Pesquisa

Espiritualidade e dor em pacientes com câncer de mama metastático

Espiritualidad y dolor en pacientes con cáncer de mama metastásico

Spirituality and pain in patients with metastatic breast cancer

Samantha Brandes
Universidade da Região de Joinville, Brasil
Ana Carolline Taborda Kemczenski
Universidade da Região de Joinville, Brasil
Ana Paula Niespodzinski
Universidade da Região de Joinville, Brasil
Anne Izabelly de Aguiar Cabral Martins Souza
Universidade da Região de Joinville, Brasil
Gabriela Barbier
Universidade da Região de Joinville, Brasil
Jean Carl Silva
Universidade da Região de Joinville, Brasil
Helbert do Nascimento Lima
Universidade da Região de Joinville, Brasil

Espiritualidade e dor em pacientes com câncer de mama metastático

Revista Bioética, vol. 31, núm. 1, e3262PT, 2023

Conselho Federal de Medicina

Recepção: 31 Março 2022

Revised document received: 7 Fevereiro 2023

Aprovação: 2 Março 2023

Resumo: Mediante estudo observacional, transversal e quantitativo que utilizou os instrumentos de avaliação Brief Pain Inventory (dor), Functional Assessment of Chronic Illness Therapy Spiritual Well-Being (bem-estar espiritual) e Beck Depression Inventory – Short Form (depressão), busca-se avaliar a influência da espiritualidade e da depressão na percepção de dor de pacientes acometidas por neoplasia de mama metastática. A idade média foi 57,3 anos e, das 30 participantes, 24 (80%) tratavam-se em serviço público; 17 (57%) tinham diagnóstico de câncer de mama há mais de cinco anos; e 27 (90%) realizavam alguma prática religiosa/espiritual. Pacientes com escore de bem-estar espiritual acima da mediana apresentaram menor escore dos sintomas depressivos (3 vs . 6; p =0,021). Não houve diferença significativa em relação à mediana do escore total do bem-estar espiritual quando estratificado pela mediana da percepção de dor (31,5% vs . 28,5%; p =0,405). Maior manifestação de bem-estar espiritual pode estar relacionada a menores índices de depressão.

Palavras-chave: Neoplasias da mama, Metástase neoplásica, Espiritualidade, Percepção da dor, Depressão, Cuidados paliativos na terminalidade da vida.

Resumen: Este estudio observacional, transversal y cuantitativo utilizó los instrumentos Brief Pain Inventory (dolor), Functional Assessment of Chronic Illness Therapy Spiritual Well-Being (bienestar espiritual) y Beck Depression Inventory – Short Form (depresión), para evaluar si la espiritualidad y la depresión influencian en la percepción del dolor en pacientes con cáncer de mama metastásico. La edad promedio fue de 57,3 años; de las 30 participantes, 24 (80%) recibían atención pública; 17 (57%) tenían diagnóstico de cáncer de mama hace más de cinco años; y 27 (90%) solían tener alguna práctica religiosa/espiritual. Aquellas con puntuación de bienestar espiritual superior a la mediana tuvieron una puntuación más baja de síntomas depresivos (3 vs. 6; p =0,021). No hubo diferencias significativas en la mediana de la puntuación total de bienestar espiritual cuando se estratificó por la percepción mediana del dolor (31,5% vs. 28,5%; p =0,405). Una mayor sensación de bienestar espiritual se relacionó a bajas tasas de depresión.

Palabras clave: Neoplasias de la mama, Metástasis de la neoplasia, Espiritualidad, Percepción del dolor, Depresión, Cuidados paliativos al final de la vida.

Abstract: This observational, cross-sectional and quantitative study, by means of the assessment instruments Brief Pain Inventory, Functional Assessment of Chronic Illness Therapy Spiritual Well-Being and Beck Depression Inventory – Short Form, evaluated the influence of spirituality and depression in the pain perception of patients with metastatic breast cancer. Mean age was 57.3 years. Of the 30 participants, 24 (80%) were treated in a public service, 17 (57%) had been diagnosed with breast cancer for more than 5 years, and 27 (90%) were religious or spiritual. Patients with spiritual well-being scores above the median had lower depressive symptom scores (3 vs. 6; p =0.021). The median total score of spiritual well-being showed no significant difference when stratified by median pain perception (31.5% vs. 28.5%; p =0.405). Greater spiritual well-being may be related to lower rates of depression.

