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LABIRINTOS DA SEXUALIDADE: CONVERGÊNCIAS E DISSONÂNCIAS ENTRE A PSICANÁLISE E A TEORIA QUEER NA ATUALIDADE
Alexandre Simões; Gesianni Amaral Gonçalves
Alexandre Simões; Gesianni Amaral Gonçalves
LABIRINTOS DA SEXUALIDADE: CONVERGÊNCIAS E DISSONÂNCIAS ENTRE A PSICANÁLISE E A TEORIA QUEER NA ATUALIDADE
SEXUALITY LABYRINTHS: CONVERGENCES AND DISSONANCES BETWEEN PSYCHOANALYSIS AND QUEER THEORY TODAY
Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, vol. XXI, núm. 1, pp. 12-22, 2018
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
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Resumo: O artigo aborda as relações de aproximação e distanciamento entre a teoria queer e a Psicanálise, na cena contemporânea. Reconhece o valor da teoria queer para os debates sobre as transformações da sexualidade e das performances de gênero na atualidade e, por outro lado, aponta como a Psicanálise - bem diferentemente do que é proposto por pensadores queer - contribui para este campo, especialmente a partir das elaborações de Jacques Lacan sobre a sexuação.

Palavras-chave: psicanálisepsicanálise,sexuaçãosexuação,teoria queerteoria queer.

Abstract: This article deals with the relationship of approach and distance between queer theory and psychoanalysis, in the contemporary scene. It recognizes the value of the queer theory to the discussions about the transformation of sexuality and gender performances nowadays and, on the other hand, point out as psychoanalysis - very different to what is proposed by queer thinkers - contributes to this field, especially from Jacques Lacan´s elaborations about sexuation.

Keywords: psychoanalysis, sexuation, queer theory.

Carátula del artículo

Artigo

LABIRINTOS DA SEXUALIDADE: CONVERGÊNCIAS E DISSONÂNCIAS ENTRE A PSICANÁLISE E A TEORIA QUEER NA ATUALIDADE

SEXUALITY LABYRINTHS: CONVERGENCES AND DISSONANCES BETWEEN PSYCHOANALYSIS AND QUEER THEORY TODAY

Alexandre Simões
Universidade do Estado de Minas Gerais, Brazil
Faculdade de Ciências Econômicas, Administrativas e Contábeis de Divinópolis, Brazil
Gesianni Amaral Gonçalves
Universidade do Estado de Minas Gerais, Brazil
Faculdade de Ciências Econômicas, Administrativas e Contábeis de Divinópolis, Brazil
Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, vol. XXI, núm. 1, pp. 12-22, 2018
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Recepção: 15 Junho 2015

Aprovação: 12 Dezembro 2015

Do território do gênero à paisagem queer

A sexualidade é um campo que sempre desperta um misto de fascinação e nebulosidade. Como bem o demonstra Michel Foucault, na série de estudos consagrados à história da sexualidade (FOUCAULT, 1984, 1985, 1988), não é surpreendente que ela continue sendo um dos aspectos de nossas vidas mais atravessado pela regulação bem como pelo desconhecimento. Isto se impõe à nossa contemporaneidade, apesar da aparente autonomia do tema e liberalidade dos comportamentos a ele associados nos tempos atuais (LOURO, 2001, p. 541).

Mantidas as devidas proporções, a sexualidade corriqueiramente tende a se apresentar nas práticas sociais e culturais de nosso cotidiano tal qual o tempo, outrora, inquietantemente se apresentava a Santo Agostinho: O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada” (AGOSTINHO, 1964, cap. XI, p. 14-17). Incógnita em boa medida e ubíqua, ela não deixa de nos interpelar, comportando um misto de voz e silêncio, de luz e sombra. Ao buscar apreendê-la, tal qual Santo Agostinho assim o fez quanto ao tempo, damo-nos conta de que há algo nela que nos escapa: um contínuo perto-longe.

Todavia, desde o final dos anos 1980, podemos perceber o gradativo surgimento de reflexões que promoveram deslocamentos profícuos no olhar que vínhamos tendo acerca desta sexualidade-barroca. Estes deslocamentos de perspectiva foram conduzidos por autores oriundos de diversos campos do conhecimento e que, basicamente, focavam seus interesses nas possíveis leituras das transformações em curso na cultura, na crítica social e no âmbito das identidades contemporâneas. Todas estas dimensões estavam passando por francas mudanças nos anos de transição do século XX para o XXI e foi se estabelecendo uma interação de mão-dupla entre elas e o território da sexualidade.

Compreendidos mais amplamente, pode-se facilmente notar que aqueles deslocamentos do olhar voltados à sexualidade certamente também foram debitários dos intensos debates feministas travados nas duas décadas anteriores, somados mais contemporaneamente aos diversos estudos sobre o gênero que dali se impulsionaram. Aliás, as argumentações acerca do gênero e seus aspectos polimórficos foram o fino produto de decantação que adveio das transformações em curso nos domínios das práticas culturais e das identidades contemporâneas.

