise Barros Rodrigues da Motta – Especialista – vanisemotta@gmail.com
Sara Fiterman Lima – Doutora – sara.fiterman@ufma.br
Correspondência: Sara Fiterman Lima – Av. Colares Moreira, 14, Edifício Leblon, ap. 501 A CEP 65075-441. São Luís/MA, Brasil.