Keywords: Breast neoplasms, Neoplasm metastasis, Spirituality, Pain perception, Depression, Hospice care.

O câncer de mama é a neoplasia mais prevalente nas mulheres em todo o mundo 1 . Apesar dos avanços na detecção precoce e na compreensão das bases moleculares da doença, 10% das pacientes com câncer de mama apresentam metástase à distância no momento do diagnóstico 2 , tendo a dor como um fator marcante 3 . Embora muitos estudos avaliem a influência da religiosidade e/ou espiritualidade (R/E) na qualidade de vida, pouco se sabe sobre sua associação com a percepção de dor dessas pacientes.

Segundo dados do Global Cancer Observatory (GCO), em 2020, cerca de 2,3 milhões de mulheres tiveram diagnóstico de câncer de mama, e o número de pacientes que evoluíram para óbito em razão da doença foi de 685 mil em todo mundo 4 . No mesmo ano, registraram-se 7,8 milhões de mulheres com diagnóstico de câncer de mama que estavam em tratamento nos cinco anos anteriores 4 . No momento do diagnóstico, aproximadamente 64% das pacientes tinham câncer de mama em estágio local, 27% em estágio regional e 6% em estágio distante (metastático) 5 , 6 . Entre 20% e 50% das pacientes com neoplasia de mama queixam-se de dor, número que aumenta para 90% em pacientes metastáticas 3 .

Além de contemplar uma experiência sensorial desagradável associada a um dano tecidual real ou potencial, a dor também é uma experiência emocional negativa 7 . A frequência e intensidade da dor podem aumentar à medida que o câncer progride, causando desconforto físico, emocional, espiritual e funcional 8 , tornando-a mais complexa do que apenas uma sensação física 9 .

Estudos sobre mulheres com câncer de mama afirmam que o suporte por meio da R/E pode ampará-las, agindo como uma força motivadora para lidar com as dificuldades e seguir adiante com seus ideais de vida e enfrentamento da doença 9 - 12 . No entanto, pouco se sabe ainda sobre a influência da R/E na percepção da dor.

Compreender a dor e a espiritualidade em mulheres com câncer de mama avançado pode fornecer informações sobre como otimizar o complexo sintoma da dor e fornecer atendimento integral para essas mulheres 9 . Este estudo objetiva avaliar a associação do bem-estar espiritual com a percepção de dor em pacientes acometidas por neoplasia de mama metastática.

Método

Delineamento e local do estudo

Trata-se de estudo transversal, observacional, analítico, com abordagem quantitativa, conduzido por meio de questionários validados relacionados à espiritualidade e à dor, aplicados entre outubro de 2020 e março de 2021. A amostra foi composta por mulheres com neoplasia de mama metastática em acompanhamento ambulatorial na cidade de Joinville/SC. As pacientes foram selecionadas nos dois principais ambulatórios da cidade, um público – Ambulatório de Oncologia do Hospital Municipal São José – e um privado – Centro Ambulatorial de Oncologia da Unimed. Ambos os ambulatórios atendem toda a região de Joinville/SC, com cerca de 600 mil habitantes. Todas as participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, conforme aprovação.

Amostragem, critérios de inclusão e exclusão

O quadro amostral foi obtido com base no levantamento do registro médico de ambos os ambulatórios. Todas as pacientes mulheres com idade maior ou igual a 18 anos, alfabetizadas, sem déficit cognitivo reconhecido e com código internacional de doença C50.9 (neoplasia maligna da mama, não especificada) em estágio IV em acompanhamento médico regular nos últimos seis meses foram convidadas a participar do estudo por contato telefônico. As pacientes que aceitaram participar responderam aos instrumentos propostos em um formulário on-line na plataforma de formulários da Google, em virtude do isolamento imposto pela pandemia de covid-19.