O amplo campo dos estudos de gênero comportava uma série de circunstâncias que não se restringiam às discussões sobre as próprias performances do gênero, mas implicavam efeitos em uma outra cena: efeitos políticos sobre os sujeitos, as instituições e os laços sociais de forma bem mais ampla (CASTEL, 2003, p. 14). Este desdobramento das discussões, estudos e pesquisas sobre o gênero - e aquilo que aí se despontava sob a insígnia do novo, promovendo consequências sobre outros temas além da sexualidade - mostrou-se (e ainda vem se mostrando) bastante profícuo.

Assim, o gênero foi se incrementando como uma espécie de hiper-conceito interdisciplinar que, em todas as suas dissidências com o sexo biologicista e os dualismos clássicos vigentes neste campo (como normal-anormal, hetero-homo etc.), parecia elucidar, em alguma medida, a agostiniana incógnita epistemológica sobre o tempo, que aqui tomamos a liberdade de transpor para a seara da sexualidade, almejando assim indicar um elemento fugidio também neste campo. Era como se, ao invés de nos perguntarmos sobre o sexo (e continuarmos às escuras, pois, tal qual o tempo, haveria aí algo fugaz), nos indagássemos sobre o gênero e, desta feita, pudéssemos, com mais estabilidade e advertência, saber um pouco mais e melhor e, por conseguinte, teríamos algo mais a dizer: O que é o gênero? Não é preciso perguntar. Basta olhar para a profusão de possibilidades relativas à sexualidade que começaremos a compreender.

O inexorável no campo da sexualidade estaria sendo, de certa forma, melhor delimitado pelo gênero, em seu espectro, do que pelo sexo/sexualidade e seus resquícios biologicistas. Contudo, o gênero - epistemologicamente versátil - não deixava também de ser algo que traria consigo a problematização de suas condições de produção (BUTLER, 2014, p. 27). Ao mesmo tempo, as discussões contemporâneas sobre o gênero, ainda que bastante diversificadas, comportariam um componente transversal de caráter antinormalizador. Não é necessário dizer o tanto que isto é uma vantagem para se localizar e abordar as diferenças no território da sexualidade, oferecendo-nos, pois, uma plurivisão, ao invés de uma monovisão.

Especialmente no campo da Educação - instigada, em boa medida, a pensar sobre a formação dos sujeitos (e os impasses desse processo) - começaram a surgir mais expressivamente indagações que punham em xeque muitos elementos que depois viriam a ser nomeados (justamente para salientar os limites estreitos de sua perspectiva) de heteronormatividade (LOURO, 2001, 2004; SILVA, 1999). Sinteticamente, por intermédio do conceito de gênero, almejava-se questionar os fundamentos da normalização, independentemente de onde esta se insinuasse (LOURO, 2001).

Nas duas últimas décadas, o que temos de mais perspicaz, em meio a essas considerações e questionamentos, é a nomeada Queer Theory. Usualmente, não se traduz a palavra queer. Mantendo-a em sua escrita original, almeja-se preservar a instigação inerente a um pensamento que, sem se acomodar a um nicho, ousa atravessar fronteiras e flertar com o novo. Epistemologicamente falando, este novo, por sua vez, seria mais afeito a se pensar sobre o indecidível, o ambíguo, o fronteiriço e, sobretudo, o deslocador de certezas e pré-concepções no campo da sexualidade:

Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. (...) É o excêntrico que não deseja ser ‘integrado’ e muito menos ‘tolerado’. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência: um jeito de pensar que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do ‘entre lugares’, do indecifrável. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2004, p. 7)

Ainda que nomeada de teoria queer e, portanto, comportar consigo a perspectiva clássica do teoros grego, não devemos considerar que os teóricos envolvidos com estas questões consolidem entre si um único bloco epistemológico, ainda que eles sejam sempre instigados, a seus modos, “a considerar o impensável”, nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva (1999, p. 107). Pelo contrário, existem perspectivas internas muito variadas entre os pensadores queer. Estas perspectivas não impedem que se instalem, entre os arautos do queer, certas aproximações ou, até mesmo, homogeneidades de olhares.

A teoria queer e a Psicanálise

O escopo deste artigo não se volta para o campo das diferenças internas nas paisagens queer; o que especialmente nos interessa, neste recorte, é examinar criticamente um ponto bem específico de convergência entre os pensadores queer no que tange à Psicanálise. Estes, primeiramente, tendem a atribuir um expressivo valor à Psicanálise, na medida em que há o amplo reconhecimento quanto ao espírito de vanguarda desta prática. Esta vanguarda se localiza na crítica à normalização da sexualidade, possibilitada inicialmente por Freud desde 1905 ao menos, com a publicação dos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Tal vanguarda teria como resultado ineludível a possibilidade de se pensar em uma sexualidade para além do campo biológico e, portanto, independentemente de sua visada funcional. Segundo Seidman, citado por Louro (2001), os pensadores queer:

[...] compartilham alguns compromissos amplos - em particular, apoiam-se fortemente na teoria pós-estruturalista francesa e na desconstrução como um método de crítica literária e social; põem em ação, de forma decisiva, categorias e perspectivas psicanalíticas; são favoráveis a uma estratégia descentradora ou desconstrutiva que escapa das proposições sociais e políticas programáticas positivas; imaginam o social como um texto a ser interpretado e criticado com o propósito de contestar os conhecimentos e as hierarquias sociais dominantes. (SEIDMANapudLOURO, 2001, p. 546)

