Resumo: A religiosidade e a espiritualidade desempenham papéis cruciais na medicina, especialmente na abordagem centrada no paciente, melhorando a relação médico-paciente. Apesar disso, muitos médicos ainda subutilizam esses recursos, muitas vezes devido a insegurança ao lidar com a esfera pessoal da vida dos pacientes. Para abordar essa questão, conduziu-se pesquisa com 128 médicos, incluindo residentes, em um hospital universitário de Minas Gerais, entre agosto e dezembro de 2021, mediante aplicação dos questionários Inventário de Religiosidade de Duke e Escala Multidimensional de Reatividade Interpessoal, além de questões levantadas em estudos anteriores sobre saúde e espiritualidade. Com isso, buscou-se avaliar de que forma profissionais percebem a importância da religiosidade e da espiritualidade na prática clínica e sua relação com posturas éticas e humanistas. Os resultados revelaram correlação significativa entre as duas escalas, indicando associação positiva entre religiosidade e espiritualidade e empatia.
Palavras chave: Espiritualidade, Empatia, Relações médico-paciente.
Resumen: La religiosidad y la espiritualidad desempeñan un papel clave en la medicina, especialmente en el enfoque centrado en el paciente al mejorar la relación médico-paciente. Muchos médicos aún no utilizan este recurso, debido a la inseguridad a menudo de enfrentar la vida personal de los pacientes. En este estudio se aplicó a 128 médicos y residentes de un hospital universitario de Minas Gerais (Brasil) los cuestionarios Índice de Religiosidad de Duke y Índice de Reactividad Interpersonal Multidimensional entre agosto y diciembre de 2021, así como preguntas planteadas en estudios anteriores sobre salud y espiritualidad. Se pretendió evaluar la percepción de los profesionales sobre la importancia de la religiosidad y la espiritualidad en la práctica clínica y su relación con las actitudes éticas y humanistas. Los resultados revelaron una correlación significativa entre las dos escalas, lo que indica una asociación positiva entre la religiosidad y espiritualidad y la empatía.
Palabras clave: Espiritualidad, Empatía, Relaciones médico-paciente.
Abstract: Religiosity and spirituality are pivotal in medical practice, particularly in fostering a patient-centered approach that enhances the physician-patient relationship. Despite this, many physicians still underutilize these invaluable resources, often due to feelings of uncertainty when navigating the personal aspects of patients’ lives. To address this challenge, a survey involving 128 physicians, including residents, was conducted at a university hospital in Minas Gerais between August and December 2021. Utilizing the Duke Religiosity Inventory and Multidimensional Interpersonal Reactivity Scale questionnaires, alongside inquiries drawn from prior studies on health and spirituality, the goal was to assess professionals’ perceptions of the significance of religiosity and spirituality in clinical practice and their interplay with ethical and humanistic attitudes. The findings unveiled a significant correlation between the two scales, underscoring a positive connection between religiosity, spirituality, and empathy.
Keywords: Spirituality, Empathy, Physician-patient relations.
PESQUISA
Espiritualidade e religiosidade na prática médica em um hospital universitário
Espiritualidad y religiosidad en la práctica médica en un hospital universitario
Spirituality and religiosity in medical practice at a university hospital
Recepção: 26 Outubro 2023
Revised document received: 4 Março 2024
Aprovação: 18 Março 2024
A relação entre médico e paciente comumente é estreitada quando há vulnerabilidade por parte do indivíduo assistido. Nesse sentido, a medicina centrada no paciente representa uma transformação do método clínico, a qual pretende investigar o processo saúde-doença por meio de aspectos biológicos, psíquicos e sociais, extrapolando o modelo biomédico, que foca a doença 1. Assim, religiosidade e espiritualidade (R/E) são aspectos relatados com frequência por pacientes como elementos importantes no tratamento 2.
Espiritualidade, conforme Koenig 3, refere-se à busca individual pela compreensão dos acontecimentos da vida e sua relação com o sagrado, e não acarreta necessariamente rituais religiosos. Já religiosidade diz respeito ao nível de envolvimento religioso do indivíduo e como isso afeta o cotidiano, os hábitos e a relação com o mundo. Ela pode ser classificada em intrínseca (a religião representa o bem maior do indivíduo) e extrínseca (a religião representa um meio para obter outros fins) 4,5.
