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Morte, diagnóstico e evento
Adriano Torres Antonucci; Izabella Paulino De Souza Candido; Anibal Rodrigues;
Adriano Torres Antonucci; Izabella Paulino De Souza Candido; Anibal Rodrigues; Marcel Schiavini; Marcio Francisco Lehmann; Anor Sganzerla; José Eduardo Siqueira
Morte, diagnóstico e evento
Muerte, diagnóstico y evento
Death, diagnosis and event
Revista Bioética, vol. 31, núm. 1, pp. 1-13, 2023
Conselho Federal de Medicina
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Resumo: Vida e morte são compreendidas de maneiras distintas em diferentes culturas, religiões e sociedades, portanto padronizar o entendimento dos significados desses termos em sociedades multiculturais torna-se desafiador e complexo. Diante dessa realidade, esta pesquisa busca descobrir como a morte foi compreendida na história e quais valores eram associados a ela. Para isso, realizou-se revisão da literatura analítico-narrativa, com seleção de 69 publicações para leitura na íntegra. A sociedade e a medicina adquiriram uma visão dualista que considera a morte da função cerebral como irreversibilidade de existência de um eu psicológico. Diante da possibilidade de coletar órgãos e tecidos a partir de um corpo mantido vivo e operado, o suporte de vida deve sempre visar o benefício, mas sem causar danos a terceiros. Para que esses avanços sejam possíveis, a legislação deve ser clara e atualizada.

Palavras chave: Morte, morte encefálica, doação de órgãos e tecidos, bioética.

Resumen: La vida y la muerte se entienden de distintos modos en diferentes culturas, religiones y sociedades, por lo que estandarizar la comprensión del significado de estos términos en las sociedades multiculturales se vuelve desafiante y complejo. Ante esta realidad, esta investigación pretende conocer cómo se abordó la muerte en la historia y qué valores se asociaron a ella. Para ello, se realizó una revisión de la literatura analítico-narrativa, con una selección de 69 publicaciones para su lectura completa. La sociedad y la medicina tienen una visión dualista que considera la muerte de la función cerebral como una irreversibilidad de la existencia de un yo psicológico. Frente a la posibilidad de recolectar órganos y tejidos de un cuerpo mantenido vivo y operado, el soporte vital siempre debe estar dirigido al beneficio, sin causar daños a terceros. Para que estos avances sean posibles, la legislación debe ser clara y estar actualizada.

Palabras clave: Muerte, muerte encefálica, obtención de tejidos y órganos, bioética.

Abstract: Life and death are viewed differently in different cultures, religions, and societies; therefore standardizing their meanings in multicultural societies is challenging and complex. Given this reality, this research investigated how death has been understood throughout history and its associated values. An analytic-narrative literature review was conducted, selecting 69 publications to be read in full. Society and medicine have assumed a dualistic perspective in which death of the brain function is viewed as irreversibility of the existence of a psychological self. Faced with the possibility of procuring organs and tissues from a body kept alive and operated on, life support should always aim to benefit, but without causing harm to others. For these advances to be possible, legislation must be clear and up-to-date.

Keywords: Death, brain death, tissue and organ procurement, bioethics.

Carátula del artículo

Atualização

Morte, diagnóstico e evento

Muerte, diagnóstico y evento

Death, diagnosis and event

Adriano Torres Antonucci
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil
Izabella Paulino De Souza Candido
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil
Anibal Rodrigues
Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná, Brasil
Marcel Schiavini
Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná, Brasil
Marcio Francisco Lehmann
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Anor Sganzerla
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
José Eduardo Siqueira
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Revista Bioética, vol. 31, núm. 1, pp. 1-13, 2023
Conselho Federal de Medicina

Recepção: 20 Julho 2022

Revised document received: 13 Outubro 2022

Aprovação: 23 Outubro 2022

Abordar a morte apenas sob o ponto de vista biológico é insuficiente, pois seres humanos são multidimensionais e psique, relações sociais e aspectos espirituais se entrelaçam. Vida e morte são temas desta revisão de literatura, que apresenta o percurso histórico dos conceitos e valores relacionados a esses termos.

Para Villas-Bôas 1, a morte pode ser caracterizada como biológica e clínica e esta antecede a biológica, que pode ocorrer muito tempo depois. Diferentes culturas e religiões entendem vida e morte de maneiras próprias, a partir de perspectivas diversas, valorizando órgãos corpóreos específicos como lugar vital, em diferentes contextos. Por exemplo: para a cultura egípcia, é o coração; para a japonesa, seriam vísceras/abdômen; para a religião judaica, importam a respiração e o coração; e para a cristã, a cabeça 2. Religiões de matriz africana e culturas dos povos originários das Américas podem considerar importantes outros elementos.

Sendo assim, como definir de forma consensual qual órgão e/ou função corpórea determina se uma pessoa está viva ou não, sem ferir suscetibilidades? Percebe-se que a conceituação da morte é um assunto naturalmente polêmico, sobretudo em sociedades multiculturais.

A literatura foi consultada a partir de busca utilizando os descritores em ciências da saúde (DeCS): “morte encefálica”, “bioética”, “ética médica”, “doação de órgãos” e “educação médica”, em diferentes combinações. A amostra incluiu estudos disponíveis on-line na integra nas bases SciELO, LILACS, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e no Portal de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), publicados entre 1960 e 2020.