Entretanto, no passo seguinte, os teóricos que abordam o campo do gênero e da sexualidade a partir de uma perspectiva queer, tendem a considerar que esta mesma Psicanálise, de cunho inicialmente inovador e subversivo de uma dada ordem normalizadora, finda por reiterar uma perspectiva ainda dualista quanto aos gêneros. Esta perspectiva dualista acabaria, por conseguinte, mantendo a lógica de subordinação dos gêneros à matriz heterossexual (ARÁN, 2006, 2009). Mais grave do que isto, segundo o discurso queer, esta perspectiva dualista de cunho sexista restringiria em demasia a Psicanálise, obstaculizando-a a enxergar mais perspicazmente uma série de transformações contemporâneas no campo do gênero. Os desdobramentos desse embaraço dualista - que promoveria uma espécie de passo adiante seguido imediatamente por um passo atrás - estaria exemplarmente vigente no ensino do psicanalista Jacques Lacan que, na compreensão de Judith Butler, continuaria atrelado a uma perspectiva acerca da sexualidade “ideologicamente suspeita” (BUTLER, 2014, p. 90).

Em suma, ao ver desses autores, a Psicanálise lacaniana não seria tão subversiva quanto divulga ou pretende ser. O ensino de Jacques Lacan não teria ainda conseguido se desvencilhar de uma cena dual e heteronormativa para lidar com a sexualidade e, assim, não estaria à altura de outras lógicas contemporâneas no que tange à sexualidade e aos gêneros. Considerando uma circunstância presente na cena contemporânea, poderíamos depreender dessa argumentação que o modus operandi, principalmente dos transgêneros (travestis, transexuais, crossdressers etc), acabaria por denunciar a Psicanálise lacaniana como uma iniciativa interessante em uma dada conjuntura histórica (por exemplo, ao longo dos anos 1960 e 1970), mas atualmente anacrônica ou de alcance bastante limitado.

Desta feita, o argumento fundamental da crítica lançada à Psicanálise é que, neste campo, a despeito de sua inovação, ela não conseguiu caminhar pari-passu com as transformações de nosso tempo: as multifaces do gênero teriam deixado a Psicanálise a reboque. Dá-se a entender, portanto, que a Psicanálise teria até introduzido uma subversão na nossa relação conosco e com a sexualidade, quando, por exemplo, Freud reconhece na Psicanálise a dimensão de uma terceira revolução copernicana (SIMÕES, 2008, p. 190). Mas, ela não teria dado o passo imediatamente seguinte que a conduziria (nos planos teórico e prático) a uma interrogação desta ordem: “O que acontece ao sujeito e à estabilidade das categorias de gênero quando o regime epistemológico da presunção da heterossexualidade é desmascarado, explicitando-se como produtor e reificador dessas categorias ostensivamente ontológicas?” (BUTLER, 2014, p. 8).

Examinaremos, na sequência, estes dois passos: o avanço e o suposto retrocesso da Psicanálise quanto ao estatuto do gênero na nossa atualidade. O nosso propósito - já o adiantemos - é indicar que, bem diferentemente do que pode parecer à primeira vista, a Psicanálise (especialmente a partir das elaborações de Jacques Lacan) não se reduz, de forma alguma, a uma perspectiva sexista dual. Pelo contrário, é na Psicanálise lacaniana que podemos encontrar os elementos conceituais de maior alcance para se localizar os acontecimentos e deslocamentos do gênero na nossa atualidade, seja do ponto de vista clínico e/ou político.

Aliás, sem estes referenciais, corremos o risco de não avançarmos além de uma mera (e, às vezes, ingênua) descrição fenomenológica da pluralidade e fluidez das performances sexuais, tornando-nos incapazes de discernir o que é mais maleável daquilo que, diferentemente, é rígido neste território. Sem estes operadores conceituais, ficamos à deriva das enganosas aparências das desenvolturas de uma autodeterminação do gênero, acolhida, bem ao avesso da Psicanálise, por diversos autores queer (BUTLER; RIOS: ARÁN, 2009, p. 97). Entretanto, isto não desautoriza o necessário diálogo mais amplo e atento que os psicanalistas deveriam ter em relação à teoria queer; situação esta muito incipiente ainda em nosso meio psicanalítico brasileiro.

Compreendemos que a crítica lançada à Psicanálise lacaniana, acima ressaltada, apoia-se em uma compreensão excessivamente sintética da argumentação que Jacques Lacan elabora quanto ao campo da sexualidade, principalmente a partir dos anos 1970. Tal como argumentaremos, o que é alegado como dual ou heteronormativo diz respeito ao estabelecimento da diferença no campo da sexualidade (o que é fundamental para se localizar qualquer efeito subjetivo) e a um amplo aspecto que a organiza: a dimensão fálica.

