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Educação médica e formação ética: revisão de escopo
Medical education and ethical training: a scoping review
Educación médica y formación ética: revisión de alcance
Revista Bioética, vol. 32, e3851PT, 2024
Conselho Federal de Medicina

Pesquisa


Recepción: 1 Agosto 2024

Recibido del documento revisado: 15 Agosto 2024

Aprobación: 15 Agosto 2024

DOI: https://doi.org/10.1590/1983-803420243851PT

Resumo: O currículo da educação médica passa por profundas transformações visando desenvolver competências práticas para o exercício da medicina e, para possibilitar uma atuação centrada no paciente, a ética precisa ocupar lugar central nessa reestruturação. Este estudo tem como objetivo realizar uma revisão de escopo de artigos dos últimos cinco anos que abordam o tema da ética na educação médica. Dessa revisão, dois resultados se destacaram: a estruturação dos conteúdos de ética no currículo e a formação da sensibilidade ética. A formação ética do futuro médico não pode reduzir-se a uma perspectiva cognitivista de saber argumentar e formular juízos morais, mas necessita assumir também a perspectiva afetiva para a criação de sensibilidade ética que compreende atitudes e competências para captar o problema ético em seu contexto.

Palavras chave: Educação médica, Ética, Currículo, Conhecimentos, atitudes e prática em saúde, Consentimento livre e esclarecido.

Abstract: The medical education curriculum is undergoing profound transformations aimed at developing practical skills for medical practice. Ethics must occupy a central place in this restructuring to enable patient-centered practice. This study aims to conduct a scoping review of articles from the last five years addressing ethics in medical education. Two results stood out from this review: the structuring of ethics content in the curriculum and the development of ethical sensitivity. The ethical training of future physicians cannot be reduced to a cognitivist perspective of knowing how to argue and formulate moral judgments. However, it must also assume an affective perspective to create ethical sensitivity that includes attitudes and skills to understand the ethical problem in its context.

Keywords: Medical education, Ethics, Curriculum, Health knowledge, attitudes, and practice, Informed consent.

Resumen: El currículo de la educación médica experimenta profundas transformaciones que buscan desarrollar competencias prácticas para el ejercicio de la medicina y, para permitir una actuación centrada en el paciente, la ética debe ocupar un lugar central en esta reestructuración. Este estudio tiene como objetivo realizar una revisión de alcance de artículos de los últimos cinco años que abordan el tema de la ética en la educación médica. De esta revisión, se destacaron dos resultados: la estructuración de los contenidos de ética en el currículo y la formación de la sensibilidad ética. La formación ética del futuro médico no puede reducirse a una perspectiva cognitivista de saber argumentar y formular juicios morales, sino que también debe asumir una perspectiva afectiva para crear una sensibilidad ética que incluya actitudes y competencias para captar el problema ético en su contexto.

Palabras clave: Educación médica, Ética, Currículo, Conocimientos, actitudes y práctica en salud, Consentimiento informado.

A educação médica passa por profundas transformações, encurtando o tempo de ensino formal e acentuando a criação de competências e a dimensão do cuidado nos espaços de prática 1. Nessa perspectiva, se o objetivo é educar para o cuidado e as competências no exercício profissional, a ética precisa fazer parte do núcleo central da graduação em saúde. Todavia, há a constatação de que a prática do raciocínio ético de casos é escassa 2.

Não basta conhecer o certo e o errado no agir profissional, é necessário saber refletir sobre os valores da vida e da saúde e discernir suas aplicações na prática 3. Por isso, a educação, como um processo amplo, não deve se limitar a transmitir a ética como um mero conteúdo, mas estimular os estudantes a pensar, refletir e desenvolver pensamentos e comportamentos com base na ética 4.

A educação alicerçada na ética é essencial para um atendimento humanizado e qualificado, além do desenvolvimento de um profissional crítico reflexivo. Espera-se, do processo educacional, a formação de um profissional que atue com princípios éticos 3. Assim, é importante incluir dimensões éticas e humanísticas na formação e no desenvolvimento do aluno, conforme atitudes e valores orientados para a cidadania5.

