Resumo: A infecção congênita pela sífilis é uma doença que, apesar dos esforços públicos, ainda se mantém na rotina do sistema de saúde. Embora haja métodos de prevenção efetivos e muito disseminados, tratamento com alto custo-benefício e disponível no Sistema Único de Saúde, além de assistência pré-natal com alta cobertura, as taxas epidemiológicas da enfermidade continuam relevantes e preocupantes. Umas das barreiras à erradicação desse cenário é a recusa terapêutica da genitora. Com isso, indagações importantes são levantadas, como a responsabilidade médica em relação à recusa, a responsabilidade da gestante para com o nascituro e as implicações jurídicas que perpassam essa problemática. O propósito deste artigo é responder a essas questões e suas repercussões bioéticas e jurídicas.
Palavras chave: Feto, sífilis congênita, relações materno-fetais, cooperação e adesão ao tratamento, direitos do paciente.
Resumen: La sífilis congénita es una enfermedad que aún sigue en la rutina del sistema de salud a pesar de los esfuerzos públicos. Aunque existen métodos de prevención efectivos y generalizados, los tratamientos con alto costo-beneficio y disponibles en el Sistema Único de Salud, además de la atención prenatal con alta cobertura, las tasas epidemiológicas de la enfermedad siguen siendo relevantes y preocupantes. Una de las barreras para su erradicación es el rechazo terapéutico de la madre. Por lo tanto, se plantean cuestiones importantes, como la responsabilidad médica con relación al rechazo, la responsabilidad de la mujer embarazada por el feto y las implicaciones legales que impregnan este problema. El propósito de este artículo es responder a estos interrogantes y sus repercusiones bioéticas y legales.
Palabras clave: Feto, sífilis congénita, relaciones materno-fetales, cumplimiento y adherencia al tratamiento, derechos del paciente.
Abstract: Despite public policies, congenital syphilis infection remains a reality in the health system routine. Moreover, its epidemiological rates continue to be relevant and worrisome despite widespread and effective preventive methods, highly cost-effective treatments available in the Unified Health System, and high-coverage pre-natal care. A major obstacle to eradicating this scenario is treatment refusal by the progenitor. Important questions regarding medical responsibility in relation to refusal, the pregnant woman’s responsibility towards the unborn child, and the legal implications involved arise from this context. This article seeks to answer these questions and their legal and bioethical repercussions.
Keywords: Fetus, syphilis, congenital, maternal-fetal relations, treatment adherence and compliance, patient rights.
Pesquisa
Sífilis congênita e recusa terapêutica da gestante: análise jurídica e bioética
Sífilis congénita y rechazo terapéutico por las mujeres embarazadas: análisis legal y bioético
Congenital syphilis and treatment refusal by pregnant women: a bioethical and legal analysis
Recepção: 06 Julho 2021
Revised document received: 18 Outubro 2022
Aprovação: 19 Janeiro 2023
A sífilis é uma doença infecciosa de caráter sistêmico que pode ser transmitida por contato sexual ou via vertical (materno-fetal) 1- 3. Se não tratada, pode evoluir cronicamente e provocar danos irreversíveis ao indivíduo acometido 4.
No Brasil, em 2019, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) 5, foram notificados quase 153 mil casos de sífilis adquirida, aproximadamente 61 mil casos de sífilis em gestantes e mais de 24 mil casos de sífilis congênita (transmitida da gestante infectada para o feto). Em cerca de 40% dos casos, a infecção materna pode resultar em perda fetal por aborto espontâneo, natimortalidade e óbito 6, 7. Naquele mesmo ano, a taxa de incidência de sífilis congênita foi de 8,2 casos para 1.000 nascidos vivos, e a prevalência de sífilis em gestantes, 1,6% 3, 5. Além disso, entre 1998 e 2019, foram registrados 2.768 óbitos por sífilis congênita em menores de um ano 5.
Estima-se que 60% a 90% dos recém-nascidos com sífilis congênita não apresentem manifestações clínicas no nascimento 8. Entretanto, a sífilis congênita precoce, manifestada até os 2 anos de idade, pode ocasionar prematuridade, baixo peso ao nascer, lesões mucocutâneas, anormalidades ósseas, hepatoesplenomegalia, pseudoparalisia dos membros, sofrimento respiratório, rinite serossanguinolenta, acometimento do sistema nervoso central, anemia, icterícia e linfadenopatia generalizada. A forma tardia da doença, após os 2 anos, manifesta-se por lesões osteoarticulares, deformidades dentárias, surdez neurológica, ceratite intersticial, hidrocefalia e retardo mental 2, 9.