Em outras palavras, a diversidade das performances de gênero, na atualidade, não se impõe sem estar submetida àquilo que se tem e àquilo que não se tem, seja no campo da sexualidade, do desejo ou do amor. E aquilo que se tem ou não se tem, bem como aquilo que faz aparência de se ter ou não, sempre passa pelo falo, ao ver da clínica psicanalítica. É nesse sentido que Freud (1923) ressalta que o falo não é o órgão (no caso, o pênis), mas a organização, isto é, o ponto de referência desde o qual se dá consistência (e miragem) ao que se tem ou não se tem, independente do sujeito se apresentar, para o outro, como homem, mulher, afeminado, masculinizada, travesti, crossdresser, home-garota, mulher-rapazinho etc.

Freud e a desmontagem da heteronormatividade

Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, lançados inicialmente por Freud em 1905, acabaram sendo um dos textos mais revisitados pelo seu autor. Segundo o seu editor James Strachey, Freud se deteve explicitamente sobre a letra deste texto ao longo de pelo menos 20 anos. Pelas notas de rodapé que integram o texto original, além de inserções feitas diretamente no corpo do texto ao longo daqueles 20 anos, podemos perceber a importância deste conjunto de reflexões para Freud e a sua subsequente centralidade na Psicanálise. Esta espécie de work in progress no que tange às elaborações de Freud acerca da sexualidade é usualmente corroborada por seus biógrafos (GAY, 2002; ROUDINESCO, 2014).

Aqui, não iremos nos deter sobre as nuances do texto, que vão desde a sexualidade infantil e o infantil na sexualidade (descoladamente de um raciocínio desenvolvimentista) até a complexa relação estabelecida entre o sujeito e o objeto, passando pelas noções de bissexualidade, libido, sexualidade polimorfa, zonas erógenas etc. O que nos interessa, no escopo deste artigo, é a crucial subversão que Freud realiza. Ele destitui o primado de uma sexualidade até então (aos olhos notadamente da Sexologia daquele tempo e de agora), orquestrada pela Biologia e seus filigranas: a função sexual e a maturação dos órgãos sexuais. Enfim, o ponto central da argumentação freudiana - que comporta não só consequências epistemológicas, mas também práticas, uma vez que doravante não haverá mais como integrar a clínica psicanalítica ao rol de práticas adaptativas ou ortopédicas - é a desmontagem de uma sexualidade que pudesse funcionar ao ritmo da expectativa de um encaixe perfeito entre elementos naturalmente dados a tal. Esta perspectiva, a qual podemos nomear de sexualidade acopladora ou bilátera, findaria por funcionar aos moldes de uma harmonia, tal qual o côncavo que se encaixaria no convexo. Freud, definitivamente, ao destituir o conceito orientador desta perspectiva (o conceito de instinto) em prol de um conceito que comporta, no terreno analítico, uma grande novidade (o conceito de pulsão), acaba por desautorizar - seja do ponto de vista epistêmico, prático ou ético - a sexualidade humana desse lugar supostamente natural em que elementos separados (o sujeito e o objeto, o macho e a fêmea etc.) acabariam por se unir complementarmente.

Por intermédio do conceito de pulsão - esta forma de motor que funciona de maneira constante, sem as oscilações sazonais ou maturacionais do instinto - Freud vai demarcar a relação do humano com aquilo que lhe falta, inserindo a sexualidade, portanto, em um espaço de busca ao invés de um encontro orquestrado pela teleologia biológica. Em uma passagem decisiva dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, após ter examinado os poros que existem nos muros que demarcam a sexualidade normal da dita sexualidade perversa, Freud definitivamente localiza a não naturalidade da pulsão com aquilo que parecia, a princípio, lhe complementar, a saber, o objeto:

Chamou-nos a atenção que imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação entre a pulsão sexual e o objeto sexual. A experiência obtida nos casos considerados anormais nos ensina que, neles, há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em consequência da uniformidade do quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nosso pensamento entre a pulsão e objeto. É provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deva ela sua origem aos encantos deste. (FREUD, 1905/1989, p. 138)

Por intermédio do conceito de pulsão, Freud desnaturaliza o sexo e abre um profícuo caminho para a problematização do gênero. É precisamente em sintonia com esta perspectiva que a teoria queer surge - como um derivado complexo do movimento feminista - na cena dos anos 1980.

Jacques Lacan e a denúncia do erro comum

Para que possamos compreender melhor o equívoco da crítica que autores de relevo no campo da teoria queer lançam à Psicanálise, adotaremos uma estratégia heurística. Faremos alguns recortes acerca de uma circunstância cada vez mais presente em nossa atualidade, na qual verificamos inegavelmente a intensa presença de questões relativas ao gênero, ao sexo e ao corpo que, por culminarem em uma situação extrema, podem funcionar como uma interessante lupa: a problemática transexual.