Inicialmente, foram lidos os resumos e selecionados 69 artigos para leitura na íntegra. Desse modo, a revisão da literatura seguiu o método analítico- narrativo, em que se buscou compreender como o tema em questão foi abordado historicamente.

O que é a morte?

No período paleolítico, quando o ser humano tinha uma percepção naturalmente primitiva ou instintiva, a morte era considerada uma transformação. Os ritos que permitiam a passagem segura do corpo tinham função agregadora em termos de organização social 3. Trata-se de um período da pré-história em que se vivia em grupos nômades e, por isso, as interpretações dessa época são basicamente conjecturas baseadas em evidências escassas.

Com a evolução da agricultura, a visão sobre vida e morte passou a ser associada à colheita. Nesse contexto, surgiram os mitos de ressurreição, a partir da ideia de renovação periódica representada pela observação do ciclo das estações e da sequência da semeadura e colheita. Além disso, essa nova visão de renovação das comunidades agrícolas associou-se aos conceitos tanto de ressurreição quanto de renascimento, dando origem às grandes tumbas, que simbolizavam essa crença 3.

No Egito antigo, o desenvolvimento da sociedade e a elevação da qualidade de vida humana substituíram gradualmente a ideia de morte por uma concepção de imortalidade, antes reservada a deuses e faraós. A morte passa a ser considerada uma transição para uma existência eterna, baseada em moralidade 3.

No período do antigo reinado no Egito, apenas o faraó era mumificado, uma vez que nele residia a energia vital de todo o reino. A mumificação era um modo de manter o rei – e, por conseguinte, o reino – imortal, ou seja, uma forma de burlar o processo de morte, impedindo a putrefação, pois consideravam que a preservação do corpo era uma condição sine qua non para a imortalidade. Assim, para o povo egípcio, na morte a pessoa se torna o próprio corpo, uma visão filosófica muito próxima do materialismo 4.

Em uma comparação realizada entre o processo de luto de viúvas japonesas e inglesas em 1969, percebeu-se um contraste importante entre a perspectiva predominantemente xintoísta e budista da morte e a visão inglesa. Na tradição japonesa, o sujeito morto passa a ser parte do grupo de seus ancestrais, sendo comum que as pessoas falem com cônjuges falecidos e levem alimentos e até mesmo cigarros, pois o contato com o ancestral é incentivado. Na tradição ocidental, levar comida ao túmulo seria visto como incapacidade de lidar com o luto, enquanto na oriental isso estaria totalmente de acordo com a forma como o luto é vivenciado 5.

A população Hopi, nativa do Arizona, concebe a morte como algo poluidor e tenta esquecer e superar esse acontecimento o mais rápido possível. Isso ocorre porque o espírito é considerado uma entidade que não carrega as características do morto, devendo, portanto, ser temida 5.

O judaísmo define a morte como um momento relacionado à respiração, de modo que, em um trecho do Talmud Babilônico, determina-se se uma vítima de soterramento resgatada está viva ou morta verificando seu nariz, independentemente do quão grave suas lesões pareçam. Portanto, na visão judaica, a avaliação neurológica não é considerada suficiente para definir a morte. Apesar de haver discussões e certos grupos no judaísmo que interpretem como possível a aceitação da morte encefálica, com base em textos sacros sobre decapitação e lesão vertebral, o critério cardiorrespiratório é o mais aceito 6.

No século XIV, o Concílio de Vienne definiu a morte sob a perspectiva moderna do catolicismo, considerando que a vida termina com a separação definitiva da alma do corpo, quando toda a vida que resta ao corpo não é mais integrada ao indivíduo. De acordo com o papa João Paulo II, o momento exato da morte não pode ser definido pela ciência, porém a separação entre corpo e alma gera sinais somáticos claros de que a pessoa morreu 6. Ou seja, para a Igreja Católica, quem define o critério para declarar a morte de alguém é a comunidade médica, sem haver discordância evidente da morte por critérios neurológicos.

Na tradição islâmica, a morte é universal, predestinada e ocorre apenas com a permissão de Alá. Sua determinação por critérios cardiovasculares ou neurológicos é aceita pela maior parte dos países muçulmanos e estudiosos, embora não exista definição precisa do que ela representa no islamismo 6.

Para Aristóteles, a alma é a forma funcional do ser humano, de modo que, quando um corpo deixa de realizar suas funções, ela também deixa de existir e o corpo não é mais uma pessoa. Ele tenta lidar com a morte sugerindo uma nova perspectiva para a vida, de busca pela felicidade 7.

Ao contrário do que afirmava Aristóteles, Sócrates e Platão acreditavam na dualidade entre corpo e alma e na imortalidade da última. Para Sócrates, não há como saber se a morte é boa ou ruim, se a alma seria deslocada para outro local ou se apenas os seres humanos dormiriam um longo e profundo sono sem sonhos. Platão seguiu Sócrates e definiu argumentos que entendiam a alma como eterna e o corpo como uma prisão para ela 7.

