RESUMO: A partir do estudo de manuais estatísticos para transtornos mentais, apontamos efeitos problemáticos em sua estruturação. Segundo nossa hipótese, o amplo uso dos manuais estatísticos por práticas clínicas teria por fundamento a inserção do realismo ingênuo na forma de investigação, tanto teórico quanto clínico, e a ausência de considerações ontológicas que indiquem o tipo de interatividade entre sujeito e outro, efetivando também o efeito looping com o diagnóstico classificatório. Como resultado, propomos que o afastamento de uma consideração à ontologia implica na construção de modelos clínicos que perdem seu espaço transformativo, ao centrarem-se nas figuras da observação e da descrição.
Palavras-chave: manuais diagnósticosmanuais diagnósticos,ontologiaontologia,epistemologia da psicanáliseepistemologia da psicanálise,crítica da metafísicacrítica da metafísica.
Abstract: Based on the study of mental disorders manuals, we highlight problematic outcomes of the way they are structured. According to our hypothesis, their wide use (in clinical practice) is founded upon the insertion of a naïve realism into the investigation (both theoretical and clinical) - and also on the absence of further ontological considerations (which would indicate the kind of interactivity between subject and the other). This generates a looping effect regarding classificatory diagnosis. Thus, we propose that the lack of taking ontology into consideration implies the construction of clinical models that lose their transformative space, by focusing on observation and description.
Keywords: diagnostic manuals, ontology, epistemology of psychoanalysis, critique of metaphysics.
ARTIGO
DE QUE ONTOLOGIA? IMPLICAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS E REALISMO INGÊNUO NA RACIONALIDADE DIAGNÓSTICA
Which ontology? Epistemological implications and naïve realism in diagnostic rationality
Recepção: 18 Novembro 2019
Aprovação: 27 Julho 2020
Parece evidente pensar que a exclusão, a inserção e a proposição de quadros nosográficos para transtornos mentais, e sua absorção por parte de práticas clínicas e terapêuticas, tenham passado por um método científico a fim de assegurar certo grau de confiabilidade para seu emprego. Também parece correto dizer que a exigência de cientificidade seja tomada como elemento valorativo na promoção de políticas de saúde. Embora tais atribuições sejam assumidas aqui, nos interessa apresentar e criticar as modalidades constituintes de um método, quando esse prescinde de aspectos de uma ontologia1 para circunscrever certos limites e efeitos de suas pesquisas.
Nesse sentido, ao tomar o modelo diagnóstico estatístico, assumimos que a ausência de uma referência ontológica a partir do DSM-III (DUNKER, 2014) promoveu práticas clínicas não orientadas pela fala, e permitiu a retomada da figura do observador como um dos pilares da compreensão de um quadro clínico. O objetivo, nesse sentido, ao contrário de ceder à confiança descritiva para transtornos mentais, é o de compreender a psicopatologia a partir de uma discussão que envolva racionalidade diagnóstica, fundamentos ontológicos e a maneira pela qual as práticas clínicas dão condições de provas para estabelecer seu estatuto epistemológico. Dessa forma, retomamos a discussão da psicanálise com a ciência, não para indicar alguma cientificidade desejável, mas para pôr em questão os efeitos da oposição entre ciência e ontologia em modelos classificatórios.
Dessa tomada de posição, nosso texto adotou um movimento que se pauta por três eixos de discussão. No primeiro, a partir de Hacking (1995; 1999; 2009; 2012), explicita a crítica ao realismo ingênuo contido em procedimentos ligados aos manuais estatísticos classificatórios, para indicar a não-identidade entre realidade una e realidade de intervenção, em especial na ausência de uma concepção ontológica que sustente essa posição para as práticas clínicas. No segundo, contido na leitura de Lacan (1957/1998; 1958/1998; 1965/1998), trata a psicanálise lacaniana como operadora crítica da relação entre manuais diagnósticos e sua epistemologia de base, dada a maneira pela qual se efetiva uma clínica a partir do modelo classificatório. Durante todo o texto, tomamos a psicanálise lacaniana como modelo de redescoberta da ontologia na proposição de uma psicopatologia (DUNKER, 2017), considerando, pois, haver em Lacan uma dimensão ontológica do tempo (tempo lógico) e uma nova estrutura da interpretação do analista, a fim de que fosse possível evitar certo representacionismo clínico que pudesse atribuir ao analista o lugar da realidade. Por último, por proposições ontológicas contidas na psicanálise, em especial aos seus critérios de compreensão da realidade e da relação entre sujeito e outro, mostramos limites da técnica orientada pelo modelo descritivo, a partir do momento que o clínico opera como observador dos signos patognomônicos de uma categoria diagnóstica.