Quando nos referimos aqui à situação extrema e nela identificamos a transexualidade, buscamos fazer jus ao olhar da psicanalista Paola Mieli que, ao abordar as manipulações e transformações do corpo na nossa contemporaneidade, traça uma distinção entre os procedimentos reversíveis e os irreversíveis (MIELI, 2002). Estas intervenções são possibilitadas e disseminadas por intermédio de um amplo conjunto de aparatos técnico-biológicos, que vão desde as intervenções estéticas e semióticas até a terapêutica hormonal e a intervenção cirúrgica. Certamente, esta experiência nos indica o quanto a Ciência e o sujeito do inconsciente estão longe de estabelecerem relações autoexcludentes ou meramente dicotômicas entre si, como já assinalava Lacan em seu texto A ciência e a verdade: os nós entre estas dimensões são bem mais complexos (LACAN, 1966/1998, p. 878). Quanto às manipulações disponíveis ao corpo (e reconhecemos a transexualidade no terreno da irreversibilidade), Paola Mieli afirma que:

Toda manipulação do corpo de natureza irreversível tem motivações particulares. Como todo gesto que deixa rastro indelével, essas intervenções devem ser estudadas no contexto da particularidade e unicidade da história subjetiva (...). A clínica mostra que a intervenção voluntária sobre o real do corpo se impõe, com frequência, como uma ‘necessidade’; trata-se, então, de interrogar as razões estruturais do que, no nível subjetivo, apresenta-se como ‘necessário’. Em geral, diria que a manipulação irreversível é uma tentativa de dar estabilidade a uma forma que oscila; ela intervém, por exemplo, na cirurgia plástica, para integrar ou excluir um traço físico particular, vivido sob o signo do ‘em excesso’ ou do ‘excessivamente pouco’. (MIELI, 2002, p. 14-15)

Em um dado momento de seu ensino, mais precisamente em 8 de dezembro de 1971 (época em que estava sendo iniciado o seminário intitulado ... ou pior), Lacan lança a sua atenção para uma problemática que estava se insinuando naquele tempo e que, cada vez mais, vem se tornando mais evidente: a do transexualismo (LACAN, 1971-1972/2012). O que estava em jogo era a prerrogativa de uma intensa disjunção intimamente vivida por algumas pessoas e geradora de grande mal-estar para as mesmas: a disjunção entre o sexo e o gênero.

O transexual seria aquele sujeito que, definitivamente, viveria uma constante clivagem entre o seu sexo anatômico (com suas marcas e insígnias face ao olhar do outro) e o gênero. Esta clivagem seria apreendida pelo sujeito transexual como uma inescapável e constante dissintonia, sem necessariamente se fazer acompanhar dos demarcadores orgânicos (presentes, por exemplo, no hermafroditismo ou em alguma outra alteração endócrina) ou de formações delirantes (excluindo-se, assim, a presença de uma psicose na problemática genuinamente transexual). Aliás, estes dois pontos de exclusão - a base orgânica e a possibilidade da psicose - remetem o acontecimento da transexualidade a um lugar diferenciado seja no campo da subjetivação, seja no campo da Psicopatologia (BUTLER, RIOS; ARÁN, 2009). Cabe notar que essa dissonância entre sexo e gênero, nos quadros do discurso psicopatológico atualmente vigente e com pretensões à hegemonia (estamos nos referindo, pois, ao DSM - Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, em sua quinta edição), é localizada no rol da Disforia de Gênero (e já na versão anterior do DSM, categorizada como Transtorno de Identidade de Gênero).

O transexual é o sujeito que, perpassado por essa incongruência entre o gênero e as insígnias do sexo, demandaria uma correção nesse estado, uma vez que o discurso da Ciência, em especial, lhe sinaliza esta possibilidade (SANTOS; MOREIRA JÚNIOR, 2012, p. 223). Esta correção, considerada necessária por estes sujeitos, seria levada a efeito pelos procedimentos técnico-científicos (cirurgias, terapia hormonal etc.), complementados pelos operadores jurídicos, tais como a alteração de registro civil: nome e sexo em documentos oficiais (BENTO, 2006). A demanda de correção corpórea e o estofo desse ajuste por meio da legitimação jurídico-social não são acréscimos acessórios ao que se passaria psiquicamente com o sujeito transexual, mas, diferentemente disto, lhe são essenciais. Em outros termos, a demanda de intervenção na nomeação civil é pleiteada com a mesma tenacidade quanto a demanda de intervenção no corpo, pelos sujeitos transexuais.

Esta divisão entre o gênero e os atributos sexuais seria a base para uma expressão bastante comum, em se tratando do fenômeno transexual e suas apreensões imaginárias: uma mente feminina em um corpo masculino ou o contrário. O bisturi médico e a caneta jurídica, na qualidade de corretores, promoveriam, ao final das contas, uma travessia de fronteiras - sempre em nome de uma adequação praticada pela Ciência aliada ao Biopoder - que, intervindo principalmente em uma parte específica da anatomia (o órgão genital), acarretaria como consequência uma relocalização do sujeito na partilha sexual. Seria uma espécie de passagem forçada (LACAN, 1971-1972/2012, p. 17), realizada sob o aval de uma rigorosa técnica científica. Desse modo, a Ciência seria chamada a corrigir uma suposta aberração (BENTO, 2006, p. 20), dito este comum entre os ou as transexuais.

É precisamente sobre este aspecto - a intervenção cirúrgica modificadora do órgão sexual - que o debate se concentra (CASTEL, 2003). É válido ressaltar que, ao mencionarmos aqui a transformação cirúrgica do órgão anatômico, não estamos deixando de reconhecer que a travessia da fronteira - tanto do lado masculino em direção ao feminino (nomeada, na língua inglesa, de MF) quanto do feminino em direção ao masculino (chamada de FM) - não se reduz unicamente à intervenção sobre o pênis (produzindo, por fim, uma neovagina) ou sobre a vagina (resultando o neofalo).