Para Heidegger 8, que deu seguimento à filosofia existencialista de Kierkegaard, a morte não é um evento final, pois os indivíduos são sempre a própria morte, no sentido de ir em direção a ela – em outras palavras, o ser humano é um ser para a morte. No entanto, a visão de que a morte é um evento gradativo e contínuo que acompanha a pessoa em toda a vida não é uma perspectiva comum ou mesmo predominante na história da filosofia. A maioria dos filósofos que discorrem sobre o assunto tenta definir a morte como momento ou processo final da vida do indivíduo.

A morte passa a ser definida como transição do corpo de um estado “com” vida para um “sem” vida, em que o indivíduo deixa de ser uma pessoa e torna-se um corpo que aguarda o processo de decomposição. Mas os seres seriam apenas seus corpos? Epicuro, com sua famosa afirmação a morte nada é para nós, quando existimos a morte não é. Quando a morte existe, nós não somos9, pode ser classificado como um dos primeiros “terminadores”, pois era de uma escola filosófica que afirmava que uma pessoa não pode existir morta. Nessa perspectiva, após a morte, ela é aniquilada e o corpo enterrado ou cremado seria apenas um cadáver, não mais a pessoa 10.

Na perspectiva do materialismo, outra visão filosófica que vai ao encontro da terminalidade, Feldman 10 explica que a morte seria um momento profundamente transformador de um objeto que, uma vez vivo, passa a não estar mais vivo, no entanto não deixa de existir. É óbvio que o corpo não desaparece com a morte, mas na visão materialista a morte é dissociada da pessoa e suas propriedades a transformam em alguém morto. O corpo não surgiu a partir da morte do indivíduo, pois já existia e continuou existindo como cadáver.

Olson, citado por Bradley, Feldman e Johansson 7, define a existência humana como composta de duas pessoas: a física e a psicológica. Basicamente, após a morte, o corpo físico não desaparece materialmente, embora se inicie um processo irreversível de decaimento, no entanto o ser psicológico cessa de existir imediatamente, sendo obliterado. Essa maneira de pensar é definida como pluralismo ou dualismo entre a pessoa e o corpo. Sob esse prisma, a morte do ser psicológico é a morte final, irreversível, do indivíduo – mas não de seu corpo.

Em seu livro Persons and bodies: a constitutional view, Baker 11 defende uma maneira diferente de dualismo, em que, apesar de constituir um ser indivisível, o corpo humano e a pessoa humana não são idênticos. A pessoa humana, nessa abordagem, é algo com capacidade para visão em primeira pessoa, pois ao dizer eu sou rápido, eu sou forte, eu sou atlético12, a pessoa se caracteriza, se refere a si mesma em primeira pessoa e se define pelo seu corpo. No entanto, o corpo não tem direitos nem tem emprego, mas o eu da pessoa tem.

Baker 11 afirma que quando alguém fala de seu próprio corpo, refere-se ao corpo sobre o qual tem visão em primeira pessoa. No entanto, seu eu e seu corpo podem existir separados um do outro, sendo possível se referir a um corpo mesmo antes de ele constituir uma pessoa, como um feto, e, da mesma forma, pode-se falar de um cônjuge antes de tê-lo conhecido. O corpo continua após a pessoa perecer, porém não haverá mais algo com a capacidade de primeira pessoa, uma pessoa em si.

Conceitos biológicos da morte

O diagnóstico de morte é um desafio na prática médica e evolui conforme novas tecnologias e conhecimentos surgem. Entre os conceitos iniciais, de 1787 13, que concebiam a parada da circulação como morte, e os estudos de 1994 14, que consideravam a suspensão permanente das funções vitais do corpo como diagnóstico de morte, houve grandes avanços, sobretudo a partir do Comitê de Harvard 15, que incluiu a definição de morte encefálica, criando, assim, um novo campo de debate.

Com relação estritamente à biologia, a morte inicia quando um organismo cessa seu funcionamento e finaliza com sua decomposição 1. O organismo é um arranjo bem-sucedido de células em diferentes fases de evolução, com funções e tempos de colapso distintos. Após a privação de nutrientes, como glicose, e de oxigênio, que eram distribuídos prontamente pela circulação sanguínea, elas entram em um caos intracelular que leva inevitavelmente à morte, deteriorando um órgão, um sistema e, por fim, o corpo completo.

Diferentes células, órgãos e tecidos têm viabilidade e tempo de vida limitados após a parada de circulação e respiração. Isso demonstra que, uma vez iniciado o processo de morte, do ponto de vista biológico, o corpo todo segue seu curso natural até a putrefação 16, 17. Atualmente, porém, foram criadas maneiras artificiais de manter o funcionamento do corpo como uma máquina, o que em condições naturais não aconteceria.

Dessa forma, biologicamente, também se entende a morte não como um momento único e finito, mas como um processo que abrange uma sequência – bem descrita nos estudos atuais – de fenômenos gradativos, o que consequentemente torna ainda mais difícil saber quando ela ocorre. A partir da evolução dos transplantes de órgãos e tecidos, foi necessário definir melhor esse processo, na tentativa de precisar o momento da morte, surgindo, assim, o conceito de morte encefálica. Contudo, é de suma importância que a concepção de morte biológica seja aprofundada para melhor entendimento da questão, sendo fundamental conhecer esse processo, descrito pela tanatologia 18.

