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Bioética e inteligência artificial: panorama atual da literatura

Bioética e inteligencia artificial: panorama actual de la literatura

Bioethics and artificial intelligence: a current overview of the literature

Érica Antunes Naves
UnitedHealth Group Brasil, Brasil

Bioética e inteligência artificial: panorama atual da literatura

Revista Bioética, vol. 32, e3552PT, 2024

Conselho Federal de Medicina

Recepção: 18 Abril 2023

Revised document received: 30 Novembro 2023

Aprovação: 5 Janeiro 2024

Resumo: O termo inteligência artificial refere-se à realização, por dispositivos computacionais, de processos intelectuais característicos dos seres humanos, como raciocinar, descobrir significados, generalizar ou aprender com experiências. A atuação da inteligência artificial ocorre quando programas computacionais realizam ações para as quais não foram explicitamente programados. Apesar de o conceito ser bem definido, o desempenho dessa tecnologia é muito complexo, de modo que a bioética encontra diversos conflitos e questões relacionadas a ela, muitas vezes esclarecidas apenas no momento em que surgem. Embora regulamentações tenham sido instituídas ao longo do desenvolvimento da área, ela constantemente passa por adaptações, o que justifica novos estudos sobre o tema.

Palavras chave: Bioética, Inteligência artificial, Controle da tecnologia biomédica.

Resumen: El término inteligencia artificial se refiere a sistemas informáticos capaces de realizar procesos intelec- tuales característicos de los seres humanos, como razonar, descubrir significados, generalizar o aprender de las experiencias. La actuación de la inteligencia artificial se produce cuando los programas informáticos realizan acciones para las cuales no fueron explícitamente programados. Aunque el concepto está bien definido, la actuación de esta tecnología es muy compleja, por lo que la bioética se encuentra ante diversos conflictos y cuestiones relacionadas con ella, que muchas veces solo pueden aclararse cuando surgen. Aunque a lo largo de su desarrollo se vienen estableciendo normativas, este campo sufre constantes adaptaciones, lo que justifica la realización de nuevos estudios sobre el tema.

Palabras clave: Bioética, Inteligencia artificial, Control de la tecnología biomédica.

Abstract: Artificial intelligence refers to the performance, by computer devices, of intellectual processes characteristic of human beings, such as reasoning, discovering meanings, generalizing or learning from experience. Artificial intelligence occurs when computer programs perform action for which they were not explicitly programmed. Although a well-defined concept, its complex performance poses various bioethical conflicts and questions, often clarified only when they emerge. Despite the regulations put in place during the field’s development, these are constantly undergoing adaptations thus justifying further studies on the subject.

Keywords: Bioethics, Artificial intelligence, Technology control, biomedical.

O termo inteligência artificial (IA) refere-se à realização, por dispositivos computacionais, de processos intelectuais característicos dos seres humanos, como raciocinar, descobrir significados, generalizar ou aprender com experiências 1. Sua atuação ocorre quando programas computacionais realizam ações para as quais não foram explicitamente progra- mados, podendo ser descrita como o uso desses dispositivos para realizar tarefas que antes exigiam cognição humana 2.

A Associação Médica Americana prefere o termo “inteligência aumentada”, em vez de “inteligência artificial”, para enfatizar o papel assistivo dos computadores no aperfeiçoamento das habilidades dos médicos em vez de substituí-los 3. A integração da IA na prática médica aumentou significativamente nos últimos anos, e continua a crescer 2. Portanto, a discussão acerca dos princípios éticos e legais nesse campo, incluindo o desenvolvimento de regulamentação específica, é uma preocupação constante e de extrema relevância.

Método

Realizou-se busca na base de dados PubMed por meio dos descritores “bioethics” e “artificial intelligence”, considerando artigos científicos publicados entre 2018 e 2022. A análise incluiu também pareceres das sociedades de referência na área pesquisada. Posteriormente, fez-se comparação crítica com critérios que variavam de acordo com tipo de estudo, discussão do tema e conclusões.

Discussão

Os trabalhos analisados invariavelmente definem o conceito de IA, havendo o entendimento comum de que se trata de uma tecnologia que imita processos intelectuais característicos dos seres humanos, para atingir objetivos sem a programação de uma ação específica 1-4.

Há um amplo acordo segundo o qual demonstra inteligência qualquer dispositivo que usa razão, elabora estratégias, resolve quebra-cabeças, faz julgamentos sob incerteza, apresenta conhecimento (incluindo senso comum), planeja, aprende, comunica em linguagem natural e integra todas essas habilidades com objetivos comuns 1.