Para prevenir a sífilis congênita, é necessário tratar adequadamente a gestante infectada e seu parceiro, o que implica garantir acesso ao cuidado pré-natal 9. Este possibilita detectar precocemente a doença na gestação, permitindo instituir a terapêutica adequada e impedindo a transmissão materno-fetal 10, 11. Nessa perspectiva, o Ministério de Saúde construiu, ao longo de décadas, políticas públicas direcionadas ao combate da sífilis congênita, por meio da assistência e do acompanhamento pré-natal 12.
No Sistema Único de Saúde (SUS), o acompanhamento pré-natal é responsabilidade da Atenção Primária à Saúde (APS) e deve ser iniciado até a 12ª semana de gestação 3. Para os casos de sífilis, a gestante é considerada adequadamente tratada se finalizar o tratamento com penicilina até pelo menos 30 dias antes do parto, de acordo com o estágio da doença materna, sendo o parceiro tratado concomitantemente 13, 14.
Contudo, a adesão ao pré-natal não tem se mostrado plena, de modo que em 2018, entre as mães das 26.531 crianças diagnosticadas com sífilis congênita, 13,4% não o tinham realizado 5. Ainda, sobre o tratamento materno, apenas 5% receberam tratamento adequado, 55,1% foram tratadas inadequadamente, 26,5% não realizaram tratamento e 13,3% foram ignoradas 5.
Não somente a ausência de acompanhamento pré-natal, mas o retardo em seu início submetem o nascituro a potenciais riscos à saúde, como maior tempo de exposição ao Treponema pallidum, aumentando o risco de complicações 6, 13. Em adição, a recusa ao tratamento da sífilis pela gestante constrói um cenário mais grave, visto que, dependendo da fase clínica da doença, o risco de transmissão pode chegar a 100% 15, 16.
Na relação materno-fetal, o médico deve considerar as implicações de sua conduta e dos procedimentos empregados tanto para a gestante quanto para o nascituro, avaliando os riscos para ambas as vidas, observando os princípios bioéticos de beneficência e não maleficência 17, 18.
A atuação médica responsável é fundamental para garantir os direitos do nascituro, já que o profissional está em contato próximo com a gestante e detém instrumentos técnicos para avaliar a saúde materna e fetal, exercendo importante papel nos possíveis conflitos desse binômio 18- 21.
Diante da gravidade dos danos provocados pela sífilis, que podem vitimar o nascituro, e da elevada incidência de sífilis na gestação, persistem as dúvidas a seguir:
Qual a responsabilidade do médico na assistência à saúde da gestante e do nascituro em uma eventual recusa terapêutica materna?
Quais as responsabilidades da gestante para com o nascituro?
Quais as implicações jurídicas (para médico e paciente) perante a ausência voluntária da paciente ao acompanhamento pré-natal ou diante da recusa terapêutica em casos de sífilis?
Este artigo tem o objetivo de discutir a recusa terapêutica da gestante, especialmente nos casos de sífilis, e as repercussões bioéticas do conflito materno-fetal. Pretende-se, ainda, apontar os direitos do nascituro, a responsabilidade da gestante para com o concepto e a responsabilidade médica segundo a legislação brasileira nessa situação.
A relevância do tema para a saúde pública, aliada à escassa literatura científica acerca dos deveres dos participantes do desenvolvimento saudável do feto, justifica essa discussão, permitindo sanar eventuais dúvidas de profissionais de saúde a respeito do assunto.
Trata-se de revisão narrativa da literatura, a partir de levantamento bibliográfico on-line nas bases de dados SciELO, Google Acadêmico e LILACS, em documentos oficiais do Ministério da Saúde (MS) e do Conselho Federal de Medicina (CFM), na legislação brasileira e em livros acadêmicos. Os descritores utilizados foram: “direitos do nascituro”, “sífilis congênita”, “ maternal-fetal conflict”, “ fetal patient”, “ congenital syphilis” e “ refusal of treatment”.