Neste primeiro momento, trata-se de mostrar que tal atitude do realismo científico (HACKING, 1999) - mais precisamente o realismo ingênuo, constituído pela ideia de que há um real e que esse pode ser alcançado pela via de um método de observação controlado, sob o pretexto do máximo rigor do pesquisador -, está presente na construção de manuais diagnósticos estatísticos para transtornos mentais, sendo absorvido pelas terapêuticas, bem como pelas práticas médicas figuradas pela psiquiatria remedicalizada (SERPA JR, 2004). Evitando neste texto o problema enquanto parte do campo filosófico2, focaremos nas repercussões que isso provoca em práticas clínicas e modalidades terapêuticas, em especial partindo do entendimento de que pesquisas em ciências sociais e humanas são caracterizadas pela variedade de categorias e classificações em um período historicamente circunscrito (HACKING, 2002), tendo suas descrições imanentemente tensionadas ao social3.
Dessa forma, ao pensar o desenvolvimento das pesquisas, quando essas se valem de dados estatísticos na construção de categorias clínicas (CALAZANS; NEVES, 2010), como no caso do DSM-V, precisamos questionar o regime ontológico presente nessas fundamentações e suas repercussões específicas ao campo das práticas. A esse questionamento, assumimos que toda prática se opera com uma ontologia, seja ela refletida ou não. Nesse caso, excluir a dimensão ontológica de uma prática também inclui não fazer a crítica do método, isto é, não repensar o alcance de um dispositivo e os limites de seu uso. Nesse sentido, questionar o regime ontológico é questionar os efeitos normativos de poder. Mais ainda, se apostamos na retomada dessa crítica para repensar a tensão entre teoria e prática no campo, é para apontar que os desenvolvimentos de novas categorias em manuais diagnósticos, quando marcadas pelo estabelecimento de signos através de consenso entre pesquisadores, opõem-se, por exemplo, a práticas clínicas e investigativas marcadas pela fala, em que o sofrimento possa se organizar a partir de uma trajetória singular e que a posição assumida pelo clínico seja minimamente cautelosa em seu diagnóstico inicial.
Nessa perspectiva, temos que artigos se utilizam de incidências e correlações estatísticas (AGUIAR; RIBEIRO, 2018; SANTOS; BARROS; ANDREOLI, 2019), a título de que se possa perceber a prevalência de idade, gênero, a recorrência familiar e seus efeitos crônicos para avaliar diagnósticos correntes nas pesquisas associadas a novas terapêuticas. O que se vê é que tais pesquisas se utilizam de modelos ligados à epidemiologia e seu ferramental estatístico para confirmar hipóteses clínicas, ao adotar a terminologia do DSM para pensar problemas de saúde mental. Isso em jogo, os casos clínicos têm se eximido de suas possibilidades de descobertas, pois esperam confirmação clínica de outros campos, dando a esses o acolhimento de suas provas. Para tanto, queremos apontar que a clínica não precisa do aval epidemiológico para construção de sua racionalidade diagnóstica (MILAN-RAMOS; MORAES; LEITE, 2018).