Variáveis coletadas e instrumentos utilizados

Foram coletadas variáveis sociodemográficas como idade, escolaridade e estado civil. Também foram avaliados tempo de diagnóstico, locais e números de sítios metastáticos e uso de medicação para controle de dor.

Para avaliar sinais de depressão foi utilizado o Beck Depression Inventory – Short Form (BDI-SF) 13 , uma medida de autoavaliação de depressão que consiste em 13 itens relacionados a sintomas depressivos que tem sido validada na população brasileira e em pacientes com câncer 14 . O somatório do escore do BDI-SF acima de quatro é sugestivo para sintomas leves de depressão.

Empregou-se também o Brief Pain Inventory (BPI) para avaliar o nível e repercussão da dor nas pacientes 15 . Foram utilizados os itens 3 a 9, sendo os itens de 3 a 8 para avaliar a intensidade de dor e os sete subitens do item 9 para avaliar a interferência da dor em aspectos da vida (atividades em geral, humor, habilidade para caminhar, sono, trabalho, relacionamento com outras pessoas e aproveitamento da vida).

A intensidade da dor é avaliada pelo paciente tendo como referência as últimas 24 horas, em uma escala numérica de 0 (ausência de dor) a 10 (tão forte quanto se possa imaginar), em que o escore médio total é calculado com base nos itens 3-6. A interferência nos aspectos da vida é também avaliada em uma escala numérica de 0 (não interferência) a 10 (completa interferência), em que escore médio é calculado com base nos sete subitens 16 .

A R/E foi avaliada por meio de questões formuladas pelos próprios pesquisadores para compreender melhor o envolvimento em atividades religiosas e por meio do questionário Functional Assessment of Chronic Illness Therapy Spiritual Well-Being (Facit-Sp-12) 17 . O Facit-Sp-12 é uma escala que avalia o bem-estar espiritual, centrado nos aspectos existenciais da espiritualidade e da fé, não limitado à possibilidade de resposta por agnósticos ou ateus. O instrumento é subdividido em duas escalas: a primeira (“sentido/paz”), com oito itens; e a segunda (“fé”), com quatro itens. Para obter a pontuação total, basta somar a pontuação dos 12 itens. Quanto maior a pontuação, maior o bem-estar espiritual 17 .

Análise estatística

As variáveis numéricas foram apresentadas pela média e desvio-padrão ou mediana e variação mínima e máxima, conforme distribuição. A exposição estudada, R/E, foi avaliada por meio da estratificação da amostra pela mediana do escore total do Facit-Sp-12 (≤33 ou >33). Já o desfecho considerado, percepção de dor, foi avaliado de forma binária utilizando a mediana do escore total do BPI (≤26,5 ou >26,5). Outras variáveis de interesse foram contempladas em relação à variável de exposição e desfecho por meio dos testes qui-quadrado, para as variáveis categóricas, e Mann Whitney, para as numéricas.

Os escores do Facit-Sp-12 foram correlacionados com os escores do BPI por regressão linear simples. A razão de chance entre o bem-estar espiritual (mediana do Facit-Sp-12) e a percepção de dor (mediana do escore BPI) foi avaliada de forma bruta e ajustada para potenciais confundidores pelo método de Mantel-Haenszel. O valor de p <0,05 foi considerado estatisticamente significativo nos testes utilizados e as análises foram realizadas no programa estatístico STATA versão 15.

Resultados

Apresentaram neoplasia de mama metastática 26 (12%) das 221 pacientes em acompanhamento regular no ambulatório do serviço privado e 117 (10%) das 1.153 em acompanhamento regular no ambulatório público. Do total da amostra de 143 pacientes, considerando ambos os serviços, 30 (21%) responderam ao questionário on-line (20% do serviço privado e 80% do serviço público). A média de idade foi de 57 anos; 28 (93,3%) eram brancas; 18 (60%) eram casadas ou estavam em união estável; 17 (57%) tinham tempo de diagnóstico maior do que cinco anos e o principal local de metástase foram os ossos (43%).