Alguns autores 6 fizeram uma revisão integrativa sobre o ensino de ética nos cursos de graduação em medicina, encontrando, como resultado, o uso de diferentes métodos de aprendizagem, o ensino desconectado da experiência clínica dos estudantes e os desafios do processo de ensino e de aprendizagem da medicina, alertando para o perigo do uso irresponsável dos quatro princípios da bioética na graduação, criando a falsa sensação de ter completado o módulo de ética.

Este estudo é uma revisão de escopo sobre o ensino de ética nos cursos de medicina, tendo por foco a estruturação da ética no currículo e o que se espera como resultado dessa aprendizagem, explicitado pela criação de sensibilidade ética. Trata-se de reunir evidências sobre como e por qual motivo a ética é ensinada na educação médica. Desse modo, este artigo busca conhecer a produção científica sobre a caracterização do ensino de ética na formação em medicina.

Método

Este trabalho caracteriza-se como uma revisão de literatura do tipo revisão de escopo (scoping study ou scoping review) e visa explorar os principais conceitos em relação à extensão, ao alcance e à natureza de determinada área de conhecimento na literatura 7. O desenho de escopo segue as orientações do Protocolo Prisma-ScR 8.

A partir de resultados descritos em artigos selecionados, esta revisão de escopo descreverá como e para que a ética é ensinada na educação médica durante a graduação e a residência. Para isso, a pesquisa segue as cinco etapas metodológicas: identificação da questão da pesquisa; identificação de estudos relevantes; seleção dos estudos; mapeamento dos dados; agrupamento, resumo e relato dos resultados.

O foco da pesquisa foi saber como se caracteriza o ensino de ética na formação em medicina. A estratégia de busca, realizada em janeiro de 2021, combinou os descritores indexados no vocabulário controlado do Medical Subject Heading Terms (MeSH) “Education, medical”, “Curriculum” e “Ethics”, com o operador booleano and para busca nas bases de dados PubMed e BVS, que inclui as bases LILACS, IBECS, Medline e SciELO. Foram incluídos artigos originais e relatos de experiências (pesquisa empírica) dos últimos cinco anos e que abordavam o tema da ética no ensino e na prática como estudante de graduação e residência médica. Excluíram-se aqueles artigos inadequados ao tema proposto e ao contexto, como teses e dissertações, revisões e artigos teóricos, além dos estudos duplicados.

A partir de uma triagem dupla por pesquisadores independentes, realizou-se a leitura dos títulos dos artigos pré-selecionados e, depois, dos resumos, com base nos critérios de elegibilidade. Assim, após a leitura dos artigos na íntegra, compararam-se os estudos selecionados para obter a amostra final. A busca identificou 1.667 resultados. Após a revisão do título e dos resumos por pares, 78 artigos foram incluídos para análise na íntegra, ficando 75 depois da exclusão dos estudos duplicados. A leitura completa selecionou 25 estudos como amostra final.

Para o mapeamento dos dados, elaborou-se uma tabela de extração de dados composta pelos tópicos: base de dados, título, autor, ano, revista, país, objetivo, método, como a ética é ensinada na formação médica e resultados principais. Os resultados foram digitados em planilha eletrônica no Microsoft Excel 2016 para posterior análise (Quadro 1). Com base nos achados, os resultados principais foram identificados e separados em categorias.

Quadro 1
Síntese dos principais dados dos estudos da revisão

Resultados

Selecionaram-se 25 estudos, publicados entre 2016 e 2020, observando-se maiores números de publicações em 2017 (n=8; 30,76%), 2019 (n=7; 26,92%), 2016 (n=5; 19,23%), 2018 (n=5; 19,23%) e 2020 (n=1; 3,84%). A maioria dos estudos selecionados eram qualitativos (n=15; 57,69%). Para a coleta de dados, utilizaram-se questionários e entrevistas.

Considerando a distribuição geográfica dos estudos, 11 (42,27%) são oriundos da Europa, sendo três (11,54%) da Espanha; sete (26,92%) foram realizados nos Estados Unidos, três (11,54%) na Ásia, dois (7,69%) na Oceania e dois (7,69%) no Canadá. A análise dos dados extraídos dos estudos selecionados mostra dois tópicos principais: percepção (n=16; 59,25%) e currículo (n=11; 40,74%).