Nesse cenário, a justificativa metodológica quantitativa que avançaria o diagnóstico e a clínica é utilizada publicamente como apelo à confiança do procedimento. No entanto, estamos mais afeitos a questionar tal construção conceitual, através daquilo que Lacan chamou de subversão, isto é, girar a partir de outro eixo e passar a considerar o problema a partir de outros princípios (CALAZANS; NEVES, 2010). Nesse ponto, se fazemos pesquisas com pessoas e, no caso dos manuais diagnósticos, atribuições a pessoas, pesquisas que se utilizam de categorias descritivas para transtornos mentais devem levar em conta, pelo próprio regime de circulação da palavra, que certas categorias de pessoas passam a existir a partir do momento em que se veem incluídas em uma categoria, já que, por efeito interativo, esta é capaz de promover identificação com aquele que se reconhece em suas descrições. Desse modo, não só a identificação, mas a modificação da categoria, é possível, dado que a circulação tem por efeito o acréscimo de suas próprias singularidades aos critérios diagnósticos. Assim, o efeito looping (looping effect) de Hacking (1995), como descrito acima, aponta que a maneira como falamos ou propomos teorias científicas em ciências humanas, por consequência, manuais diagnósticos que orientam as práticas, se não coincide com o objeto que estudam, também cria determinados fenômenos no momento em que se utilizam categorias para descrevê-las.
Para tanto, propor e falar sobre objetos no mundo implica uma relação direta do tipo interativo, na qual a observação não se separa dos dados e sua formalização implicará em uma prática com pessoas. Nesse caso, lembremos que o próprio ver, na prática científica, se vale como um estado experimental carregado de teorias (KUHN, 1970). Nesse rumo, é preciso reavaliar certas distinções clássicas, ou ainda que, por causa delas, a ciência consistisse em uma prática cumulativa e dedutiva por excelência, que são pontos de partida nas pesquisas para promoção de manuais diagnósticos, muito próximo daquilo que Popper (1979) propunha em comum em sua epistemologia.
Nesse sentido, se os quadros de metodologia científica localizam dualismos de investigação (observação versus intervenção, qualitativo versus quantitativo, sujeito versus objeto etc.), a crítica de Lacan (1966/1998) aponta para uma reforma do sujeito, no princípio da ciência moderna, levando-nos a situar tais dualismos como uma forma de assegurar a experiência pela delimitação da realidade, supondo a capacidade de sua reprodução técnica. Em outra chave, se essas distinções existem, entendemos que elas correspondem à pretensão de demarcar teorias mais ou menos rigorosas, seja pelo signo da eficiência, ou daquelas mais abertas à subjetividade. Quando a separação de pesquisas insiste em opor, por um lado, as afeitas ao dado puro e outras mais influenciáveis pelo pesquisador, o modelo de compreensão alude, na sua origem, a cisão das ciências na saúde mental entre ciências humanas e ciências naturais, de maneira que as ciências humanas estariam às voltas com uma distinção antropológica, em termos de psiquismo, e as ciências naturais orientadas ao rigor do procedimento e a clareza de seus meios de pesquisa. A essa tendência no campo epistemológico dos manuais diagnósticos, teríamos que o esquecimento do ser (crítica da metafísica), como categoria fundamental, variou a serviço de um naturalismo. Assim, indicamos que, nesse modelo, o fio condutor das ciências é o de que a cientificidade desejável consiste naquela em que a natureza pode ser levada a um fato último (WHITEHEAD, 1963), sendo esse o objetivo final das ciências.
Ante tal lógica de metodologia científica, orientada por um axioma desejável de cientificidade, seja como uma orientadora de inclusão e exclusão de certas teses na formalização de manuais, seja como um itinerário de descrições, apontaríamos que, antes de se adequar ao método dito científico, poderíamos tencioná-lo internamente, questionando a ontologia na qual as práticas clínicas têm se apoiado, seja antecipadamente firmando compromissos na construção de suas metodologias, seja pelo esquecimento de considerações ontológicas, ou mesmo em sua possível exclusão. Dessa forma, indagamos se a clínica tem pensado sua fundamentação a partir de seu regime próprio de trabalho ou, por outro lado, se apressadamente requisita outros campos para dar provas de sua rigorosidade. Qual o tipo de fundamentação que os manuais diagnósticos têm empregado para formalizar suas categorias diagnósticas e ampliar seu leque de pesquisas? Desse modo, estamos a inserir os acréscimos de uma ontologia, especialmente levando em conta uma epistemologia não construcionista, que preconizam que os pontos de vista criam sujeitos (VIVEIROS DE CASTRO, 2018) e determinam racionalidades na relação entre sujeito e outro, ao contrário da lógica que tenta cercar a dimensão subjetiva de um quadro psicopatológico a partir de uma correspondência, quase unívoca, de identidade entre critérios diagnósticos e fala.