Os critérios para inclusão foram: 1) disponibilidade eletrônica do texto completo; 2) publicação em língua portuguesa ou inglesa; e 3) textos publicados entre 2000 e 2020. A pesquisa retornou 219 artigos, dos quais 20 atendiam aos critérios propostos. Após a leitura exploratória, seletiva e interpretativa do arsenal literário acumulado, os dados foram analisados. As informações construídas foram apropriadamente referenciadas e citadas, respeitando os aspectos éticos e preservando a autenticidade das opiniões.
A recusa terapêutica é a objeção do paciente ao tratamento médico necessário e decorre do princípio de autonomia da vontade. Assim, o paciente maior e capaz pode declinar do tratamento proposto para seu caso.
O entendimento e o respeito a esse princípio já se encontram consolidados na prática médica, como confirmam alguns artigos do Código de Ética Médica (CEM) 22. Entretanto, em situações que envolvem menores ou incapazes, ainda não há consenso sobre qual princípio deve prevalecer: autonomia ou beneficência. No que se refere à sífilis, essa discussão, evidenciada durante o acompanhamento pré-natal, surge quando a gestante recusa a terapia ou negligencia sua prática, colocando em risco a vida do nascituro.
Para minimizar os riscos de recusa ou negligência terapêutica, é fundamental o pré-natal abrangente e efetivo, de modo a garantir o acolhimento e o acompanhamento da gestante, a realização de exames diagnósticos, a oferta do tratamento adequado e a vinculação da paciente à unidade de saúde e à maternidade 9, 23. No Brasil, apesar dos avanços na assistência nessa fase da vida da mulher, os números da sífilis gestacional e congênita permanecem preocupantes.
Em coorte nacional realizada entre 2011 e 2012 com 23.894 gestantes, obteve-se prevalência de 1,02% de sífilis na gestação, com índice maior em grávidas que não fizeram o acompanhamento (2,5%) e que utilizaram o serviço público na atenção ao parto (1,37%) 24. Quanto à sífilis congênita, entre 2011 e 2012, a incidência estimada foi de 3,51 casos por 1.000 nascidos vivos. Foram identificados 246 casos de sífilis gestacional e 84 casos de sífilis congênita, com taxa de transmissão vertical estimada em 34,3% 25.
A realidade da doença no país é agravada pela recusa ou omissão de gestantes ante o tratamento apropriado. Em estudo de metanálise e revisão sistemática, Gomez e colaboradores 26 analisaram as estimativas de resultados adversos da gravidez entre gestantes com sífilis não tratada e gestantes sem sífilis. O percentual de eventos adversos da gestação em grávidas sifilíticas alcançou 66,5%, ao passo que em grávidas sem sífilis chegou a somente 14,3%.
As mortes neonatais e a mortalidade durante o primeiro ano de vida apresentaram maior frequência em gestantes sifilíticas não tratadas em comparação àquelas sem a doença, mostrando-se 9,3% e 10% mais frequentes, respectivamente. Em adição, mortes fetais e natimortalidade também evidenciaram maior frequência em grávidas com sífilis não tratada, alcançando estimativa de 25,6%, em comparação a 4,6% naquelas sem sífilis. Prematuridade ou baixo peso ao nascer também foram mais frequentes em filhos de gestantes com a doença em comparação aos de mães sem sífilis (frequência 5,8% maior) 26.
Ohel e colaboradores 27 compararam a ocorrência de efeitos adversos durante a gestação e o parto entre gestantes que não se submeteram ao tratamento e aquelas que o fizeram. Entre outras, as seguintes complicações obstétricas durante a gestação e o parto foram maiores para a população de grávidas que recusaram intervenções médicas em relação ao grupo-controle: parto prematuro (18,6% para 8,1%), malformações fetais (8,2% para 4,1%), mortalidade perinatal total (3,3% para 1,5%), descolamento prematuro de placenta (1,8% para 0,8%), mortalidade intraparto (0,8% para 0,1%) e hemorragia pós-parto (0,8% para 0,4%). Os autores consideraram a recusa terapêutica em obstetrícia um fator de risco independente para a ocorrência de complicações gestacionais e durante o trabalho de parto 27.