Além deste aspecto chamativo e pontual (e bastante complexo do ponto de vista da técnica cirúrgica, sobretudo no que se refere à transmutação da vagina em neofalo), há outras intervenções (cirúrgicas e não-cirúrgicas) que vão se dando previamente à cirurgia-maior e também paralelamente ao momento de restabelecimento pós-cirúrgico. Intervenções estas já devidamente praticadas no âmbito do nosso Sistema Único de Saúde/SUS, a saber: tratamentos hormonais, acompanhamento do paciente por uma equipe multidisciplinar1 etc. Todavia, concentraremos nossa reflexão sobre um ponto que chama a atenção significativamente neste campo: a intervenção cirúrgica localizada no órgão genital (pênis ou vagina).

Jacques Lacan argumenta que todo o processo em curso na transexualidade se assenta na ideia de que uma severa mudança no órgão genital implicaria, por conseguinte, em uma mudança no gênero. No caso bem preciso da transexualidade, a mudança que é demandada à Ciência pelos sujeitos não é tida como uma mudança de uma ordem qualquer mas, tal qual salientamos anteriormente, como uma mudança corretora. Podemos reconhecer aqui, portanto, algo mais do que um ajuste orgânico ou a transmutação das saliências, contornos e cavidades de um corpo. O que vemos aqui é um nítido chamado à disciplina do gozo. Lacan reconhece aqui o que ele nomeia de “erro comum: existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual” (LACAN, 1971-1972/2012, p. 17).

O transexualista seria aquele sujeito que incorporaria este engano: crer que seu tormento e sua sensação de inadequação - tão bem descritos por Bento (2006, p. 13) como “aberração” - se devem à natureza do órgão sexual. O que se mistura, portanto, neste engano, é o corpo, a sexualidade e gênero. O transexualista, nesta sobreposição tripla, almeja uma redesignação e, sustentado pela mesma, faz uma demanda à Ciência que, por sua vez, tecnicamente lhe apresenta os recursos necessários para acolher esta demanda. Cabe sublinhar que, tecnicamente, a intervenção no órgão é nomeada de Cirurgia de Redesignação Sexual/CRS ou Sex Reassignment Surgery/SRS. Na lógica transexualista, a correção hormonal e cirúrgica (de fato, um conjunto de cirurgias) poria fim à contradição. Entretanto, vale frisar que a intervenção cirúrgica feita sobre o corpo, acompanhada pelo amplo e contínuo processo de transexuação para além do ato cirúrgico, não implica automaticamente em uma operação sobre o desejo: “O/a transexual pode ser heterossexual, homossexual ou bissexual - isso não abala o sentimento de não-pertencimento ao gênero em que seu sexo o/a posiciona” (BENTO, 2002, p. 31).

Dando sequência ao diálogo com Lacan, é importante ressaltar que foi alguns meses antes do Seminário 19 (desenvolvido entre 1971-1972) que ele introduziu de modo mais sistematizado a problemática do transexualismo em seu ensino. Em uma lição do Seminário 18 (dedicado ao tema do semblante e do discurso: De um discurso que não fosse semblante), exatamente no dia 20 de janeiro de 1971, Lacan menciona as pesquisas do psicanalista norte-americano Robert Stoller que resultaram em um livro publicado originalmente em 1968: Sex and gender. Segundo Lacan, o livro aborda “... um certo número de casos muito bem observados, com seus correlatos familiares” (LACAN, 1970-1971/2009, p. 30).

As observações elogiosas de Lacan devem ser postas junto da lembrança de ter sido Stoller2 um pioneiro, no campo da Psicanálise, a abordar questões relativas à transexualidade e aos estudos do gênero - certamente, marcadas pelas circunstâncias bem específicas dessa época de contestação social nos Estados Unidos bem como em outros países. Ao se referir muito brevemente ao livro de Stoller, Lacan nos apresenta uma concisa, porém precisa, definição de transexualismo: “Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino” (LACAN, 1970-1971/2009, p. 30). Trata-se aqui de uma obra sobre o corpo, sempre inacabada e continuamente revisitada, mesmo quando a cirurgia é, do ponto de vista técnico, bem sucedida. Ou seja, tal como iniciamos a dizer anteriormente, a travessia não se restringe à grande cena do ato cirúrgico, abrindo-se para “... momentos de espanto diante de corpos pré-operados, pós-operados, hormonizados, depilados, retocados, siliconados, maquiados. Corpos inconclusos, desfeitos e refeitos, arquivos de história de exclusão” (BENTO, 2006, p. 19). Abre-se a cena, pois, para um contínuo processo transexualizador.

Na época em que Lacan tece as primeiras observações explícitas sobre a problemática transexual - 1971 - ainda eram um tanto quanto rudimentares as cirurgias e tratamentos endocrinológicos que proporcionariam as travessias do corpo-homem para o corpo-mulher (ainda que já se tivessem passado algo em torno de quatro décadas, desde as primeiras intervenções dessa natureza, nos anos 30 do século passado). Devemos lembrar que foi a partir de 1930, na Áustria, que se iniciaram as primeiras técnicas cirúrgicas que proporcionavam a passagem do corpo-homem para o corpo-mulher, e, ainda assim, em caráter experimental (CASTEL, 2003).