A psicanálise lacaniana constitui nosso pano de fundo para pensar o problema do método na repercussão da construção dos manuais diagnósticos estatísticos, em especial para redefinir o quadro que opôs ontologia e ciência. Assumimos que a psicanálise faz parte do campo preocupado com a cientificidade, já que, mesmo como uma antipsicologia (DUNKER, 2017), ela também abriria espaço para repensar o estatuto de cientificidade e os critérios de validação nos modelos classificatórios.
De antemão, lembremos que a psicanálise poderia se supor incoerente à verdadeira atitude científica (POPPER, 1987). Em relação a isso, parece haver ao método psicanalítico senão um horizonte de dilema, isto é, se acomodar a um método que não a comporta, ou mesmo o de se afastar do campo da ciência. Nessa situação, se optarmos por acolher a crítica popperiana, compreendemos que ela advém menos em admitir a inconsistência interna da psicanálise, e mais pela aspiração mesma de se adequar ao modelo das ciências ditas duras. Em relação a isso, indicamos, por exemplo, que os manuais diagnósticos optaram em assumir a estratégia da operacionalidade e uso de descrições ateóricas (DUNKER; KYRILLOS NETO, 2011) para que o procedimento fosse menos ligado ao risco de uma decisão (fator humano), e que pudesse ser pacificado pela classificação em critérios estatísticos.
Em relação ao problema, Lacan na psicanálise, considerando a questão da cientificidade, tentou realizar a quebra da relação observação e mundo e das formas ingênuas do realismo na compreensão do mundo, de forma a afastar o campo de qualquer pretensão de contornar a realidade de forma objetiva. O seu projeto de desbiologização da economia freudiana (BEIVIDAS; RAVANELLO, 2009), a crítica da leitura desenvolvimentista da libido em fases, a política da transferência, ou o entendimento da incoerência de uma interpretação como modo de enunciar uma verdade ao analisando foram formas de Lacan afastar a psicanálise de um modelo de explicação por vias genéticas ou objetivas (LACAN, 1950/1998), ou seja, que, antes de indicar um tipo de epistemologia, haveria de ser feito o exame de sua ontologia. Assim, a postura de fundamentar a experiência psicanalítica por uma “uma teoria histórica do símbolo, de uma lógica intersubjetiva e de uma temporalidade do sujeito” (LACAN, 1953/1998, p. 290) foi a de assentir um debate científico em psicanálise que não fosse o de adequação, mas o de retomada de uma ciência que fizesse frente ao naturalismo das funções do ego que florescia nos Estados Unidos, com autores como Mahler, Pine e Bergman (2000) e Loewenstein (1953), que representavam a ideia de uma possível distinção da experiência entre pesquisador e mundo; nesse caso, analista e analisando. Assim, temos que, a partir de Lacan, haveria a tentativa da psicanálise de contornar problemas ontológicos pelo enfrentamento dos problemas metafísicos da linguagem, da relação de sujeito e outro, além de repensar a categoria de tempo e conceito (DUNKER, 2017). Dessa forma, entendemos que o programa lacaniano permite uma crítica da metafísica que o campo psicanalítico deve efetuar sobre si mesmo, através dos limites de sua ontologia (DUNKER, 2017). Propomos voltar à mesma crítica, agora em relação às matrizes epistemológicas que presidem a construção dos manuais diagnósticos, e que usam de certa atitude realista científica como forma de assegurar os critérios de racionalidade diagnóstica.