Além de ser uma questão relevante para a saúde pública, a recusa terapêutica pela gestante repercute questões bioéticas, éticas e jurídicas, de modo que, apesar dos interesses maternos e fetais coincidirem na maioria dos casos, há situações em que eles divergem e, assim, emerge o conflito materno-fetal 18, 21. Situações conflitantes podem ocorrer quando a gestante adota cuidados de saúde a partir de escolhas próprias, comportamentos e hábitos de vida ou se expõe a risco ocupacional. Tais conflitos podem surgir em qualquer momento do acompanhamento pré-natal e afetar o bem-estar fetal – por exemplo, uso de drogas e álcool, práticas sexuais de risco e recusa em aderir a recomendações médicas 28- 31.
Flagler, Baylis e Rodgers 28 afirmam que, embora os conflitos materno-fetais sejam limitados à mãe e ao feto, o conflito real acontece entre gestante e equipe de saúde. Para Oberman 30, o médico, ao aplicar uma conduta com base “no interesse fetal”, assume posição não neutra na manutenção da situação conflitante e, com isso, passa a exercer papel central nesse contexto.
Segundo Beauchamp e Childress 32, na relação médico-paciente, geralmente os conflitos materno-fetais estabelecem um contraste entre dois princípios da bioética: autonomia da gestante e beneficência do feto 33. Para Fasouliotis e Schenker 18, colocar a beneficência do feto à frente da autonomia materna compromete não somente a própria autonomia da gestante, como também sua beneficência. Os autores afirmam que, ao aplicar personalidade plena ao feto, a gestante pode ter controle e liberdade de seu corpo legalmente limitados, visto que ela é capaz de causar danos ao feto.
Ou seja, ao igualar o status moral do feto ao da gestante, a recusa a um tratamento médico recomendado pode ser invalidada se esse ato causar mais dano ao feto do que à própria gestante. Pontuam, ainda, que a sobreposição da beneficência do feto detém justificativa embasada na condição de que as obrigações morais são mais importantes para aqueles com maior necessidade. Por fim, argumentam que o Estado pode impor a execução das obrigações da gestante, uma vez que tem interesse na proteção das futuras crianças 18.
Chervenak e McCullough 34 consideram o princípio da beneficência o responsável por resguardar os interesses do feto em detrimento das decisões maternas. Afirmam que o feto viável se apresenta como paciente no momento em que está diante do médico. A viabilidade fetal é mais um agravante para que se obtenha consenso sobre os conflitos materno-fetais.
Segundo Pinkerton e Finnerty 35 essa questão é a base para estabelecer fundamentos éticos acerca do paciente fetal. Contudo, para resolver essa pendência, é necessário emitir posições médicas e científicas a respeito do início da vida e do desenvolvimento de características biológicas do embrião, questões que ainda continuam não definidas 36.
Oduncu e colaboradores 37 resumem os conflitos materno-fetais em quatro tipos: 1) entre as obrigações médicas baseadas na beneficência materna e as fundamentadas na beneficência fetal; 2) entre as obrigações maternas com base na beneficência fetal e obrigações médicas apoiadas na beneficência fetal; 3) entre as obrigações médicas com fundamento na autonomia materna e aquelas baseadas na beneficência fetal; e 4) entre as obrigações médicas com base na autonomia materna e aquelas apoiadas na beneficência materna.
Abordagem semelhante à encontrada no Brasil é apresentada por Tran 17, que descreve três métodos para lidar com os conflitos materno-fetais. O primeiro aplica ao feto os mesmos direitos de uma criança, de modo que o médico passe a atender dois pacientes individualmente. Com isso, o feto tem direitos plenos voltados a sua proteção, os quais podem comprometer a autonomia da gestante.
O segundo método considera que o feto não tem direitos e, logo, não detém estatuto moral desvinculado da mãe, adquirindo-o somente no nascimento. Com isso, a gestante é amparada legalmente a recusar quaisquer tratamentos ou intervenções, com aceitação plena pela equipe de saúde. Por fim, o terceiro método concede direitos ao feto conforme o avanço da gestação, ou seja, quanto mais próximo do termo gestacional estiver, mais direitos ele terá em relação ao começo da gestação. Contudo, o médico não é obrigado a recorrer a uma intervenção judicial para aplicar um tratamento adequado à gestante em recusa 17.
Diante da recusa de intervenções médicas pela gestante, antes de recorrer a opiniões externas, os médicos devem conversar com ela, buscando encontrar e identificar os motivos de seu posicionamento, como desconhecimento, medo, crenças religiosas e pessoais e pressões psicológicas 28, 36. A equipe de saúde envolvida nos cuidados pré-natais desempenha importante papel diante do binômio mãe-feto, uma vez que é capaz de dirigir condutas individualizadas a cada gestante-paciente 26.