Entre o início e a consumação do processo de morte, podem ser descritos fenômenos abióticos, avitais ou negativos, que ocorrem em cascata a partir de um evento inicial: a morte do indivíduo. Porém, o nível de conhecimento sobre a decomposição do corpo humano ainda é baixo, o que, aliado às variáveis, impossibilita criar constantes universais e verdadeiras sobre esse processo. Assim, é possível apenas ter uma ideia do tempo estimado dos eventos que se sucedem no processo de morte 19.

Os fenômenos descritos a seguir, quando analisados de forma independente, não são específicos e não confirmam o diagnóstico proposto, o que corrobora mais uma vez a ideia de processo e encadeamento de eventos que culminam em um diagnóstico definitivo de morte 18, 20.

Os fenômenos imediatos – sinais e eventos iniciais, imediatos à morte, ocorridos de maneira quase simultânea – iniciam-se pela perda da consciência, definida como ausência de responsividade e contactuação com o meio externo, seguida de perda dos sentidos, sensações táteis, térmicas, dolorosas. Nesse momento, qualquer estímulo doloroso demonstra total ausência de sentidos e responsividade. Consequentemente, evolui-se para perda do tônus muscular.

Dois testes descritos corroboram o diagnóstico de processo de morte: 1) sinal de Rebouillat: injeção de 1 ml de éter na face lateral da coxa (em mortos, o líquido extravasa pelo orifício e não é absorvido pelo músculo); 2) sinal de Roger e Beis: aplicação de choque elétrico e ausência de contração, demonstrando morte real 18.

A face hipocrática (olhos fundos, fronte enrugada, nariz afilado, têmporas deprimidas) presente em indivíduos moribundos adquire novo semblante após perda do tônus facial, levando a uma falta de expressão. Em um primeiro momento, surge o relaxamento muscular generalizado, levando à dilatação pupilar, abertura da boca e dos olhos, abertura dos esfíncteres anal e urinário, liberação de fezes, urina e esperma. A cessão da respiração pode ser evidenciada pela ausência de murmúrio vesicular à ausculta pulmonar ou, mais precisamente, por registro eletromiográfico das incursões respiratórias 20.

Para avaliar a parada cardiocirculatória, muitos testes já foram descritos, sendo alguns demasiadamente invasivos. A ausculta cardíaca com ausência de batimentos (sinal de Bouchut) e o eletrocardiograma com ou sem injeção de adrenalina (prova de Guérin e Frache) são de grande importância. A ausência de circulação sistêmica pode ser evidenciada pela prova de Magnus: faz-se um garrote na extremidade distal de um dedo, havendo vida, forma-se uma área de cianose. Apesar disso, é importante ter em mente que, com manobras de ressuscitação cardiopulmonar e ventilação mecânica invasiva, em muitos casos, a parada cardiorrespiratória pode retardar o diagnóstico de morte de forma artificial 13.

Inúmeras alterações oculares também ocorrem com a parada da circulação: esvaziamento da artéria central da retina, descoramento da camada coroide, parada da circulação da rede superficial retiniana à oftalmoscopia 18. Associam-se à parada das funções cerebrais as evidências por sinais clínicos de morte encefálica (coma aperceptivo, ausência de reflexos de tronco) 15 e a ausência de atividade elétrica ou fluxo sanguíneo cerebral 18.

Descreveram-se até aqui os fenômenos que ocorrem inicialmente e imediatamente após a morte. A partir de então, eventos abióticos tomam seu curso consecutivamente em direção à decomposição do corpo. Fica evidente, dessa forma, que para a biologia há dois grupos de eventos diferentes: fenômenos imediatos (perda das funções) 10e fenômenos mediatos ou consecutivos (fim do corpo).

Fenômenos abióticos consecutivos:

  1. 1. Desidratação cadavérica: o cadáver passa por um processo de desidratação, evidenciado pelo decréscimo do peso, ressecamento da pele e mucosas, perda da tensão do globo ocular, enrugamento (sinal de Bouchut), ressecamento ( livor sclerotinae nigrecens) e turvação da córnea 18;
  2. 2. Esfriamento cadavérico: a cessação do pleno funcionamento do sistema termorregulador determina o esfriamento gradual do corpo. Inicialmente, extremidades perdem calor de forma progressiva. Tronco e órgãos internos podem manter sua temperatura por até 24 horas após a morte 20, 21;
  3. 3. Hipóstase cutânea ( livor mortis): a interrupção da circulação sanguínea faz o sangue se acumular e escoar para regiões mais baixas do cadáver ou que estejam em contato com planos. Formam-se, então, lesões na pele, como manchas ou placas de aspecto azul-púrpura, que surgem na região inferior do cadáver (região de declive), a depender da posição em que ele está, inclusive em órgãos internos. As hipóstases permanecem até o surgimento da putrefação e são importantes para determinar o tempo da morte, pois surgem cerca de duas a três horas após a morte, e a posição do indivíduo na hora da morte, porque podem mudar de posição conforme se movimenta o cadáver, mas se mantêm fixas após 12 horas 18, 22;
  4. 4. Rigidez cadavérica: evento físico-químico relacionado à desidratação muscular e à hipóxia, que levam a não formação de adenosina trifosfato (ATP), manutenção da ligação actina e miosina, alteração da membrana celular e acúmulo de ácido lático. Consiste em contração e rigidez muscular, iniciadas geralmente de duas a três horas após a morte, atingindo seu pico em oito horas e, finalmente, desaparecendo em 24 horas. A rigidez cadavérica também é considerada no diagnóstico de morte do ponto de vista médico-legal 20; e
  5. 5. Espasmo cadavérico: rigidez muscular súbita adquirida no momento da morte (sinal de Kossu).