Dessa forma, temos Lacan (1958/1998; 1960/1998) contrário às proposições metodológicas que reenviam a questão do método ao formato das ciências naturais. Ao abordar as decisões de método, trouxe à psicanálise um diálogo com outros campos de conhecimento, em especial o estruturalismo linguístico, que lhe permitiu não recorrer às referências naturalistas. Nesse sentido, a posição lacaniana não corresponde ao naturalismo como ideal de cientificidade (RAVANELLO, 2009) e faz oposição aos trabalhos que tentam se valer a partir da redução biológica dos fenômenos mentais (DAMASIO, 2012; CHANGEAUX, 1998).
Nessas circunstâncias, ainda assim poderia se questionar qual a validade e a pertinência da psicanálise como alternativa ao debate acerca de sua epistemologia, já que ela mesma não possui concordância interna frente a alguns temas, em especial no que tange à sua ontologia, ponto crucial que queremos defender ao pensar os manuais diagnósticos. Entre as críticas que a psicanálise recebeu, mencionaríamos a interpretação de Popper (1987) de que ela passaria ao largo de conjecturas passíveis de deduzir consequências em teste de refutação, ou de que não seria possível confirmar ou verificar, em estado geral, as observações realizadas (CARNAP, 1988). Nesse caso, não se trataria, enfim, de se defender do crime de não adequação, de cair na discussão em termos de presença legítima ou ilegítima da psicanálise no rol das ciências? Nesse sentido, entendemos que o caminho é indicar que a racionalidade requerida pelas críticas destes autores exclui outras formas de materialismo - a rigor, o materialismo da linguagem - e salientar que essas críticas podem ser redefinidas a partir da leitura de outros autores, como Viveiros de Castro (1996) e Hacking (2012), que tentam pensar regimes do saber por meio de matrizes relacionais.
Da nossa posição, assumimos que perfilar-se como anticiência não torna a psicanálise menos parte do debate científico (DUNKER, 2017). A acepção estrutural da forclusão do sujeito no discurso científico (LACAN, 1965/1998), se requerida enquanto discurso avesso à ciência, admite a separação do campo psicanalítico no debate público com a ciência, visto que parece contraproducente dispor da forclusão como forma estrutural do discurso científico sem antes interrogá-lo em nossa atualidade. Dessa forma, é necessário indicar a ideia de Stengers de que ciência não se restringe a uma discussão formal, mas também em relação ao poder de intervenção, enquanto uma política não restrita às disciplinas científicas (DIAS et al., 2016). Assim, se a ciência a nos referir não acolhe a psicanálise, ou se a psicanálise estaria a passos lentos no cumprimento dos requisitos exigidos pela boa prática científica, como a prova experimental, estaríamos indicando a existência mesma de uma boa prática científica que poderia servir a todos os campos e ser feita nesses termos, levando-nos à fantasia de um método único. Nesse sentido, estar ao lado de uma concepção de verdade que se estabelece a partir do campo da enunciação, do sujeito e da contingência, como parte integrante da ciência moderna que atua sob seus restos (IANNINI, 2013), exige mostrar uma prática justificável e de abertura a outros campos. Por outro lado, é preciso contrariar a intenção positivista de uma definição partilhada de metodologia científica, atrelada às exigências de um naturalismo e fora da imanência linguageira. Mais precisamente, a tese de uma una e confiável metodologia científica corresponde, muitas vezes, a um realismo ingênuo no interior de algumas práticas, nutrido de um modelo ideal e inatingível de ciências ditas duras.
Desse modo, da noção de ontologia temos que o refreamento que essa adquire em manuais diagnósticos inibe a compreensão de seus efeitos iatrogênicos. A irreflexão em termos de ontologia possibilita o tensionamento ingênuo em relação ao social. A categoria diagnóstica, ao limite do observador, atesta para certos limites da descrição, como parece ser o caso dos diagnósticos comórbidos, em especial entre os transtornos de personalidade. Em situações como essa, em que localizamos uma dificuldade da técnica, notamos a ocorrência do fator não refletido das modalizações possíveis da realidade, no interior das descrições dos transtornos, que, se não admitidos, podem ser sobrepostos pelo julgamento moral daquele que exerce a função de atribuir o diagnóstico. Nesse caso, a assimetria de valores, do clínico sobre o paciente, permite que uma questão de costumes seja redimensionada em uma hipótese sobre a natureza.