Para Hollander e colaboradores 38, a comunicação médico-paciente representa a melhor solução para os impasses durante o pré-natal. Cabe ao médico respeitar, aconselhar e ser honesto sobre riscos e benefícios de determinadas intervenções, e, ao final, se uma resolução não for alcançada, a autonomia da paciente deve ser respeitada. Outrossim, ao iniciar um processo judicial contra a gestante, a relação médico-paciente é comprometida, o que a faz perder a confiança no profissional de saúde, visto que este considerou interesses próprios e independentes dos dela 39.
Dickens e Cook 39afirmam que o feto não é um paciente de fato, na medida em que está vinculado ao corpo de sua mãe e não pode ser tratado sem afetá-la. Apesar disso, os autores pontuam que a reivindicação da condição de paciente ao feto pode beneficiar interesses envolvidos no cuidado pré-natal, já que o objetivo é promover o desenvolvimento e o nascimento saudáveis do feto.
Ainda de acordo com Hollander e colaboradores 38, assim como o feto tem direito a proteção, a gestante também tem direito a autonomia, integridade corporal e liberdade. Assim, não é eticamente aceito infringir a integridade física desta para benefício de outro, sobretudo quando este ainda não nasceu. Para analisar a posição do profissional de saúde diante do cuidado pré-natal, Brooks e Sullivan 40 pontuam que é improvável o médico ser responsabilizado por danos fetais decorridos de decisões maternas diante da autonomia conferida à gestante. Contudo, afirmam que o médico é civilmente responsável pelos danos fetais provocados por sua negligência durante a execução de procedimentos médicos.
Fost 41 descreve quatro condições para justificar a instituição de tratamentos médicos diante da recusa da gestante: 1) há alta probabilidade de o feto nascer com vida; 2) há alta probabilidade de ocorrerem danos físicos graves ao feto, caso a terapêutica não seja aplicada; 3) há alta probabilidade de esses danos serem evitados utilizando o tratamento recomendado; e 4) há baixa probabilidade de danos graves à mãe ao se submeter à intervenção preconizada.
Contrariamente, e a despeito das convicções acerca da gravidade dos danos provocados pela ausência de determinada intervenção médica, Deprest e colaboradores 42 afirmam que o médico deve respeitar a autonomia da gestante e, consequentemente, suas decisões. No entanto, se ela solicita ao médico a realização de procedimento de benefício incerto ou de risco significativo ao feto, o profissional pode recusar-se a realizá-lo porque a gestante não tem direito a tratamento que não é clinicamente justificável. Posicionamento semelhante é adotado por Harris 33, que entende que a gestante não tem obrigação legal de cuidar de seu concepto, podendo ter apenas dever moral e ético para com ele.
Na mesma linha de pensamento, Dickens e Cook 39 descrevem médicos que favorecem os interesses fetais e desconsideram a vontade das gestantes como “traidores” de seus verdadeiros pacientes e de suas responsabilidades profissionais, classificando como má conduta médica o ato de instituir tratamentos às grávidas sem o consentimento destas. Enfatizam, ainda, que a responsabilidade legal aplicada a conduta médica negligente que provoque danos à integridade física ao feto, caso este apresente lesões resultantes da negligência ao nascerem, é a mesma que incidiria a qualquer indivíduo nessa situação. Além disso, mesmo se nascer com vida, a criança pode morrer em decorrência desses danos.
Pinkerton e Finnerty 35 estabelecem um caminho ético a ser trilhado pelo médico perante mulher grávida capaz que recusa algum cuidado em saúde pré-natal. O esclarecimento da gestante acerca da intervenção proposta é o primeiro passo a ser dado pelo médico, e também tem a finalidade de obter o consentimento informado da paciente.
Os segundo e o terceiro passos, caso necessários, consistem em buscar orientação em comissões de ética institucionais, que terão a responsabilidade de procurar aconselhamento administrativo e jurídico por intermédio das autoridades hospitalares. Se, ao final, a gestante continuar persistente em seu posicionamento, é aconselhável respeitar sua decisão, dada sua autonomia.