A análise temática dos artigos que compuseram o conjunto dos dados da revisão de escopo apontou para dois resultados: “estruturação do currículo” – que compreende tanto o conteúdo quanto o método de ensino, o que e como é ensinada a ética no curso de medicina – e “formação da sensibilidade ética” – que compreende o desenvolvimento da capacidade reflexiva e de compreensão ética a partir do ensino da ética e suas implicações para a prática.

Estruturação do currículo: conteúdos tradicionais e métodos inovadores

Os resultados demonstram que o conteúdo ensinado está identificado com os tópicos acerca da ética e do comportamento profissional 9-14, da bioética 15,16, do consentimento informado 14,16,17, das habilidades de liderança, da tomada de decisão e comunicação 14,16, da eutanásia 18, dos cuidados paliativos 19, dos valores e das competências 20 e dos aspectos da relação médico-paciente 21. Em relação ao método, os estudos descrevem diversos métodos inovadores na forma de ensinar a ética, considerando os diversos desafios éticos vivenciados pelos estudantes e futuros profissionais 22, e a lacuna entre a teoria e a prática, aspecto que tem desafiado o ensino de ética na medicina ao longo dos anos 23,24.

Em geral, por meio da aplicação prática das questões éticas, descreveram-se maneiras mais didáticas para ensinar, com métodos de ensino interativos, experimentais e reflexivos, que transcendem as salas de aula, o que pode aumentar o interesse, a curiosidade e a aprendizagem ativa dos alunos 12,25-27. Também se descreveu a importância de que esses diferentes métodos considerem o ensino por meio de uma equipe multidisciplinar, incluindo outros profissionais de saúde e de áreas afins, como a filosofia 12,27.

Os artigos trataram, em especial, do aprendizado de questões culturais da relação médico paciente, por meio do pre-exchange training, para um entendimento mais global de saúde, tendo presente domínio da cultura e da ética no tratamento dos pacientes de outros contextos 28; um módulo de desenvolvimento pessoal e profissional para adquirir habilidades práticas (personal and professional development) 21; novos métodos de discussão de casos baseados em teorias (theory-based case discussion – TBCD) e em princípios (principle-based structured case discussion – PBSCD) 23; um programa de treinamento padronizado por tipo de residência 29; uma discussão on-line de casos éticos 22; e um programa on-line para tomada de decisão, o values exchange, para examinar questões éticas baseadas na prática 30.

Por fim, outros temas comentados nos artigos foram alguns métodos mais tradicionais de ensino, como aulas e palestras, estudos dirigidos, discussão com colegas 9,16, leituras e práticas de simulação 17, questionários e fóruns 10,11, apresentação de casos clínicos e reflexões escritas 19, filmes e roteiros pós-filme, identificação de dilemas nas histórias assistidas 15,31 e observação da equipe durante a supervisão clínica, com o uso de interações simuladas com os pacientes 26.

Formação da sensibilidade ética

Profissionalismo e valores morais

O principal intuito de abordar a ética na formação em medicina é promover o desenvolvimento pessoal e profissional e proporcionar o crescimento da moral e da sensibilidade ética, para que, na prática, a ética não se limite ao ato puramente técnico da profissão 15. Assim, o ensino deve estar vinculado ao compromisso com os valores e as competências na formação profissional 20,21, além de buscar o desenvolvimento da identidade moral nos estudantes de medicina 31.

Os estudos mostram evidências de que algumas formas de educação ética podem incrementar a sensibilidade moral dos alunos, promovendo médicos virtuosos, por meio do desenvolvimento do raciocínio moral, e com mais habilidades éticas, mediante a sensibilidade para resolver casos clínicos 32. Os estudos mostraram também a evolução do envolvimento do médico no atendimento ao paciente, modificando a abordagem da prática da medicina 33 e despertando a responsabilidade profissional, com foco na qualidade do cuidado ofertado ao paciente 16.