Acerca da construção de manuais diagnósticos, investe-se, muitas vezes, na divisão epistemológica que opõe pragmatismo e realismo (ZORZANELLI et al., 2016). Recentemente, tal discussão voltou à tona no debate entre Thomas Insel (NIMH)4 e a publicação do DSM-V (CAPONI, 2014). Nesse sentido, compreende-se que o realismo estaria situado na crença de uma existência independente de entidades (categorias diagnósticas) no mundo, e o pragmatismo no lugar de que categorias são contingências sociais. Nesse ponto, indicamos que, mesmo a suposta dualidade - que, pela via pragmática, viria a ser cautelosa em sua definição - acaba por estabelecer uma política positiva de categorias, dada a circulação realista do fenômeno (“ter depressão”, “ser depressivo”).
Em uma abordagem clínica, haveria outro dimensionamento. Pela consideração acima, o realismo acerca de transtornos mentais aponta que as entidades que as categorias representam existiriam independentemente das concepções do pesquisador. A posição pragmatista pareceria admitir que o que está em jogo é a forma como concepções de vida e valores se organizam, e que valeria a transitoriedade como política do transtorno. No entanto, ao seu uso clínico, se perde a dimensão ética que poderia se supor, já que a descrição que haveria de ser provisória se tornaria uma entidade realista no ato de atribuição. Tudo se daria como se fosse possível admitir um compromisso tácito, de que se poderiam tomar decisões pragmáticas para o estabelecimento de entidades realistas, criando a estranha figura de um pragmatista nos costumes, mas realista nos valores.
Nesse ponto, Latour (2017) acentua que tais discussões estão mais interessadas em saber quem deve dominar o povo, a rigor, poder direcionar as disposições de um regime de saber, sem levar em conta certas dimensões das práticas. Nos manuais, localizamos a menção de atribuições realistas para a existência de entidades, mesmo que ainda o façam no sentido de um anseio por localizações e marcadores biológicos5. Em outra intervenção, admitindo esse estado de oposição velada, em que pese o dimensionamento epistemológico, temos o retorno na forma de consenso tácito acerca da intervenção pela via medicamentosa, isto é, da pertinência do diagnóstico (pragmática) ao realismo de redução material (medicação). Ou seja, caso a medicação produza efeitos isso significa que, em termos de tratamento, o diagnóstico se mostrou eficiente, à medida que foi pertinente à intervenção.
Nesse sentido, o desenlace entre semiologia e etiologia marca o contexto de afastamento da psicanálise e a abolição de compromissos ontológicos em manuais (DUNKER, 2014). Sem indicar certa política de tratamento, questões do DSM lidam com a possibilidade de não haver uma concepção ontológica que explicitaria as formas de relação entre metafísica dos costumes e metafísica da natureza (DUNKER, 2017), ao dispor que a fundamentação requer sua efetividade pela delimitação e descrição de morbidades, passando o exame clínico a concernir como uma via rápida de redução do sintoma. O tratamento passaria a menos interessado em singularidades, à medida que avança, quanto mais houver univocidade entre os critérios da classificação e fala do paciente.
Hacking (2012) é bastante esclarecedor para situarmos o problema. Na ausência de fundamentos ontológicos que efetivem os limites do dispositivo em sua prática, os atendimentos orientados pelos manuais diagnósticos passam inadvertidos sobre a maneira como falamos ou propomos as teorias científicas em práticas humanas, se não coincide com o objeto que estudamos, também cria determinados fenômenos no momento em que se usam categorias (diagnósticos) para descrevê-las6. Caso a justificativa metodológica de pesquisas do tipo duplo-cego, grupos de controle, seja a contrapartida dos manuais, a categoria diagnóstica torna-se o estado de espera de uma prova mais efetiva, vindoura de outros campos, e que caberia à clínica se limitar ao tratamento e não mais à investigação. Do efeito disso, permitimos questionar em que medida a atitude realista de compreensão do fenômeno não privou a epistemologia dos manuais de ouvir novas formas clínicas, que, pautadas pela compreensão do laço social (DUNKER; SAFATLE; SILVA JÚNIOR, 2019), poderiam dar a validação que se busca alcançar por meio estatísticos e epidemiológicos.