Apesar de evidências científicas apontarem os benefícios decorrentes da aplicação da R/E na relação médico-paciente, poucos profissionais da saúde usam tal ferramenta. Isso se deve, especialmente, à deficiência de preparo, nas escolas médicas, para lidar com essas questões, o que causa insegurança nos profissionais. Ademais, também é comum a ocorrência de religiosity gap, ou seja, diferença entre os níveis de R/E do médico e do paciente, o que dificulta a empatia do profissional em relação ao assistido 2.
Em virtude da importância dessa esfera na propedêutica adotada, fazem-se necessárias mudanças na atuação dos profissionais a fim de atender às demandas do paciente. Isso porque o coping, processo pelo qual indivíduos procuram entender e lidar com as demandas significativas de suas vidas 6, pode ser positivo ou negativo quando se trata de R/E, sendo positivo se houver reavaliação religiosa benevolente e negativo quando se interpreta Deus como punitivo, por exemplo.
Tal relação pode ser medida pela escala de coping religioso-espiritual 7. Em se tratando de atuações negativas, a equipe de saúde deve intervir para propor novas interpretações.
O nível de abertura do paciente para tratar de questões íntimas, como R/E, depende da proximidade de seu contato com o médico e do quão confortável ele se sente com a equipe que lhe presta cuidados. Por essa razão, recomenda-se que desde o primeiro encontro se registre a história espiritual do paciente. Além disso, é importante conhecer esses dados a fim de diferenciar experiências espirituais de transtornos mentais elencados no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, como referem Tostes, Pinto e Moreira-Almeida 2.
Outro ponto essencial na relação entre equipe de saúde e pacientes é a empatia, uma das habilidades interpessoais mais importantes do médico 8. Na prática clínica, a empatia apresenta componentes cognitivos, emocionais e de ação, e pode ser definida como a habilidade de observar emoções nos outros, a habilidade de sentir essas emoções e a habilidade de responder a essas emoções9.
A empatia por parte dos médicos está relacionada a uma comunicação aberta e honesta, que permite o melhor alinhamento entre as necessidades dos pacientes e os planos terapêuticos propostos 10. Desse modo, os diagnósticos tornam-se mais precisos e a taxa de aderência ao tratamento aumenta, o que eleva as taxas de sucesso terapêutico e reduz os índices de processos jurídicos 11.
Segundo Lacombe 8, os níveis de empatia tiveram associação positiva com a percepção de bem-estar relacionada a espiritualidade, religiosidade e crenças pessoais em estudantes de medicina.
Diante desse contexto, o objetivo deste estudo é avaliar a importância conferida por médicos de um hospital universitário a R/E, além de verificar a relação entre empatia e R/E na atuação do próprio profissional de saúde.
Este trabalho foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado, de acordo com o que determinam as Resoluções 466/2012 12 e 510/2016 13, do Conselho Nacional de Saúde, sobre pesquisas envolvendo seres humanos.
A pesquisa foi realizada em um hospital universitário no interior do Brasil cuja equipe médica é constituída por 835 profissionais, sendo 274 residentes. Em virtude da pandemia do novo coronavírus, as idas ao hospital foram reduzidas como parte do protocolo de biossegurança. Apesar disso, médicos de diferentes setores foram convidados a participar da pesquisa e responderam aos questionários autoaplicáveis em papel e caneta.
A aplicação dos questionários foi realizada de agosto a dezembro de 2021. Visando a saúde pú- blica em razão da pandemia e considerando que o isolamento social prevê redução de contato físico não essencial, os pesquisadores utilizaram equipamentos de proteção individual (EPI) e se organizaram em turnos para evitar aglomeração nos espaços do hospital.