Assim, a formação da sensibilidade ética está relacionada com as diferentes formas de ensinar, esclarecendo suas implicações para a prática profissional. O ensino transversal, que incorpora a ética nos diferentes componentes curriculares, e não só em disciplinas específicas, propicia o desenvolvimento de um profissional reflexivo, o qual, além de identificar as questões éticas da prática, as vivencia com habilidade, confiança, competência e efetividade na tomada de decisão 11,16,17.

Discussão

Os resultados demonstram que não existe muita diferença e novidade em relação aos conteúdos desenvolvidos nas aulas de ética. A busca por inovação acontece quanto ao método utilizado, no qual existe diversidade e tentativas de novas técnicas de aprendizagem mais participativas e interativas, com foco na prática. Estas abrangem o estudo de teorias e princípios éticos a partir de sua aplicação a casos concretos; utilização de ferramentas midiáticas e digitais para dinamizar os conteúdos ensinados; discussão de problemas éticos que emergem da prática clínica; e treinamento para aquisição de valores do profissionalismo médico e de competências práticas, como o respeito pelos corpos dissecados nas aulas de anatomia, a obtenção do consentimento informado e a oferta de cuidados paliativos – todas essas competências implicam a dimensão ética.

Essa preocupação com o método está relacionada aos objetivos do ensino de ética. Buscar aprendizagens mais ativas e participativas efetivam esses objetivos. O célebre bioeticista Daniel Callahan – cofundador do Hastings Center of Ethics –, em um texto iluminador de 1980 34 e que ainda tem muito a dizer sobre a motivação pela qual ensinamos ética, aponta, como primeiro objetivo, estimular a imaginação moral a partir de contextos de desafios e problemas atuais de bioética por meio de filmes, vídeos, relatos de casos e visitas a locais para despertar o emocional por meio da interpelação acerca do contexto analisado. O uso de meios participativos e midiáticos pretende ativar a dimensão emocional, a base para alcançar os outros objetivos.

O seguinte escopo do ensino de ética é o reconhecimento das questões éticas do caso, porque não basta o despertar emocional, é necessário atingir a apreciação racional cognitiva da situação para detectar os problemas éticos. Uma vez reconhecido o problema, é preciso desenvolver habilidades e competências de análise ética para justificar juízos morais e argumentar em favor de decisões éticas. Vários artigos apontam para esse objetivo de criar habilidades de análise.

Uma vez alcançada a decisão ética adequada, é necessário despertar o senso da obrigação moral, pois não basta chegar a um juízo moral que tenha justificativa e argumentos, é preciso transformá-lo num imperativo ético, já que não é uma questão puramente cognitiva, mas volitiva. Como as decisões éticas acontecem num contexto sociocultural e organizacional, um último objetivo do ensino de ética é saber tolerar opiniões contrárias numa deliberação e aprender a reduzir as ambiguidades de qualquer opção, exigindo contínua revisão dos posicionamentos e abertura a questionamentos críticos e à avaliação das propostas de solução 34. Esses objetivos apontam para um itinerário pedagógico do ensino de ética na formação dos futuros médicos.

Essa preocupação pedagógica com a aprendizagem prática constata que a ética não pode ser reduzida a um ato judicativo procedimental de dimensões cognitivas, pois implica comportamentos e atitudes valorativas de dimensões emotivas. Quem defendeu essa posição foi Hofmann 35, o qual acentuou o papel da empatia no desenvolvimento moral, opondo-se a Kohlberg 36, que seguiu a perspectiva cognitivista e enfatizou a formulação de juízos morais como critério de desenvolvimento moral. Quando os dados apontam para a necessidade de formação ética, educar, na prática, para o profissionalismo e para valores morais significa a criação de sensibilidade que se demonstra em atitudes e comportamentos, não apenas na formulação de juízos corretos de acordo com os princípios.

Pellegrino e Thomasma 37 insistem que o exercício da medicina tem um componente ético essencial, tanto em sua estrutura interna quanto em sua expressão sociocultural. Ser médico implica expressar certos valores morais tanto no exercício interno da medicina quanto no papel público na sociedade. Os parâmetros morais da prática clínica e do papel social precisam tornar-se disposições interiores, expressas em atitudes e comportamentos do médico, manifestados espontaneamente em sua prática.