Utilizavam algum tipo de analgésico 19 (63%) mulheres. Quando avaliada a percepção de dor na amostra total, por meio do BPI (mínimo 0, máximo 10), as medianas foram 2 e 2,2, respectivamente, para intensidade da dor e interferência da dor nos aspectos da vida (o escore total foi de 2,6). O percentual de alívio da dor dentro das últimas 24 horas foi de 80%.

Quanto aos sintomas depressivos, a mediana encontrada no BDI-SF foi de 4,5, havendo 12 (40%) participantes com sintomas leves e três (10%) com sintomas moderados de depressão. Outras características são apresentadas na Tabela 1 .

Tabela 1
Características gerais da amostra (n=30)
Características gerais da amostra (n=30)
*paciente poderia marcar mais de um sítio; 1-codeína, tramadol; 2-morfina, metadona DP: desvio-padrão; BPI: Brief Pain Inventory; VIQ: variação interquartil (percentil 25/75)
A religião católica foi a mais prevalente (43%) entre as 28 pacientes que declararam ter algum tipo de religião (93%). Já em relação à prática de atividade religiosa ou espiritual, 27 (90%) pacientes mantinham alguma atividade R/E regular, sendo esta realizada três ou mais vezes na semana em 41% e de forma grupal em 63% da amostra. A R/E foi considerada muito importante para 27 (90%) participantes.

Quanto ao bem-estar espiritual avaliado pelo instrumento Facit-Sp-12, o escore total médio foi de 33 (mínimo 0, máximo 48); no que se refere ao domínio sentido/paz, a média foi de 19,5 (mínimo 0, máximo 32 pontos); no domínio fé, 14 (mínimo 0, máximo 16 pontos).

Quando avaliadas as principais variáveis e a percepção de dor estratificada pela mediana do escore total do Facit-Sp-12 ( Tabela 2 ), encontrou-se tendência para menor escolaridade em pacientes com menor qualidade de vida relacionada à R/E (7,4 vs . 10,8 anos de estudo, p =0,077). As pacientes no grupo com escore do Facit-Sp-12 acima da mediana apresentaram menor escore dos sintomas depressivos (BDI-SF 3,0 vs . 6,0; p =0,021).

Tabela 2
Análise das variáveis pela mediana Facit-Sp-12 (n=30)
Análise das variáveis pela mediana Facit-Sp-12 (n=30)
Facit-Sp-12: Functional Assessment of Chronic Illness Therapy Spiritual Well-Being; DP: desvio-padrão; R/E: religiosidade e/ou espiritualidade; BPI: Brief Pain Inventory; VIQ: variação interquartil (percentil 25/75)
Apesar de não significativo, observou-se que mulheres com escore de bem-estar espiritual acima da mediana tinham maior tempo de união estável, menor tempo de diagnóstico de neoplasia, menor uso de medicações para dor e menor mediana da intensidade e da interferência da dor.

As variáveis associadas a menor percepção de dor (mediana BPI≤2,6) são apresentadas na Tabela 3 . Não houve diferença significativa em relação à mediana do escore total do bem-estar espiritual (Facit-Sp-12) quando estratificado entre os grupos acima ou abaixo da mediana da percepção de dor (BPI). Embora não significativo, o grupo acima da mediana do BPI usava opioides fortes com mais frequência do que o grupo abaixo da mediana (40% vs . 6,7%). A regressão linear entre os escores totais do Facit-Sp-12 e os valores do escore total do BPI não demonstraram correlação significativa (β coeficiente=−0,02; IC 95% −0,83 a 0,41; p =0,492).