Atualmente, dentre os exemplos de áreas de atuação da IA estão atividades como compreender a fala humana, competir no mais alto nível em sistemas de jogos estratégicos, dirigir carros autô- nomos, planejar roteamento inteligente em rede de entrega de conteúdo e simulações militares 1.

Na área médica, Bali e colaboradores 1 apresentam exemplos como o IBM Watson for Oncology, que prescreveu medicamentos para o tratamento de pacientes com câncer com eficiência igual ou superior à de especialistas humanos. Além disso, o projeto Hanover, desenvolvido pela Microsoft no Oregon, Estados unidos, analisou pesquisas médicas para possibilitar o tratamento personalizado de câncer.

Ainda, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) usa a plataforma DeepMind, do Google, para detectar riscos à saúde analisando dados de aplicativos móveis e imagens médicas recolhidas de pacientes. Outro exemplo é o algoritmo de radiologia de Stanford, que detectou pneumonia melhor do que radiologistas humanos, enquanto na retinopatia diabética foi equivalente aos oftalmologistas especialistas na tomada de decisão de encaminhamento 1.

Vearrier e colaboradores 2 concordam que a IA demonstrou benefício potencial substancial para médicos e pacientes, transformando a relação terapêutica da díade médico-paciente tradicional em uma relação triádica médico-paciente-máquina. Ponderam, entretanto, que novas tecnologias de IA exigem verificação cuidadosa, padrões legais, salvaguardas do paciente e educação do provedor, devendo os médicos reconhecer os limites e riscos da IA, bem como seus benefícios potenciais.

Com tantos algoritmos de IA em uso e em desenvolvimento, em todas as áreas e especialmente na área médica, a discussão de aspectos éticos e legais, incluindo a regulamentação, é uma preocupação crescente. No passado, essas mudanças regulatórias eram baseadas em conceitos filosóficos e na necessidade de responder às demandas socioculturais. Atualmente, o desafio é integrar uma série de tecnologias disruptivas, como a IA.

Embora proporcione inúmeras vantagens, por acarretar uma realidade emergente e de resultados imprevisíveis, que não estão isentos de riscos, esse campo gera incerteza e precaução, que exige regulação bioética 4. Sánchez López e colaboradores 4 propõem três princípios básicos para regular as partes interessadas: 1) respeito pela investigação, 2) justiça e 3) transparência.

Apesar de sua promessa de resultados, os algoritmos de IA estão sob investigação por desempenho inconsistente, particularmente em comunidades minoritárias, o que pode levar a decisões clínicas inferiores ao ideal e a resultados adversos ao paciente. Até o momento, essas preocupações se concentraram na negligência médica e apontam a responsabilidade do médico pelo uso de IA como inextricavelmente ligada à desses outros atores 5.

Maliha e colaboradores 5, ao estudarem a fundo a labilidade desse assunto, ponderam que a alocação de responsabilidade determina se os pacientes obtêm compensação, e de quem. Além disso, estendem a avaliação, questionando se algoritmos potencialmente úteis serão colocados em prática, visto que aumentar a responsabilidade pelo uso ou desenvolvimento de algoritmos pode desincentivar desenvolvedores e líderes de sistemas de saúde de introduzi-los na prática clínica. Destacam que o ecossistema maior de responsabilidade de IA e seu papel na garantia de execução segura e inovação no atendimento clínico devem ser detalhadamente examinados.

Sher, Sharp e Wright 6, em editorial, são otimistas quanto às perspectivas que a IA reserva para os cuidados de saúde no futuro e ponderam a importância de compreender pontos fortes, limitações, oportunidades, desafios éticos e riscos. Igualmente importante é a necessidade de se familiarizar com as ferramentas elencadas para analisar criticamente aplicações de IA aos cuidados de saúde, a fim de diferenciar melhorias concretas de enganos.

Lazarus e colaboradores 7 expandem a análise de limitações da IA para o ensino em saúde, especificamente de anatomia, descrevendo tensões entre promessas e perigos de integrar essa tecnologia a esse âmbito. Por fim, os autores fornecem recomendações práticas para uma abordagem ponderada ao trabalhar em conjunto com a IA, que servem como estrutura orientadora com objetivo de desenvolver uma abordagem mais sutil e equilibrada para o papel da IA na educação em saúde.

Os aspectos científicos e éticos dessa questão justificaram a realização de uma reunião para discutir o assunto, em março de 2017, em Barcelona, da qual participaram diferentes especialistas europeus em IA, computação e comunicação, entre outras áreas. O debate deu origem à Declaração de Barcelona para o Desenvolvimento e Uso Adequado da Inteligência Artificial na Europa8, que contém os seguintes princípios e valores: prudência, confia- bilidade, responsabilidade, autonomia restrita e papel humano, detalhados a seguir.