Desse princípio, Lacan estaria ao lado de uma concepção de que a clínica psicanalítica é antirrealista, na medida em que interroga a construção do sofrimento a partir de um modo de subjetivação. Ao adotarmos que a psicanálise deve se constituir por um modelo bífido (DUNKER; RAVANELLO, 2019), isto é, de que é pela clínica que se autoriza a teoria psicanalítica, essa se revelaria como modelo outro de causalidade, que pensa a transformação do sofrimento psíquico no tempo e a maneira de se investigá-lo depende dele. Assim, o psicanalista, enquanto modelo antirrealista, no sentido que considera seus limites epistemológicos, admite que, diante da fala de seus pacientes, não há possibilidade de traduzir e explicar a maneira pela qual o sofrimento se organiza. Quanto à materialidade, o que lhe concerne é a fala do analisando e seu conjunto de ações lhe é fugaz quanto a uma referência positiva. A compreensão parte de que, se assim não o fizesse, estaríamos a opor a prática lacaniana de não interpretar a transferência (LACAN, 1958/1998), ao conceber, por consequência, o fenômeno clínico por uma via observacional, posicionando o analista ao lugar de um saber constituído. Lacan (1953/1998) propõe que o saber do analista é de caráter atribuído e, por consequência, não é localizável por vias observacionais.
Assim, a relação clínica advém de uma relação intersubjetiva, e ao psicanalista não cabe fazer leitura de signos, mas se incluir, a seu modo, ouvindo e reavaliando seu diagnóstico, adotando o compromisso de entender a morbidade através de uma transformação operada pela fala. O programa da diagnose psicanalítica opera pela transformação de seus pacientes a partir um diagnóstico que se assemelha a uma forma de vida (DUNKER, 2015), isto é, ao conjunto de relações que o diagnóstico permite pensar uma posição subjetiva e uma relação com o outro, ao contrário de se configurar como uma morbidade delimitável.
Nesse sentido, para o psicanalista, o mundo investigado do sofrimento não corresponde, necessariamente, ao mundo tal como ele é. Os limites epistemológicos do analista, desse modo, permitem dizer que tipo de produção de saber se autoriza a partir de suas restrições técnicas. O discurso da causalidade, nessas circunstâncias, se obtém não do mundo tal como ele é, mas de uma experiência intersubjetiva. No caso da psicanálise, pela abertura de uma posição de sujeito em relação ao seu sofrimento, de uma articulação entre sujeito e desejo, das possibilidades de variar a queixa para uma demanda, e que, em última instância, permite que uma realidade se feche para concernirmos uma experiência própria de modo de vida.
Nesse ponto, lembremos que a psicanálise tem lidado com seus problemas ontológicos de maneira diversa. O campo psicanalítico comporta uma zona de tensão sobre qual ontologia aderir, a lembrar do quadro que dispõe um leque entre: a) narrativismo; b) refundacionismo; c) criticismo; e d) ontologia negativa (DUNKER, 2007). Nesse ponto, poderia se inserir a questão sobre qual o problema das classificações diagnósticas em sua fundamentação e sua não confrontação ontológica.
A nosso ver, o descricionismo para sustentar um diagnóstico corrobora com uma clínica pautada por experiências de determinação, a rigor, antecipada pela busca da verossimilhança, com possibilidades de transformação reduzida de seus pacientes. Com a indicação de que o modelo pragmático se valida em seu efeito realista, a transitoriedade como política na delimitação classificatória haveria de ser revista, já que é centrada na figura do observador. Nesse ponto, como prática de uma política categorial, a clínica se torna menos espaço de transformação, para se tornar subserviente aos limites das condições de um diagnóstico. Em outra chave, se o propósito é o de produzir diagnósticos rápidos, as possibilidades analíticas se resguardam nas condições mesmas desse diagnóstico.