Strong 43, ao analisar conclusões éticas levantadas em tribunais para imposição de tratamentos indicados a fetos de gestantes capazes, relata que o tratamento médico ordenado judicialmente à gestante para seu feto é justificável em circunstâncias raras e excepcionais: se houver motivos convincentes para anular a autonomia materna e riscos insignificantes do tratamento imposto para a saúde da paciente.
Adams, Mahowald e Gallagher 44 pesquisaram a concordância ou não de obstetras a respeito de conflitos em relação a cuidados pré-natais. A afirmação “todo esforço deve ser feito para proteger o feto, mas a autonomia da gestante deve ser respeitada” alcançou 95% de concordância entre os entrevistados, ao passo que “um feto não tem direitos maiores aos de uma pessoa que já nasceu” obteve 87% de concordância.
Os resultados divulgados estão de acordo com as recomendações trazidas pelo American College of Obstetricians and Gynecologists 45. Segundo elas, médicos devem respeitar a capacidade decisória da gestante em recusar tratamentos recomendados por eles e atitudes coercitivas por parte dos profissionais envolvidos no cuidado pré-natal são eticamente proibidas e clinicamente desaconselháveis. Por fim, os autores desencorajam a busca de intervenções ordenadas por tribunais pelas instituições médicas, assim como a punição de ginecologistas e obstetras que se recusam a executá-las.
Diante de diferentes posicionamentos, a discussão acerca dos direitos do nascituro encontra-se inconclusa, sobretudo em função da ausência de consenso nacional e internacional.
Por definição, nascituro é a pessoa por nascer, desde sua concepção. No Brasil, seus direitos foram assegurados por diversos documentos, entre eles a Constituição Federal de 1988 46, que traz como dever familiar, social e do Estado garantir o direito à vida, à saúde, entre outros (art. 227). Da mesma maneira, o Código Civil trata do início da personalidade civil em seu art. 2º, o qual estabelece que a personalidade civil da pessoa começa no nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro47.
Ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) evidencia a recepção da teoria concepcionista, já que prevê, em seu art. 7º, os direitos do nascituro:
A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência 48.
No caso específico da sífilis, pode-se inferir que o nascituro tem direito ao tratamento, já que lhe é garantido o direito ao fornecimento de todos os medicamentos necessários à preservação de sua saúde, à boa evolução da gravidez e à realização de todos os tratamentos que possam resguardar sua saúde 49.
Diante dos direitos assegurados ao nascituro, fica a cargo da família, da gestante e da equipe médica garantir a efetivação destes, o que acarreta, portanto, responsabilidade. Para Berti, o nascituro tem direito a que as demais pessoas, particularmente sua mãe, abstenham-se de praticar qualquer ato danoso à sua saúde ou adotem qualquer conduta que possa prejudicar-lhe o desenvolvimento. Tem direito, até mesmo, a que sua mãe seja impedida de consumir substâncias que possam afetar-lhe negativamente a saúde, podendo ser pleiteadas judicialmente medidas nesse sentido, ainda que envolvam internação compulsória49.
Durante o acompanhamento pré-natal, as equipes de saúde no âmbito do SUS, seja na APS, seja na rede especializada, deverão desenvolver a relação acolhedora e o acompanhamento sistemático da gestante, contribuindo para a detecção precoce de agravos e risco gestacional, preparando para o parto e estabelecendo o elo com a maternidade 50. Caso haja o não comparecimento ou evasão do acompanhamento pré e pós-natal, é de responsabilidade da APS reaver o vínculo com a genitora.
A esse respeito, prevê o ECA, em seu art. 8º, § 9º, que a atenção primária à saúde fará a busca ativa da gestante que não iniciar ou que abandonar as consultas de pré-natal, bem como da puérpera que não comparecer às consultas pós-parto51.
Especificamente no que tange à recusa terapêutica no Brasil, é vedado ao médico, pelo art. 24 do CEM, deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, e, pelo art. 31, desrespeitar o direito do paciente ou de ser representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte22.
Ou seja, o paciente tem autonomia para aceitar ou não as condutas direcionadas pelo médico. Contudo, considerando que até 40% dos casos de sífilis congênita podem evoluir para aborto espontâneo, natimorto e óbito fetal e que a gestante também é responsável por garantir a saúde do feto, a sífilis congênita constituiria agravo de saúde de risco iminente de morte ao concepto, permitindo a instituição da terapêutica adequada à resolução do quadro 6.