Diferentemente da rigidez cadavérica, que se instala progressivamente ao longo das primeiras horas 18, nos fenômenos transformativos destrutivos, o corpo continua seu processo de destruição progressiva, autólise, putrefação e maceração:

  1. 1. Autólise: ocorre em nível celular. A presença de fenômenos anaeróbicos nesse momento leva à destruição celular promovida por enzimas que agem intensamente, sem auxílio de bactérias, tornando o pH do meio cada vez mais ácido. Duas fases podem ser identificadas: a primeira é a latente, em que há destruição do citoplasma; a segunda é a necrótica, quando o núcleo é destruído. Como a acidez do meio se torna incompatível com a vida, esse processo também auxilia no diagnóstico de morte, sendo possível medir o pH do cadáver por diversos métodos: sinal de Labord, sinal de Brissemoret e Ambard 23;
  2. 2. Putrefação: consiste na decomposição do corpo a partir da ação de bactérias aeróbias, anaeróbias e facultativas. Em adultos, inicia-se pelo intestino, levando à formação da “mancha verde abdominal”, que é o primeiro sinal da putrefação. Sofre grande influência das condições físico-químicas do ambiente (temperatura, umidade, acidez do meio etc.) – em temperaturas abaixo de 0°C, esse processo não se inicia. Esse estágio passa por quatro fases subsequentes, descritas como a marcha da putrefação: período cromático, período gasoso ou enfisematoso, período coliquativo até culminar no período de esqueletização 18, 20, 23.
  3. 3. Maceração: corresponde a um processo de transformação no qual há perda de consistência pelo corpo, achatamento do ventre e destacamento dos ossos e dos retalhos cutâneos 20.

Dessa forma, dois eventos distintos ocorrem do ponto de vista biológico quando se analisa a morte. O primeiro, imediato, consiste na perda da consciência e dos sentidos e na parada da respiração e circulação, culminando na cessação do funcionamento cerebral e na morte encefálica. Se não houver suporte respiratório e circulatório artificial, esse quadro evoluirá para o segundo evento, composto por fenômenos progressivos que se iniciam com rigidez e esfriamento e terminam na putrefação do corpo. Quanto mais se progride no processo de decomposição, mais sensível se torna o diagnóstico de morte.

Pulmões, coração, morte encefálica
Parâmetros de morte na história

Até parte significativa do século XIX, o ato de morrer ocorria no leito domiciliar, com a pessoa doente assistida por familiares e entes queridos 24. Nesse contexto, o médico era encarregado apenas da função de espectador, pois compreendia a morte como elemento natural e inerente à experiência existencial 25.

Com o modelo biotecnicista e hospitalocêntrico do século XX, a morte passou a ocorrer com maior frequência no ambiente hospitalar, onde costuma haver excessiva obstinação terapêutica visando a manutenção da vida a qualquer custo em detrimento do bem-estar de pacientes, e médicos(as) passaram a regular o momento em que a morte ocorreria 26. Hospitalização, unidades de terapia intensiva e transplantes caracterizam novas tendências desse século, aumentando a possibilidade de retardar ao máximo o fim da vida, o que implica diretamente a responsabilidade de definir o momento em que a morte se torna inevitável.

No entanto, independentemente do avanço tecnológico do último século, o encéfalo e suas funções seguem insubstituíveis por meios artificiais. Dessa forma, a morte não atinge o organismo como um todo de forma inevitável, podendo restringir-se ao sistema nervoso central. Essa característica única impulsiona discussões sobre o que é a morte por parte da comunidade médica e legal ao redor do mundo.

Nesse sentido, cientistas e pensadores(as) de diferentes áreas do conhecimento, e até mesmo burocratas e administradores(as), passaram a participar de debates sobre o que caracteriza a morte. A motivação dessas esferas a respeito do assunto pode estar relacionada a custos de terapias avançadas de prolongamento da vida, possibilidade de doação de órgãos e tecidos e sofrimento familiar prolongado pela extensão do período de evolução para a morte.

Nesse contexto, o conceito e o diagnóstico de morte evoluíram, de modo que o entendimento exclusivo desse evento devido à parada cardíaca ou respiratória é substituído pela ideia de morte do encéfalo, cerebral ou cortical, o que significa fim da vida de relação, ou seja, da existência do indivíduo. Conforme Luciana Kind 27, essa discussão aflorou nos anos 1960, após o desenvolvimento tecnológico que estendeu o processo de morte. Assim, a criação de máquinas de suporte de vida e novos procedimentos médicos antecederam a discussão e a produção de argumentos sobre a definição de morte cerebral 27.

Do ponto de vista moral e legal, é importante haver uma definição objetiva de morte e o entendimento em relação à irreversibilidade da situação clínica de pacientes. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), ao discutir a redefinição moderna da morte, afirma que decisões sobre questões éticas na medicina, nas ciências da vida e nas tecnologias associadas podem ter impacto sobre indivíduos, famílias, grupos ou comunidades e sobre a humanidade como um todo28, considerando que todos os seres humanos, sem distinção, devem se beneficiar dos mesmos elevados padrões éticos na medicina e nas pesquisas em ciências.