Dessa forma, foram entregues o termo de consentimento livre e esclarecido e o questionário, disponibilizando-se tempo para que os participantes respondessem no momento mais oportuno. Depois do prazo estipulado, os pesquisadores voltaram para recolher os papéis. Os instrumentos de pesquisa foram:
Após a coleta de dados e a aplicação dos questionários, realizaram-se análises descritivas para identificar variáveis de interesse. Os dados foram armazenados e analisados utilizando o software IBM SPSS. Na análise descritiva, foram empregados métodos como frequência, porcentagem, mediana e desvio interquartil, e, para as variáveis métricas, aplicou-se o teste de normalidade Kolmogorov-Smirnov.
Nas comparações para duas proporções foram utilizados o teste exato de Fisher e o teste qui-quadrado (χ2, α=5%). O teste de significância de Pearson foi usado para avaliar os coeficientes de correlação, levando em consideração a variável sexo de forma dicotômica, sendo 0 para masculino e 1 para feminino. Adotou-se um nível de significância de 5%.
A amostra final foi composta por 128 médicos, dos quais 54 são residentes e 74 não residentes. A Tabela 1 mostra que 58,5% dos entrevistados são homens, 77,4% se identificam como de cor branca e 49,2% são casados. Em relação à religião, 44,5% se declaram católicos e, quanto a outras crenças e identificações religiosas, há espíritas (18,8%), indivíduos sem religião mas espiritualizados (20,3%), protestantes (10,2%) e ateus (5,4%).
Notavelmente, 88,2% dos entrevistados acreditam em Deus, 73,4% acreditam que a alma permanece viva após a morte e 89,1% concordam que o ser humano é composto por corpo e alma. Houve diferença significativa apenas entre estado civil e atuação dos médicos (se são residentes ou não) (teste exato de Fischer=33,051; p<0,01 – dados não demonstrados). A Tabela 1 mostra também as medianas e desvios interquartis para as escalas de religiosidade e empatia. Os resultados indicam níveis semelhantes de religiosidade e empatia entre médicos residentes e não residentes.
Na Tabela 2 estão descritos a opinião dos médicos em relação ao tema R/E e seu impacto na prática clínica. A maioria associa espiritualidade a “Busca de sentido e significado para a vida humana”, com 51,9% dos entrevistados fazendo essa relação.
Aproximadamente 85% dos médicos residentes e 70% dos médicos não residentes expressaram interesse em abordar o tema fé e espiritualidade com os pacientes, e 71,9% deles já abordaram R/E com seus pacientes em algum momento. A “Falta de tempo”, citada por 42,9% dos entrevistados, e o “Medo de impor pontos de vista religiosos aos pacientes”, mencionado por 48,4% do total, emergem como os principais fatores que desencorajam os médicos de discutir R/E com os pacientes.
Apesar dessas barreiras, “Reza/prece” é a ferramenta espiritual mais comumente recomendada, sendo sugerida por 73,4% dos médicos. Essa recomendação reflete a importância percebida da oração na interação médico-paciente dentro do contexto da espiritualidade.
A análise de correlação (Tabela 3) revelou associações significativas entre determinadas variáveis e os componentes da EMRI. De forma notável, houve correlação significativa entre a variável sexo e “EMRI consideração empática” (r=0,483*), “EMRI personal distress” (r=0,278**) e “EMRI total” (r=0,404**), com o sexo feminino apresentando maiores escores nesses componentes. Adicionalmente, RNO se correlacionou de maneira expressiva com “EMRI consideração empática” (r=0,264**), enquanto RI apresentou correlações significativas com “EMRI consideração empática” (r=0,236**), “EMRI tomada de perspectiva” (r=0,206*) e “EMRI total” (r=0,234**).
Além de relatar a importância da espiritualidade na prática clínica, este estudo também evidencia a discrepância entre a valorização desse aspecto e a preparação percebida dos médicos para abordá-lo.
Apesar do reconhecimento do impacto da R/E na saúde, 82,8% dos médicos responderam que se sentem nada, pouco ou moderadamente preparados para abordar o tema. Os principais motivos que eles alegaram desencorajar esse tipo de discussão são falta de tempo, medo de impor pontos de vista religiosos aos pacientes e falta de treinamento. Isso também é relatado em outros estudos, revelando um problema comum nos cursos de medicina brasileiros 20,21.