Portanto, espera-se do médico que não apenas formule juízos e tome decisões éticas corretas, seguindo princípios e normas do seu código profissional, mas que seja reconhecido por seu profissionalismo e comportamento moral, expresso em virtudes e sensibilidade moral 38. Logo, a educação ética é aprendizagem cognitiva de aplicação de princípios bioéticos e aprendizado emocional de valores e atitudes, como apontado em uma discussão de revisão integrativa 39.

Os dados demonstram que a introdução de métodos ativos centrados na prática incentiva a sensibilização, percebida como interiorizar valores morais e assumir o profissionalismo, caraterísticas do exercício da medicina. É necessário distinguir entre sensibilidade moral e ética. Sensibilidade moral é saber interpretar uma determinada situação como moral, compreendendo suas causas e consequências, imaginando cenários de solução, criando empatia e responsabilidade. Sensibilidade ética é saber aplicar os princípios e as categorias morais dos códigos de ética profissional. Esse segundo sentido tem uma dimensão cognitiva em saber formular juízos morais.

A sensibilidade moral diz respeito à dimensão afetiva e prática, a qual se expressa em valores e atitudes. Essa diferença é fundamental para a educação ética dos alunos. Os profissionais com experiência prática manifestam primeiro sensibilidade moral para captar dimensões contextuais configuradoras da moralidade do caso e, só depois, a expressam eticamente por meio de diretrizes, enquanto os alunos, nos anos iniciais, são orientados teoricamente pela sensibilidade ética de aplicar princípios 40.

Por isso, a importância de apontar para a prática, no ensino da ética, que aumenta conforme os alunos adentram no internato e na residência médica. Vários artigos da revisão recolhem experiências dos desafios enfrentados pelos residentes. Os alunos precisam amadurecer de uma pura aplicação teórica de princípios éticos a casos concretos para uma sensibilidade de saber interpretar o núcleo moral de determinada situação, discernindo e deliberando caminhos de solução que, depois, precisam ser confrontados com as diretrizes éticas 41,42.

Essa constatação aponta para outra distinção importante no ensino de ética: as diferenças entre as habilidades médicas, referentes à destreza técnica na aplicação de procedimentos e competências, pressupondo tanto as habilidades quanto a capacidade de intuir soluções inovadoras para situações complexas não previstas, incluindo sempre a avaliação das dimensões éticas e comunicativas do caso, o que se adquire com a prática 43,44. Nessa perspectiva, o ensino de ética na medicina não pode reduzir-se a um puro treinamento de habilidades para aplicar os princípios da bioética a casos concretos (sensibilidade ética), mas suscitar competências práticas para discernir e deliberar situações morais complexas e desafiadoras (sensibilidade moral).

Vários artigos usam o termo “treinamento” para expressar a dimensão prática do ensino de ética, apontando uma pura aplicação de princípios, quando o verdadeiro aprendizado de sabedoria prática consiste em interpretar e captar a configuração moral do desafio, ou do problema, que se manifesta em determinado contexto, para só depois ver quais princípios e normas estão referidos a ele. Isso aponta para a necessidade de uma perspectiva hermenêutica no ensino de ética, superando seu reducionismo ao puro modelo procedimental da bioética 45.

Outro dado apontado pelos estudos é a influência do currículo oculto na aprendizagem moral do profissionalismo 46, determinando o processo de socialização dos estudantes de medicina mediante ambientes informais de comportamentos não neutros, embora relacionados com a moral, modelos de atuação de professores-médicos, vieses e omissões implícitos nos conteúdos que incentivam a incorporação de hábitos, valores e maneiras de pensar do ambiente médico, muitas vezes distantes em termos culturais e morais do que é ensinado formalmente na aula de ética. Por isso é necessário formular estratégias pedagógicas para criar resiliência e espírito crítico nos alunos 47.