Atualmente, estas técnicas se sofisticaram sobremaneira, ainda que haja uma resistência que não deixa de ser sugestiva para a escuta de um psicanalista: o conjunto de intervenções cirúrgicas que possibilitariam a passagem FM é bem mais complexo do que a transição MF. Devemos notar que a resolução mais recente do Conselho Federal de Medicina, editada em 2010, e que dispõe sobre esta questão3, autoriza a cirurgia do tipo neofaloplastia somente em caráter experimental. Há algo, na própria anatomia feminina, que dificulta a travessia para o outro lado, que dificulta o contorno e o deslocamento integral.

Para concluirmos esta etapa de nosso raciocínio, vale frisar que aquilo que Lacan nos mostra, por fim, francamente na contramão da demanda de correção que justificaria a cirurgia transexualizadora, é que o gênero e a fruição do mesmo não estão circunscritos a um órgão. É por esta trilha que Lacan irá elaborar sua argumentação sobre a chamada sexuação. Na sequência, intentaremos apenas introduzir a problemática da sexuação a partir da Psicanálise, deixando para um outro momento o seu aprofundamento que, por si só, requer uma argumentação à parte que extrapolaria o escopo desse artigo.

Lacan e a instrumentalidade do órgão

Sexuação é o termo que designa o modo bastante específico como Lacan irá abordar a relação de cada sujeito com a sexualidade. Não exatamente como um ponto de partida, porém, como um momento de chegada. Daí, a ideia de processo, de trabalho, de trânsito e deslocamento encrustada na palavra sexuação, bem distante da aparente naturalidade ou estabilidade dos termos sexo e sexualidade. Para sermos mais precisos, devemos ainda considerar que sexuação é o modo como Lacan, a partir certamente daquilo que é constatado no campo da experiência analítica, define as formas possíveis de cada sujeito se haver com os efeitos da castração. Em suma, por sexuação, estão em jogo mais as trajetórias do que os atrelamentos que enrijecem: routes ao invés de roots.

É exatamente no Seminário 20 (desenvolvido por Lacan entre 1972 e 1973) que surgem, de maneira mais acabada, as nomeadas fórmulas quânticas da sexuação. Para localizá-las, sem o costumeiro mal-entendido de lê-las como uma sofisticada reiteração de uma lógica dual, sexista, falocêntrica e heteronormativa, é imprescindível que as olhemos lateralmente e passemos antes por alguns outros momentos do ensino de Jacques Lacan. Primeiramente, um pouco antes do Seminário 20, é válido considerarmos o trabalho-em-andamento que permitiu a Lacan formalizar as possibilidades de inscrição da castração nos seres falantes e, por conseguinte, a localização da sexualidade em relação a se ter ou não o falo, e as consequências disto. É importante, pois, que consideremos algumas sinalizações do Seminário 19 (desenvolvido entre 1971 e 1972) que, de maneira mais explícita, servem de andaimes para as construções subsequentes do Seminário 20.

Em dado momento, Lacan irá propor que “[...] o sexo não define relação alguma no ser falante” (LACAN, 1971-1972/2012, p. 13). Trata-se aqui, tal como já expusemos anteriormente, de um argumento que se alinha perfeitamente a todo o empenho de Freud, desde os Três ensaios sobre a sexualidade, de não estabelecer o discurso psicanalítico acerca da pulsão a partir do referente anatômico. Almejando ainda uma maior clareza quanto à completa insuficiência da base anatômica poder nos dizer algo acerca do que vem a ser a nossa relação com a sexualidade, Lacan acrescenta:

Não é que eu negue a diferença que existe, desde a mais tenra idade, entre o que chamamos de uma menina e um menino. É inclusive daí que parto. Captem desde já que, quando parto daí, vocês não sabem do que estou falando. (LACAN, 1971-1972/2012, p. 13)

Notemos que Lacan é devidamente cuidadoso neste momento. Ao invés de partir daquilo que parece ser, em si, menino ou menina, ele opta por passar inicialmente pelo necessário reconhecimento do Outro (esta dimensão da linguagem), e se referir àquilo que “chamamos” de menino ou menina. De toda forma, o que gostaríamos de destacar, nesta sinalização, é o ponto de ignorância - comum a nós todos - que Lacan considera: olhando para a anatomia, nada saberíamos acerca da relação do sujeito com a sexualidade.