Para assegurar que o padrão bioético das decisões seja o mais adequado possível, dados objetivos que promovam o entendimento desse diagnóstico e conceito são fundamentais para guiar a liberação de recursos para políticas e programas de doação de órgãos e tecidos e/ou a limitação de gastos por parte do sistema (devido à cessação de recursos destinados a pacientes com morte encefálica). Esses dados podem ser utilizados para diminuir o sofrimento das famílias no momento do diagnóstico e aumentar a porcentagem de familiares que aceitem procedimentos de doação de órgãos e tecidos. Ainda, podem aumentar a confiança de profissionais da área, visando celeridade no diagnóstico e na conduta, assim como redução de gastos nesses casos, com a interrupção dos recursos hospitalares empenhados – por exemplo, desligando aparelhos.

É possível inferir que, com a aceitação médica e legal da morte encefálica, a sociedade adotou uma perspectiva dualista sobre a morte, conforme exposto anteriormente. Dessa forma, com a morte da função cerebral, não é mais possível existir um eu psicológico, sendo permitido manter um corpo vivo e operado para coleta de órgãos. Não se trata mais do indivíduo que um dia viveu – pois ele está morto, apenas seu corpo vive – e, por isso, seus órgãos e tecidos podem ser retirados sem agredir uma pessoa viva.

Cristina Lima 29 considera a variabilidade do conceito de morte uma questão acadêmica, mas não se pode afirmar o mesmo em relação a critérios e testes, que devem ser muito bem definidos. Ou seja, por mais que o momento da morte possa ser discutido, os métodos, sinais e sintomas aceitos para dar esse diagnóstico do ponto de vista médico-legal não podem deixar dúvidas, independentemente da base filosófica a partir da qual se avalie. Caso se utilize o critério de morte encefálica, a caracterização clínica da síndrome de morte encefálica deve ser claramente definida e, se houver parada cardiovascular, a avaliação deve apresentar parâmetros precisos, a fim de evitar variabilidade diagnóstica.

Na década de 1930, em Boston, Drinker e Shaw 27 desenvolveram o pulmão de aço, posteriormente aplicado e difundido por Lassen e Ibsen. Essa tecnologia permitiu interromper transitoriamente o processo dinâmico que envolve perda de função do tronco cerebral, parada respiratória e subsequente parada cardíaca. Além disso, outro recursos, como drogas vasoativas, permitiram que médicos(as) mantivessem pacientes vivos(as) para tratamento de lesões encefálicas, que antes levariam à morte 30.

Diante disso, os critérios para diagnóstico de morte encefálica começam a ser discutidos principalmente a partir do trabalho de Mollaret e Goulon 31, em 1959, em sua descrição do “coma dépassé” (“sobrecoma”, versão mais profunda e grave do coma), baseada em uma sequência de 23 casos clínicos. Descreve perda das vias de relação, incluindo reflexos de tronco, e das funções vegetativas como respiração, desregulação térmica e colapso do sistema circulatório, além de alterações do eletroencefalograma (EEG), hoje tipicamente relacionadas a morte encefálica. Trata-se de um artigo histórico, porém deve-se ressaltar que os autores não consideravam essa definição como equivalência de morte 31.

Schawb, Potts e Bonazzi 32publicaram o primeiro conjunto de regras e sintomas para o diagnóstico de morte encefálica. Os autores sugerem que, caso essas condições sejam alcançadas, médicos(as) estariam autorizados(as) a desligar os aparelhos e a declarar pacientes como mortos:

  1. 1. Respiração espontânea deve estar ausente por 30 minutos;
  2. 2. Não devem existir reflexos tendíneos de nenhum tipo;
  3. 3. Não devem existir reflexos pupilares e as pupilas estarão dilatadas;
  4. 4. Pressão sobre o globo ocular não deve alterar a frequência cardíaca;
  5. 5. O EEG deve ter linhas planas sem ritmo em todas as captações por um período de 30 minutos;
  6. 6. Um barulho alto não deve provocar descarga detectável no EEG; e
  7. 7. A resistência entre eletrodos geralmente está acima de 50 mil ohms 32.

No mesmo artigo, eles defendem que manter a circulação cardiorrespiratória artificial gera elevados custos, estresse a familiares e demanda profissional e de equipamentos do hospital 32. A discussão continuou em diversos simpósios e artigos científicos.

Em 1968, houve um importante avanço com a publicação dos critérios do Comitê de Harvard 15, que estabelece o termo “irreversível” como um novo critério para morte e descreve que, para o diagnóstico, o paciente em estado de morte encefálica deve estar irresponsível e não receptível a estímulos como dor, toque, som ou luz. Além disso, não deve apresentar movimentos ou respiração espontâneos – sugere desligar aparelho por três minutos para teste – nem reflexos de tronco ou tendíneos e ter EEG plano.

Por fim, sugere repetir os exames em 24 horas para confirmar a irreversibilidade do quadro, sendo necessário que o paciente esteja em condição adequada, sem fatores que possam interferir nos resultados. Deve-se, portanto, excluir o uso de depressivos do sistema nervoso central e evitar a hipotermia (<32°C), a fim de que o diagnóstico de morte encefálica seja preciso e confiável 15.