Também é oportuno o posicionamento de Semberoiz 48, segundo o qual as puras aulas de bioética não conseguem criar sensibilização moral e ética nos alunos se o curso de medicina não promove, em seu ambiente, um marco ético e uma cultura moral caracterizada por profissionalismo, valores morais e competências éticas em seu quadro de professores e funcionários que possa enfrentar e questionar o currículo oculto.

Isso significa que o currículo de ética não pode reduzir-se aos princípios da bioética e às normas legais do código, mas deve incluir conteúdos críticos em relação ao reducionismo clínico do paradigma biomédico e da medicina baseada em evidências, tomados como caminho de solução para as necessidades do paciente, apontando, por exemplo, para as exigências morais e éticas presentes na medicina centrada na pessoa 49, na medicina narrativa 50 e incentivando a compreensão das dimensões antropológicas do processo saúde/doença, com suas consequências morais e éticas para o exercício da clínica.

Bastos 51 demonstrou como a dissecação de cadáveres nos anos iniciais da medicina pode ser um fator responsável pela gradativa desumanização e desengajamento moral do estudante, devido a uma falta de aprendizado de saber lidar com o corpo pessoal e com o sofrimento dos pacientes. Os dados da revisão de literatura, ao contrário, apontam que a dissecação nas aulas de anatomia – componente necessário para a educação médica – pode ser uma ocasião preciosa para o aprendizado de ética pela reflexão sobre a identidade pessoal desses corpos e as exigências éticas de seu manejo 52.

Um desafio novo para o aprendizado de ética é a introdução de tecnologias de inteligência artificial (IA) como ferramentas pedagógicas para o ensino da medicina. Van der Niet e Bleakley 53 defendem que a IA está mudando a face da medicina, e com resultados positivos. Contudo, seu uso apresenta-se com consequências negativas devido à proposta de uma solução instrumental, em que os sintomas do paciente são assumidos pelo computador, o qual oferece o diagnóstico e a terapêutica, substituindo a relação de cuidado, que implica diretamente o corpo do paciente, por uma conexão tecnológica.

Logo, o ensino mediante a simulação realística, por meio de manequins, pode ser válido para simular o ambiente real da prática, mas nunca poderá substituir o contato direto com o corpo dos pacientes para o fortalecimento da relação médico-paciente e o aprendizado do exame físico, indispensável para um diagnóstico centrado na pessoa, e não na doença.

Considerações finais

A maioria dos artigos estão pedagogicamente preocupados com o uso de meios dinâmicos e interativos para o aprendizado da solução de conflitos éticos que aparecem no exercício da medicina. Nesse sentido, vários artigos estão voltados para contextos de prática nas residências médicas. Trata-se da aprendizagem de habilidades de cunho mais cognitivo para argumentar e justificar determinadas decisões perante situações problemáticas. Todavia, a ética não se reduz a esse uso de recursos metodológicos para a resolução de problemas morais.

Alguns artigos apontam para a questão da criação de sensibilidade ética, que não se restringe ao aprendizado de conhecimentos, mas a aquisição de atitudes em relação ao paciente. A questão aqui é a dimensão afetiva para reconhecer suas necessidades e responder com beneficência e autonomia. Isso não faz parte de um puro aprendizado cognitivo, mas de uma interiorização de valores e ideais da medicina que precisam ser captados no ambiente acadêmico e no contexto das práticas dos alunos, momentos em que os docentes tanto ensinam as habilidades e as competências técnicas para o raciocínio clínico quanto testemunham atitudes em relação aos pacientes que os alunos vão incorporando em sua identidade de futuros médicos.

Nesse sentido, as aulas de bioética têm o propósito de ensinar como resolver questões problemáticas da clínica. Porém, elas não bastam para a formação ética. Ainda é necessário que o curso de medicina tenha um marco ético que introduza e inspire o aprendizado das práticas. No fundo, é esse marco ético, comungado por todos os docentes e expressado pedagogicamente em seus modos de ser e de agir com os pacientes na frente dos alunos, que, de verdade, forma a sensibilidade ética do futuro médico.

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Notas de autor

Correspondência: José Roque Junges – Rua Aloisio Sehnen, 186 CEP 93.022-630. São Leopoldo/RS, Brasil.

Declaración de intereses

Declaram não haver conflito de interesse.


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