Tabela 3
Análise das variáveis pela mediana Brief Pain Inventory
Análise das variáveis pela mediana Brief Pain Inventory
BPI: Brief Pain Inventory; DP: desvio-padrão; Facit-Sp-12: Functional Assessment of Chronic Illness Therapy Spiritual Well-Being; R/E: religiosidade e/ou espiritualidade; VIQ: variação interquartil (percentil 25/75)
O maior escore de R/E (grupo com mediana Facit-Sp-12>33) não mostrou associação com um menor escore de dor (mediana BPI≤2,6), crude OR=0,42 (IC 95% 0,08-2,04; p =0,264). Após ajuste para potenciais fatores de confusão de forma bivariada, o maior escore de bem-estar espiritual permaneceu não associado à mediana inferior do BPI de forma significativa: ajustado para o estado civil (OR M-H =0,35; IC 95% 0,06-1,88; p =0,201), para uso de medicação para dor (OR M-H =0,59; IC 95% 0,12-2,95; p =0,517), para presença de sinais de depressão (OR M-H =0,61; IC 95% 0,10-3,53; p =0,577) ou para tempo de doença (OR M-H =0,52; IC 95% 0,11-2,50; p =0,411).

Discussão

Este estudo revela que grande parte das pacientes com câncer de mama adota alguma atividade R/E como forma de enfrentamento da doença. Na amostra estudada, maior nível de bem-estar espiritual não foi significativamente relacionado a menor percepção de dor, mas a menores escores de sintomas depressivos.

Nesta análise, maior escore de bem-estar espiritual não se relacionou a menor percepção de dor, embora pacientes com escore de bem-estar espiritual acima da mediana usem menos analgésicos fortes em relação àquelas com escore abaixo da mediana. Poucos estudos de intervenção com foco em R/E têm sido realizados em pacientes com câncer de mama avançado 18 , 19 .

Estudo sobre mulheres com câncer de mama avançado submetidas a intervenção psicoterapêutica com foco em potencializar a força interior por meio de técnicas psicológicas demonstrou que as pacientes se beneficiaram desse uso em situações de ansiedade e desespero devidas à doença, mas não houve real benefício no que tange a aspectos relacionados a R/E 18 . Por outro lado, quando a intervenção é guiada por profissional com formação específica em R/E (capelão), os achados podem ser mais abrangentes, contribuindo para a melhora de aspectos relacionados à ansiedade, paz interior, sentido da vida e aceitação 19 .

Nesta pesquisa, a maioria das pacientes pertencia a uma religião, com predominância daquelas de base cristã. Além disso, a maior parte delas estava envolvida com práticas ligadas a R/E por elas consideradas muito importantes no contexto da doença. Estudos têm focado a relação entre espiritualidade, saúde e qualidade de vida em pacientes crônicos com doença avançada 20 - 23 e alguns teóricos consideram que a espiritualidade pode constituir uma forma de ressignificar o sentido da vida e da morte 11 .

Muitas vezes pacientes oncológicos enfrentam conflitos emocionais e espirituais, além do medo da morte. Durante o processo de adoecimento, esses pacientes adotam diferentes formas de lidar com a doença, passando por diversas fases, como os cinco estágios descritos por Elisabeth Kübler-Ross 24: negação parcial ou total da doença, ira/revolta, barganha, depressão e aceitação. Os aspectos existenciais e espirituais do paciente oncológico durante o adoecimento tornam-se ferramentas para o enfrentamento da doença e podem estar relacionados a espiritualidade, depressão e qualidade de vida 11 .

A espiritualidade vem ao encontro da necessidade de preencher o vazio explicativo da doença que se instala ou da morte que se aproxima. Por isso, pode ser entendida como uma busca de completude, um fechamento do “ser-no-mundo”, abrandando a dor e favorecendo a aceitação dolorosa do luto ao constituir um tipo de ajuda que transcende a si mesmo 11 .

Sabe-se que pacientes com câncer precisam ter seus desconfortos físicos aliviados e controlados para que as suas necessidades espirituais possam ser mais bem compreendidas e preenchidas. Uma pessoa com dor intensa não terá condições de refletir sobre o significado de sua existência, pois o sofrimento físico torna-se um fator de ameaça constante à sensação de plenitude desejada pelos pacientes que estão morrendo 25 .

No estudo conduzido neste trabalho, mais da metade da amostra relatou usar analgésico, e grande parte obteve alívio nas últimas 24 horas anteriores à análise, conforme avaliado pelo instrumento BPI. Dessa forma, falta de controle adequado de analgesia não parece impactar a não associação encontrada entre R/E e dor. Porém, considerando que grande parte da amostra que aceitou responder à pesquisa praticava alguma atividade envolvendo R/E, não é possível afastar um viés de seleção da amostragem, o que diminui a influência dos não praticantes de atividades R/E sobre o desfecho da dor.