Cabe citar pontos e argumentos contrários a essa definição clínica de morte encefálica, entendida como morte do indivíduo. Hans Jonas 33, em seu artigo “Against the stream: comments on the definition and redefinition of death”, publicado em resposta aos critérios de morte encefálica definidos pelo comitê, parte de um ponto de vista puramente filosófico. O autor preocupa-se com o risco de que a redefinição de morte como morte do encéfalo reforce uma dicotomia entre cérebro e corpo em que, após a morte do primeiro, o segundo passaria ao “reino das coisas”, quando na verdade corpo e cérebro são únicos um para o outro.

A objeção de Jonas 33 surge do fato de ele considerar indivisível o sujeito de seu corpo, de modo que, para ele, o desligamento de aparelhos em casos irreversíveis deve ser realizado apenas quando o interesse é evitar prolongar o sofrimento do indivíduo, independentemente de outros possíveis benefícios (doações, leitos, sofrimento da família). O autor entende que a retirada de órgãos é uma atividade destrutiva, que só deveria ser feita após a morte em sua definição clássica.

Posteriormente, Jonas 34 revisa seu texto original e lamenta a flexibilização cada vez maior dos critérios de morte cerebral. Apesar dessa objeção, a medicina seguiu em curso na tentativa de encontrar critérios mais objetivos para definir a morte cerebral, provavelmente pautada na distinção então percebida, pelo meio médico, entre o corpo e a pessoa.

No mesmo ano da publicação de Harvard 15, no Brasil era aprovada a Lei 5.479/1968 35, que versa sobre a permissão de retirada de órgãos para doação. Não foram citados, nesse primeiro momento, critérios específicos para definição de morte encefálica ou seu conceito de acordo com a legislação brasileira 35.

Em 1971, como apontam Mohandas e Chou 36, surgiu um novo refinamento de critérios, a partir da publicação do Minnesota Code of Brain Death Criteria, que incluiu a necessidade de diagnóstico de lesão intracraniana, exclusão de causas metabólicas, padronização de teste de apneia e arreflexia apenas de tronco para o diagnóstico.

Por fim, em 1980, foi publicado o Uniform Determination of Death Act, que definiu a parada das funções cerebrais e a parada irreversível cardiorrespiratória como morte do indivíduo nos Estados Unidos 37. Esses critérios foram revisados e ampliados em 1981 por meio de publicação da comissão Medical consultants on the diagnosis of death to the president’s commission for the study of ethical problems in medicine and biomedical and behavior research, que abordou tanto a morte cerebral como cardiorrespiratória. A última revisão foi feita pela American Academy of Neurology, em 1995 38, 39.

No Brasil, após a Lei 5.479/1968 35, apenas em 1991 o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 1.346, estabelecendo os primeiros critérios únicos para determinar a morte encefálica:

  1. 1.
    • Clínicos: coma aperceptivo com arreatividade inespecífica dolorosa, e vegetativa, de causa definida. Ausência de reflexos corneano, óculo encefálico, óculo vestibular e do vômito. Positividade do teste de apneia. Excluem-se dos critérios acima, os casos de intoxicações metabólicas, intoxicações por drogas ou hipotermia.

    • Complementares: ausência das atividades bioelétrica ou metabólica cerebrais ou da perfusão encefálica.

  2. 2. O período de observação desse estado clínico deverá ser de, no mínimo, 6 (seis) horas.
  3. 3. A parada total e irreversível das funções encefálicas será constatada através da observação desses critérios registrados em protocolo devidamente aprovado pela Comissão de Ética da Instituição Hospitalar.
  4. 4. Constatada a parada total e irreversível das funções encefálicas do paciente, o médico, imediatamente, deverá comunicar tal fato aos seus responsáveis legais, antes de adotar qualquer medida adicional 40.

Em 1997, foi publicada a Lei 9.434 41, estabelecendo que o CFM é responsável por definir os critérios de morte encefálica e exigindo realização de teste por dois médicos(as) não participantes de equipe de transplante. No mesmo ano, o CFM publicou a Resolução 1.480/1997 42, que, além de detalhar o exame físico, estabelece critérios para morte encefálica de crianças menores de 2 anos.

Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apneia.

Art. 5º. Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme abaixo especificado:

  • de 7 dias a 2 meses incompletos – 48 horas

  • de 2 meses a 1 ano incompleto – 24 horas

  • de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas

  • acima de 2 anos – 6 horas

Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação da morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral ou, ausência de atividade metabólica cerebral ou ausência de perfusão sanguínea cerebral 42.

Em 2001, em resposta à Consulta 8.563/2000 PC/CFM/42/2001 43, o CFM estabeleceu o horário da morte como o do fechamento do protocolo de morte encefálica (dois exames clínicos e um complementar). Além disso, autorizou o desligamento de aparelhos em paciente não doadores e a realização do exame complementar entre os exames clínicos, porém nunca como primeira medida 43.

Em 2007, o CFM publicou a Resolução 1.826 44, reforçando que é eticamente correto e legal suspender o suporte a pacientes com morte encefálica, doadores de órgãos e tecidos ou não – desde que a ação seja precedida de discussão e tenha conivência dos familiares. Por fim, a Resolução 2.172/2017 45, além de detalhar exames clínicos, diagnósticos e complementares de morte encefálica por faixa etária, apresentou novidades. As principais atualizações foram a exigência de treinamento específico de médico(a) a realizar o exame do protocolo de morte encefálica – porém sem mais necessariamente ter um neurologista ou neurocirurgião – e a redução do tempo entre os exames clínicos para uma hora em pacientes maiores de 2 anos 45.