O que fazer com o corpo? Que destino dar a um corpo? Indagações como estas não têm nenhuma relação com a capacidade instrumental de manusear a anatomia. Contudo, não podemos deixar de notar que as cirurgias de redesignação sexual situam-se neste nível da instrumentalidade de um órgão, instrumentalidade de partes do corpo. É precisamente a partir daquele não-saber indicado por Lacan que a pulsão, enquanto conceito fundamental da Psicanálise, se estabelece. É isto, por exemplo, que comporta indagações da seguinte ordem:

Que processos presidem a eleição por um sujeito de seus objetos de desejo? Como, por exemplo, o amor pode se transformar em ódio? Como um desejo por um determinado objeto pode ser obrigado a deslocar-se em direção a outro objeto? (...) Que mecanismos presidem nossas escolhas sexuais? (IANNINI; TAVARES, 2013, p. 7)

Retomar esta sinalização é bastante válido, sobretudo em uma época como a nossa, na qual a intervenção, manuseio e transformação do corpo - tudo isto que, por exemplo, estaria ao alcance de uma instrumentalidade técnico-científica, ao alcance, pois, das pinças, cânulas, bisturis, aspiradores e linhas de sutura - parecem ser tão possíveis e, sobretudo, resolutíveis. Lacan argumenta que a possibilidade de manuseio do órgão não abriria automaticamente um caminho de intervenção sobre a relação com a sexualidade. De forma chistosa e recorrendo a uma imagem pouco comum nesta discussão (a lagosta e suas pinças), ele afirma que

A pequena diferença já é destacada desde muito cedo como órgão, o que já é dizer tudo - organon, instrumento. Será que um animal tem ideia de que possui órgãos? Desde quando já se viu isso? E para quê? Por acaso bastaria anunciar que todo animal - falei disso noutro lugar, aqui vou dizê-lo de outra maneira, é uma maneira de retomar o que enunciei recentemente a propósito do chamado gozo sexual como instrumento do animal - todo animal que tem pinças não se se masturba? Essa é a diferença entre o homem [homme] e a lagosta [homard]. (LACAN, 1971-1972/2012, p. 13)

E é precisamente neste ponto, onde Lacan fala jocosamente do homem e da lagosta (e não do homem e da mulher ou do macho e da fêmea) que ele introduz elementos imprescindíveis para não se compreender de modo reducionista aquilo que surgirá, no Seminário 20, quando ele se referir mais diretamente à posição-homem e à posição-mulher. De maneira provocativa, poderíamos dizer que examinar o homem e a mulher sem considerar previamente o homem e a lagosta - ao menos na argumentação lacaniana - é fonte de equívocos.

Considerações finais

O que Lacan irá desenvolver na sequência de seus argumentos não se refere a duas condições anatômicas ou a somente duas possibilidades de fruição do gênero que, assim sendo, deixaria um bom número de versatilidades de gênero do lado de fora ou abruptamente - tal qual um Procusto psicanalista - reduziria todas elas a duas únicas vias apenas. Bem distintamente disto, Lacan aborda a sexuação por intermédio de dois modos de gozo. Estes dois modos de gozo podem transpassar diversos gêneros, uma vez que estes estariam subsumidos a dois posicionamentos (LACAN, 1972-73/1985, p. 97, 102): um gozo face a uma presença (gozo fálico) e um gozo face a uma ausência (relativo à posição chamada mulher). A castração - conceito também princeps para o psicanalista - é a maneira como estes modos de gozo se operacionalizam. Um, pela demarcação de um perímetro (o que permite que ele se agrupe, se coletivize, faça um conjunto e uma totalidade); outro, pela assíntota, consequentemente, tendendo para uma abertura que impede a demarcação de um perímetro, logo, de uma totalidade e, por esta mesma razão, impossível de ser abordado a não ser no caso-a-caso. Vale frisar que, nesta segunda direção, há tanto homens quanto mulheres aí inseridos (LACAN, 1972-73/1985, p. 102).

Se quisermos chamar isto, simplificadamente, de homem (no primeiro caso) ou de mulher (no segundo caso), é facultativo, é uma “abreviatura”, para usarmos uma palavra de Lacan nesta questão (LACAN, 1972-73/1985, p. 87). Ou melhor, quando nos referirmos àquelas duas posições como a do homem e a da mulher, estamos dando sequência ao vício enganoso de se buscar, na protuberância ou cavidade anatômicas, a relação de cada um com a sexualidade. Mas, se há esta insistência, tudo bem: teríamos aqui o “dito homem” e a “dita mulher” (cf. LACAN, 1972-1973/1985, p. 107), desde que isto não nos impossibilite de considerar que “todo mundo sabe que há mulheres fálicas, e que a função fálica não impede os homens de serem homossexuais” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 97).

Clinicamente, isto nos indica que a escuta do psicanalista deve sempre saber distinguir, a cada gênero, aquilo que se apresenta na lógica da demarcação do perímetro (o gozo fálico) e, sempre ao lado disso, aquilo que a isto escapa, colocando alguém que se apresente como macho, fêmea, travesti, gay, transformista, bissexual, transgênero etc., como um caso único, um caso cuja operação (operação que cada um faz com seu gozo e não somente à do transexual que se submete à cirurgia) não se totaliza.

Este é o labirinto do qual não se escapa, com mais ou menos performance de gênero.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Vide resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.955/2010 e portarias do Ministério da Saúde: no 1707, de 18/08/2008 e no 457, de 19/08/2008.
2 Cumpre destacar que Lacan (1970-1971), no Seminário: livro 18 - De um discurso que não fosse semblante, também acrescenta relevante crítica ao autor, por não ter considerado, na abordagem da transexualidade, a estrutura psicótica e o mecanismo da foraclusão.
3 Vide resolução CFM, nº 1.955/2010.
Autor notes

Alexandre Simões -alexandresimoes@terra.com.brGesianni Amaral Gonçalves -gesianni@terra.com.br

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