Outro aspecto verificado foi a associação da R/E a menor presença de sintomas depressivos. Sabe-se que bem-estar espiritual mais elevado está associado com menor sofrimento, maior adaptação à doença e, consequentemente, melhor qualidade de vida 20 , 25 .

A prevalência de depressão em mulheres com câncer de mama tem sido bastante variável, sendo apontada por 1,5% a 30% dessas pacientes 13 , 26 . O diagnóstico de câncer representa sobrecarga emocional, porém a depressão também pode estar relacionada a características inerentes à paciente, além daquelas relacionadas ao câncer e seu tratamento 26 .

Por outro lado, sabe-se que a avaliação da R/E por meio de escala pode refletir conceitos que permeiam também aspectos psicológicos ou morais 27 . As questões do instrumento FACIT-Sp-12 relacionadas a paz interior podem ser entremeadas por sentidos e questionamentos muito próximos àqueles encontrados no instrumento que avalia qualidade de vida e/ou sintomas depressivos 27 . Tal associação poderia explicar, em parte, a relação encontrada entre maior escore de R/E e indivíduos com menos sintomas depressivos.

Este estudo apresenta limitações que precisam ser consideradas: 1) devido ao isolamento imposto pela pandemia de covid-19, a estratégia eletrônica para resposta ao questionário pode ter limitado a participação de pacientes com menor escolaridade ou dificuldade de acesso a meios digitais; 2) embora faixa etária, tempo de diagnóstico, número e localização das metástases sejam semelhantes ao perfil reconhecido de outros estudos realizados no Brasil 28 , 29 , não se pode afastar um viés de seleção da amostra.

Apesar de não ter sido possível detalhar melhor as doses e o esquema dos analgésicos utilizados pelas pacientes, a maioria delas pertencia ao mesmo ambulatório e era sujeita a uma rotina semelhante de prescrição analgésica, o que pode, em parte, minimizar erros de aferição.

Este estudo apresenta informações importantes sobre o maior envolvimento em práticas de R/E por pacientes em estágio avançado de câncer de mama. Tal achado pode reforçar a necessidade de a equipe assistencial compreender melhor crenças e práticas de fé dessas pacientes, constituindo-se em ponto de apoio para o enfrentamento da doença.

Considerações finais

A busca de envolvimento com aspectos de R/E é bastante presente em pacientes com câncer de mama metastático. Na amostra estudada, maior bem-estar espiritual não se relacionou com menor percepção de dor, mas verificou-se que aspectos relacionados a R/E podem ter alguma influência sobre sintomas depressivos nessas pacientes. Tal associação precisa ser mais bem avaliada quanto a seu impacto na percepção da dor.

Estudos futuros poderão avaliar intervenções que possam aumentar a espiritualidade, como práticas meditativas, psicoterapia centrada no significado e musicoterapia, relacionadas a experiências da doença – especificamente dor e depressão.

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Notas

Aprovação CEP-HMSJ-CAAE 28598720.0.0000.5362

Autor notes

Samantha Brandes – Mestra – samanthabrandes@gmail.com

Ana Carolline Taborda Kemczenski – Graduanda – anacarolline.kem@gmail.com

Ana Paula Niespodzinski – Graduada – anapaulan.sbs@gmail.com

Anne Izabelly de Aguiar Cabral Martins Souza – Graduanda – anneizacabralsouza@gmail.com

Gabriela Barbieri – Graduanda – gabriela12barbieri@gmail.com

Jean Carl Silva – Doutor – jean.carl@univille.br

Helbert do Nascimento Lima – Doutor – helbertlima@hotmail.com

Correspondência: Samantha Brandes – Rua da Independência, 125, ap. 204B, Anita Garibaldi CEP 89203-305. Joinville/SC, Brasil.

Declaração de interesses

Declaram não haver conflito de interesse.
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