Outro assunto que passou a ganhar destaque no Brasil são as diretivas antecipadas de vontade e o testamento vital. Assim, o indivíduo, ao identificar e expressar seu desejo para o fim de sua vida, torna-se responsável por parte do processo de decisão a respeito da determinação de condutas avançadas de suporte de vida e eventual doação de órgãos. Sob esse contexto, surgem as diretrizes antecipadas de vontade na Resolução CFM 1.995/2012 46.

Essa resolução trouxe à tona regras com critérios sobre tratamentos considerados invasivos ou dolorosos em casos de pouca possibilidade de recuperação para pacientes maiores de 18 anos, lúcidos de suas capacidades mentais e responsáveis perante a lei 47. A discussão sobre a autonomia de pacientes em relação a sua própria decisão se inicia em 1967, com a instituição do testamento vital ( living will) nos Estados Unidos, onde pacientes passaram a poder decidir sobre os procedimentos médicos a que seriam submetidos em caso de estado vegetativo, passando a ter força de lei em 1976 e sendo revisada com a Lei de Autodeterminação de Pacientes, em 1991. A medida foi internacionalizada, havendo versões na Argentina (2001), na Itália (2006), em Portugal (2008), entre outros 47.

O testamento vital tem base no conceito de autonomia de pacientes, não só para evitar o sofrimento próprio, possivelmente imposto a eles por ações de prolongamento artificial de vida, mas para manter a dignidade do indivíduo em relação ao seu processo de morte 47. Existe, ainda, a rejeição de uma relação paternalista entre médico e paciente, permitindo que os sujeitos tenham voz na discussão sobre sua evolução clínica 47.

Neste trabalho, até agora, discutiu-se não só o ponto de vista filosófico da morte encefálica e da morte do indivíduo, mas também o entendimento médico-legal. No entanto, é importante ressaltar que, sempre que possível, deve-se considerar a visão não apenas de familiares, mas de pacientes, ainda que estes não estejam mais conscientes no momento do diagnóstico. Esse mandado individual pode advir tanto de diretrizes antecipadas de vontade, constantes em prontuário antes da piora das faculdades mentais do paciente, quanto de seu representante legal.

Conforme previamente citado, atualmente, o Brasil tem legislação específica para morte encefálica e doação de órgãos e tecidos. Desse modo, um conselho de classe é definido para elaborar critérios diagnósticos (o CFM), há exigência de exame clínico determinado em protocolo preestabelecido, que deve ser confirmado por dois profissionais, e um exame complementar é obrigatório.

Ainda assim, apesar de os critérios atuais de morte encefálica estarem muito bem definidos em protocolo e lei, muitos(as) médicos(as) têm dificuldade em determinar o momento da morte como o instante do diagnóstico da morte encefálica. Em muitos casos, médicos pensam em anestesiar o(a) paciente para remover seus órgãos 1. Não devem existir dúvidas sobre diagnóstico e conceito de morte encefálica, porque seria inadmissível retirar órgãos e/ou tecidos de alguém se existissem incertezas sobre sua morte.

Conforme explicitado na DUBDH, benefícios diretos e indiretos a pacientes, sujeitos de pesquisa e outros indivíduos afetados devem ser maximizados e qualquer dano possível minimizado quando se trata da aplicação e do avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e das tecnologias associadas 48.

Considerações finais

Independentemente do avanço tecnológico na área, o surgimento de novas práticas e tecnologias – no caso em questão, o suporte de vida e a doação de órgãos e tecidos – deve sempre visar o benefício, mas sem causar danos a terceiros. Por isso profissionais de saúde devem estar no domínio da técnica e da ética nos procedimentos executados e a legislação precisa ser atualizada para permitir que os avanços na área sejam realmente aplicados e a fiscalização possível.

A legislação brasileira e a internacional evoluíram e se modificaram muito desde que o assunto começou a ser considerado. Espera-se que continue mudando e se adaptando conforme o conhecimento acerca do tema avança. Com isso, a concepção de morte é influenciada pelos avanços da técnica, sendo preciso levar em conta a evolução tecnocientífica, mas sem desconsiderar a dignidade e o respeito pelas pessoas em sua fase final de vida.

Material suplementar
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Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Op cit. 2005. p. 6.
Notas
Declaração de interesses
Declaram não haver conflito de interesse.
Autor notes
Adriano Torres Antonucci – Mestre – adrianoantonucci@yahoo.com.br

Izabella Paulino de Souza Candido – Graduando – izaapaulino@hotmail.com

Anibal Rodrigues Neto – Graduado – anibalneto.r@gmail.com

Marcel Schiavini – Especialista – schiavini2901@gmail.com

Marcio Francisco Lehmann – Doutor – mflehmann@hotmail.com

Anor Sganzerla – Doutor – anor.sganzerla@gmail.com

José Eduardo Siqueira – Doutor – eduardo.siqueira@pucpr.br

Correspondência: Adriano Torres Antonucci – Av. Robert Koch, 60 CEP 86038-350. Londrina/PR, Brasil.

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