Tai 9 relembra que, apesar de todas as promessas positivas que a IA oferece, os especialistas humanos ainda são essenciais e necessários para projetar, programar e operar a IA a fim de evitar qualquer erro imprevisível. Nesse sentido, cita Beth Kindig, analista de tecnologia de São Francisco com mais de uma década de experiência em empresas de tecnologia públicas e privadas.

Kindig publicou um boletim informativo gratuito indicando que, embora a IA apresente uma promessa potencial para um melhor diagnóstico médico, especialistas humanos ainda são necessários para resolver impasses e mitigar erros. Assim, a vigilância da função da IA, exercida pelo profissional conhecido como médico no circuito, não pode ser negligenciada 9.

Considerações finais

Como todas as tecnologias emergentes, IA e robótica exigem implementação prévia de normas éticas de funcionamento que garantam segurança e aplicabilidade num campo tão sensível como o da saúde 4. Sistemas de IA têm potencial para transformar radicalmente o atendimento clínico e, ainda que caminhe em ritmo mais lento, o ordenamento jurídico não pode ficar estático em relação a essa inovação.

Para alcançar plenamente os benefícios da IA, o sistema jurídico deve equilibrar a responsabilidade para promover inovação, segurança e adoção acelerada desses algoritmos 5. O estado relativamente instável da IA e sua potencial responsabilidade oferecem oportunidade para desenvolver um novo modelo, que acomode o progresso médico e instrua as partes interessadas sobre a melhor forma de responder a essa inovação disruptiva.

Referências

Bali J, Garg R, Bali TR. Artificial intelligence (AI) in healthcare and biomedical research: why a strong computational/AI bioethics framework is required? What is artificial intelligence? Indian J Ophthalmol [Internet]. 2018 [acesso 29 nov 2023];67(1):9-12. DOI: 10.4103/ijo.IJO_1292_18

Vearrier L, Derse AR, Basford JB, Larkin GL, Moskop JC. Artificial Intelligence in emergency medicine: benefits, risks, and recommendations. J Emerg Med [Internet]. 2022 [acesso 29 nov 2023];62(4):492-9. DOI: 10.1016/j.jemermed.2022.01.001

Crigger E, Khoury C. Making policy on augmented intelligence in health care. AMA J Ethics [Internet]. 2019 [acesso 29 nov 2023];21(2):E188-91. DOI: 10.1001/amajethics.2019.188.

Sánchez López JD, Cambil Martín J, Villegas Calvo M, Luque Martínez F. Artificial intelligence and robothics: reflections about the need of a new bioethics framework implementation. J Healthc Qual Res [Internet]. 2021 [acesso 29 nov 2023];36(2):113-4. DOI: 10.1016/j.jhqr.2019.07.009

Maliha G, Gerke S, Cohen IG, Parikh RB. Artificial intelligence and liability in medicine: balancing safety and innovation. Milbank Q [Internet]. 2021 [acesso 29 nov 2023];99(3):629-47. DOI: 10.1111/1468-0009.12504

Sher T, Sharp R, Wright RS. Algorithms and bioethics. Mayo Clin Proc [Internet]. 2020 [acesso 29 nov 2023];95(5):843-4. DOI: 10.1016/j.mayocp.2020.03.020

Lazarus MD, Truong M, Douglas P, Selwyn N. Artificial intelligence and clinical anatomical education: promises and perils. Anat Sci Educ [Internet]. 2022 [acesso 29 nov 2023]. DOI: 10.1002/ase.2221

Barcelona Declaration for the Proper Development and Usage of Artificial Intelligence in Europe. [Propõe diretrizes para um "código de conduta" dos profissionais de IA atualmente em discussão]. Biocat [Internet]. 2017 [acesso 29 nov 2023]. Disponível: https://bit.ly/3w6SYCv

Tai MCT. The impact of artificial intelligence on human society and bioethics. Tzu Chi Med J [Internet]. 2020 [acesso 29 nov 2023];32(4):339-43. DOI: 10.4103/tcmj.tcmj_71_20

Autor notes

Érica Antunes Naves – Especialista – eanaves@hotmail.com

Correspondência Rua Conselheiro Brotero, 1486, Santa Cecília CEP 01232-010. São Paulo/SP, Brasil.

Declaração de interesses

Declara não haver conflito de interesse.
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