Ao insistir nos problemas clínicos que o modelo categorial promove, seja no plano da verdade localizável (realismo), seja no útil como garantia (pragmatismo), indicamos que as classificações diagnósticas circunscreveram uma concepção de mente extirpada e solitária (LATOUR, 2017), centrada nos limites da representação que opera o observador. Nesse plano, o observador, diante das categorias, seria a figura capaz de distinguir construção e realidade de um mundo exterior, composto por leis impessoais. Na contramão, a clínica psicanalítica manifestou a descoberta de um sujeito dividido, que, na pesquisa científica, resulta em admitir um conflito do sujeito com o objeto, e por tal motivo essa divisão indica a uma clínica que não se aplica estritamente ao saber nosográfico. Nesse ponto, a divisão entre verdade e saber, em Lacan (1965/1998), funciona clinicamente como um saber que ainda virá a ser conhecido.
Nesse sentido, por mobilizar uma concepção ontológica de real, que não se confunde com realidade, essa clínica efetivou uma política de tratamento que visa produzir experiências produtivas de indeterminação (DUNKER, 2015), que mobiliza a discursividade como projeto de assumir uma verdade. Nesse caso, a psicanálise opera por uma realidade em modalização, por meio de três registros (RSI). A ontologia, em psicanálise, visa os modos de relação à verdade, em sua relação com a impossibilidade de determinar o real, e de que sua relação ao outro, na figura do paciente, é de caráter intersubjetivo. Ao fundamento ontológico de uma prática, pode-se pensar em um uma multiplicidade de planos de imanência (VIVEIROS DE CASTRO, 2018), sendo que aquilo que efetiva uma realidade clínica não é a delimitação do sofrimento na sua forma classificatória. Dessa forma, a construção de um regime de saber, descentrado da figura do observador, efetiva uma prática concernida pela fala, visto que a forma de expressar o ponto de vista pode produzir e mobilizar a capacidade de uma política de tratamento.
Reiteramos a necessidade de uma discussão ontológica aos manuais diagnósticos, tanto pela possibilidade de retomada de fundamentação por provas efetivadas em práticas clínicas, quanto pela necessidade de pensar a relação entre sujeito e outro e o campo da realidade, elementos presentes na intervenção que se propõe a um diagnóstico. A psicanálise lacaniana, que possibilita a retomada de uma ontologia na psicopatologia (DUNKER, 2014), se estende pela produção de uma nova estética de interpretação que visa uma realidade não identificada aos critérios de um quadro, ou mesmo uma alteridade que não cede em termos de observação.
Em relação ao avanço dos modelos categoriais, quando se prestam a dar provas por alternativas que se fundamentam por modelos estatísticos e epidemiológicos, há de se ter em vista a sua ontologia, mesmo que não refletida, a fim de assegurar à prática certa autonomia e disposição crítica em sua técnica. Nesse sentido, o recurso à psicanálise para demonstrar sua ontologia serve de modo especial para indicar uma práxis que não se inclina a fazer descrições positivas do mundo, mas pela insistência de que, ao se tratar de sofrimento, algo se escreve por vias simbólicas na condição própria do trabalho analítico, e menos que por vias de adequação a um saber instaurado em manuais.
Dessa forma, tentamos trazer à tona a ideia de que dar provas de rigor não requer se assemelhar a certas práticas científicas, já que não correspondem necessariamente à maneira de como se efetiva uma prática clínica. Nesse sentido, pensamos que a ontologia inscreve os limites da representação, e estabelece as condições da relação entre sujeito e outro em uma prática clínica, tanto como efeito looping (looping effect) com o diagnóstico (HACKING, 1995), quanto em relação ao alcance da intervenção. Os efeitos clínicos de uma prática não ingênua proveem a proposição de uma clínica esvaziada de identidade em relação a um quadro nosográfico e voltada a uma experiência transformativa.
Alberto Warmling Candido da Silva - albertowarmling@gmail.comTiago Ravanello - tiagoravanello@yahoo.com.brRuben Artur Lemke - lemke.ruben@gmail.com