Na tentativa de disciplinar o assunto, o CFM publicou a Resolução 2.232/2019, que aborda a recusa terapêutica por pacientes na prática médica. Conforme seu art. 5º, o médico não deverá aceitar a recusa terapêutica nas situações em que esta colocar em risco a saúde de terceiros ou expuser a população a risco de contaminação diante do não tratamento de doença transmissível ou de condições semelhantes, as quais constituem abuso de direito 52.
Assim, entende-se que a recusa terapêutica por parte de gestante sifilítica configura abuso de direito, uma vez que coloca em risco a saúde do feto e o expõe a risco de contaminação por via transplacentária. Entretanto, a referida resolução tem causado polêmica e não foi, até o momento, completamente recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
De acordo com Almeida, a diversidade de técnicas médicas intrauterinas, inclusive cirurgias, indica que a Ciência se preocupa com o nascituro em qualquer fase de desenvolvimento, como ser autônomo e independente da mãe, procurando cada vez mais possibilitar-lhe o normal desenvolvimento, tendo por objetivo o nascimento perfeito19.
Dessa maneira, entende-se que o médico, apto e responsável por exercer sua profissão pautada na ciência, e com a obrigação de acompanhar os avanços científicos, não pode simplesmente “fechar os olhos” à responsabilidade pelo paciente nascituro, o qual, mesmo sendo detentor de direitos, não pode exprimir sua vontade. Nessas situações, é dever do médico, com bom senso, ponderar a aplicação dos princípios de autonomia e beneficência, de modo a garantir os princípios de justiça e não maleficência.
A responsabilidade da gestante também é certa, por qualquer dano que o feto possa apresentar, ainda que manifestado tempos após o nascimento. Nesse sentido, segundo Almeida, se o nascituro é pessoa, biológica e juridicamente, se sua integridade física e sua saúde não se confundem com as da mãe, ainda que com ela o concebido mantenha relação de dependência, não há como negar-lhe direito à integridade física e a saúde (…) 19. Isso porque não é lícito à mãe opor-se ao direito à integridade física lato sensu – em que se incluem a integridade física stricto sensu e a saúde do nascituro, e não da mãe.
Assim, a mãe não pode recusar-se a ingerir medicamento destinado a preservar a saúde do concepto nem a se submeter à intervenção médica que vise dissolver medicamento no líquido amniótico, que o feto engole instintivamente. Ainda que, na prática, tal recusa possa ensejar situações de difícil solução, do ponto de vista jurídico ela se apresenta clara e inequívoca: não cabe à mãe dispor de direito à saúde que não é seu, mas sim do filho nascituro.
Fica claro que, caso a criança venha a sofrer danos por negligência ou recusa terapêutica da gestante, caberá reparação civil ao ofendido, conforme asseguram os arts. 186 e 927 do Código Civil 47. Mas a quem caberia essa reparação? Nos dizeres de Berti, a tendência atual, em alguns países, é resolver problemas dessa natureza a favor das crianças, invocando a responsabilidade civil do médico, ao lado da responsabilidade da mulher: logo uma responsabilidade civil compartilhada53.
O Quadro 1 sintetiza os direitos do nascituro e a responsabilidade médica e materna de acordo com a legislação brasileira.

Diante dos resultados encontrados, pode-se afirmar que o nascituro é titular de direitos assegurados pela legislação brasileira. Em condições de vulnerabilidade e de dependência de cuidados, o nascituro é um ser humano que demanda proteção. Assim, são responsáveis por garantir a segurança do nascituro a gestante e o médico, que deve assistir à paciente e ao concepto mediante o acompanhamento pré-natal.
Em casos de recusa ou negligência terapêutica da gestante sifilítica que impliquem consequências à saúde fetal, o médico deverá desconsiderar a decisão materna com base no princípio da beneficência em favor da criança. Nesse sentido, ante o risco de morte para o feto, o profissional está amparado pelo ECA, pelo CEM e por resolução específica. Contudo, caso seja omisso em sua conduta, poderá responder juridicamente com base nos mesmos dispositivos legais.
A gestante negligente poderá ser responsabilizada por colocar em risco a saúde do nascituro, respondendo civil e penalmente pela conduta.
Ailton Marques Rosa Filho – Graduando – marquesrosafilhoa@gmail.com
Ana Paula Dossi de Guimarães e Queiroz – Doutora – anaqueiroz@ufgd.edu.br
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