Costa e colaboradores 22 revelam que estudantes de medicina reconhecem a importância do tema, mas se sentem desencorajados a abordá-lo com maior frequência por causa da limitação de aprendizagem na formação acadêmica. Isso foi visto neste estudo, pois os médicos entrevistados, em sua maioria, não se sentem adequadamente preparados para abordar o tema. Essa dicotomia mostra a necessidade de aprimorar a qualificação dos estudantes para inserir a temática R/E na prática médica 23,24.
A compreensão das percepções e práticas dos médicos em relação a R/E é crucial para uma prática médica holística e centrada no paciente 25. Os resultados deste estudo destacam que proporção significativa de médicos reconhece a influência da R/E na saúde dos pacientes. Isso sugere a necessidade de integrar a R/E nos currículos médicos, a fim de preparar os profissionais para abordar esses temas de forma sensível e respeitosa 26.
Além disso, considerando que, embora tenham expressado interesse em discutir questões de fé e espiritualidade com pacientes, muitos médicos sentem-se inseguros ou despreparados, é imperativo oferecer treinamento e recursos adequados para apoiá-los nessa jornada 23. Uma abordagem informada e empática em relação a R/E pode fortalecer a relação médico-paciente, promovendo uma comunicação mais aberta e um cuidado mais personalizado 8.
Houve uma correlação positiva entre empatia e sexo feminino, tendência já descrita na literatura em estudantes de medicina 27. A diferença de empatia entre os gêneros é atribuída a fatores intrínsecos (características evolutivas do gênero) e extrínsecos (interpessoalidade no cuidado, socialização e expectativa relacionada ao gênero) 28.
A correlação significativa entre os itens da escala P-Durel com os da escala EMRI mostra que houve associação positiva entre R/E e empatia. Logo, médicos que realizam orações, leituras espirituais e meditação com maior periodicidade, e frequentam com mais regularidade cultos religiosos, entre outros, têm maior tendência a reconhecer e ajudar as necessidades alheias.
Essa correlação também vai ao encontro de estudos 8,29 que sugerem que maior envolvimento com R/E, o que implica busca por questões existenciais e atribuição de um significado transcendental à existência, poderia ser uma maneira eficaz de lidar com o sofrimento humano, ajudando o profissional a adotar uma postura empática perante o paciente.
Este estudo apresenta algumas limitações que devem ser consideradas ao interpretar os resultados. Primeiro, a amostra foi composta principalmente por médicos de uma região, o que pode não refletir percepções e práticas de profissionais de outras localidades. Além disso, sua abordagem é transversal, o que impede a análise de mudanças nas percepções e práticas ao longo do tempo.
Assim, estudos longitudinais devem ser desenvolvidos para examinar como atitudes e práticas de médicos evoluem ao longo do tempo, especialmente após intervenções ou treinamentos específicos. É interessante investigar a eficácia de programas de treinamento destinados a melhorar a competência dos médicos em abordar questões de R/E na prática clínica.
A R/E desempenha papel significativo na prática médica, com a maioria dos entrevistados atribuindo alta relevância ao tema e percebendo sua influência como predominantemente positiva. No entanto, há uma discrepância notável entre a importância atribuída a esses temas e a preparação percebida dos médicos para abordá-los com os pacientes. Esse descompasso sugere a necessidade de uma abordagem mais robusta e integrada desses tópicos no currículo dos cursos de medicina no Brasil.
Adicionalmente, as correlações observadas entre as escalas P-Durel e EMRI indicam que médicos com maior inclinação religiosa tendem a exibir níveis mais elevados de empatia, ressaltando a interconexão potencial entre R/E e cuidado centrado no paciente.
João Paulo Moreira Fernandes – Graduando – joaopaulomoreira2012@gmail.com
Gabriel David Camargo – Graduando – gabrieldavidcamargo@gmail.com
Vitor Tavares de Assis – Graduando – vita040501@gmail.com
Luana Araújo Macedo Scalia – Doutora – luanascalia@ufu.br
Correspondência João Paulo Moreira Fernandes – Av. Terezina, 1840 CEP 38405-324. Uberlândia/MG, Brasil.