Dossiê Mundos de Mulheres 2021: Pensamentos Feministas Afro-Moçambicanos - Ativismos

Associação Sócio Cultural Horizonte Azul

Associação Sócio Cultural Horizonte Azul (ASCHA)
Associação Sócio Cultural Horizonte Azul, Mozambique

Associação Sócio Cultural Horizonte Azul

Revista Estudos Feministas, vol. 28, núm. 1, e68332, 2020

Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina

Recepção: 31 Outubro 2019

Aprovação: 21 Novembro 2019

A Associação Sócio Cultural Horizonte Azul (ASCHA) reúne mulheres jovens e raparigas que trabalham em prol da promoção e proteção dos direitos humanos, empoderamento e igualdade de gênero das crianças, adolescentes e jovens órfãos e vulneráveis. Defende uma identidade feminista de igualdade, onde meninas e meninos têm as mesmas oportunidades de acessar a educação, recursos materiais e financeiros que garantam a sua autonomia. Promove a criação de “Espaços Seguros de Cidadania e Liderança Feminina” nas escolas, discutindo temas como gênero, violência, direitos. Ademais, trabalham com a arte como uma metodologia de artivismo para desconstruir as normas sociais sobre as desigualdades de gênero, e utilizam-se do teatro da oprimida, da dança e da poesia, focando na intervenção social. A carta abaixo foi encaminhada a agentes de políticas públicas em Maputo – Moçambique, em 28 de julho de 2017.

Carta das Raparigas e Mulheres Jovens

Nós, raparigas1 e mulheres jovens residentes do distrito Municipal KaMaxakeni, presentes no Fórum Distrital de Género, Cultura, Segurança Urbana e Políticas Públicas Fundamentais para o Desenvolvimento Humano das Raparigas e Mulheres Jovens (FDGC), realizado na cidade de Maputo, na sala de conferências do Instituto Superior Maria Mãe de África, nos dias 27 e 28 de Julho de 2017, reafirmamos a nossa resistência, a auto organização para o enfrentamento e construção de alternativas de luta contra todas as formas de violência baseada no género, assentes nas normas sociais, nas práticas culturais e tradicionais nocivas à saúde e à vida, da objectivação e mercantilização do corpo e da vida das raparigas e mulheres jovens, bem como da insegurança urbana que limita o exercício de cidadania, de ir e vir e do desenvolvimento humano em todos os espaços de pertença na sociedade Moçambicana.

Reconhecemos que temos o direito de acesso a um processo de ensino e aprendizagem de qualidade e igualitário nas escolas públicas, pois a educação é um dos pilares para o desenvolvimento humano e a escola é nossa porta. No entanto, este espaço, que deveria ser seguro, é inseguro, devido a vários factores, tais como violência baseada no género, castigos corporais, humilhações, violências psicológicas, assédios e abuso sexual, pobreza, descriminação da aluna manifestada através da retirada da sala por falta de livro, ficha de apoio, uniforme e material didáctico incompleto ou em boas condições, concorrendo assim para a perda do conceito pessoal, autoestima e aumento da desistência escolar no ensino secundário.

Reconhecemos que a violência baseada no género é estrutural e estruturante, o femicídio não tem classe social, pois raparigas e mulheres jovens são pensadas como corpos úteis, que devem servir a alguém, são vistas socialmente como um corpo para cumprir o papel sexual e reprodutivo; muitas práticas, percepções e os mitos construídos em torno do corpo, da sexualidade e da masculinidade são justificativas para a satisfação do prazer masculino. As raparigas e mulheres calam-se diante da violência, porque esta assente e está inscrita dentro de normas sociais; somos treinadas pelos espaços de pertença a aguentar a dor, “a não incomodar”, somos julgadas e vistas como culpadas pelos actos de violência que sofremos. A forma de controlo das raparigas mulheres nos espaços públicos é o medo da violência; o homem sente-se no direito de punir qualquer mulher que é considerada transgressora; o medo limita as possibilidades das raparigas e das mulheres jovens de ir e vir nas comunidades. A violência baseada no género é um problema silencioso e silenciado, porque as vítimas ficam caladas, pois a sociedade estigmatiza, exclui e não acolhe com bons olhos quem ousa denunciar, o que torna o problema mais complexo. Os locais mais inseguros e propensos à violência são casas, escolas, igrejas, média,2 esquadras,3 ruas, becos, barracas, bares, discotecas, transportes públicos e semicolectivos (com destaque para carros de caixa aberta, vulgo my love4).

Reconhecemos que temos o direito de conhecer o nosso corpo e ao gozo pleno da nossa sexualidade, livres de qualquer tipo de discriminação, de julgamento, das gravidezes precoces e indesejadas, das práticas culturais nocivas que nos expõem ao risco de contrair infecções de transmissão sexual e uniões forçadas (vulgo casamentos prematuros).5 Os espaços de pertença perpetuam tabus em torno da sexualidade, o que veda espaço para educação sexual e conversa aberta sobre género, corpo e sexualidade.

Reafirmamos o nosso compromisso no exercício dos direitos humanos no geral, como também no exercício dos nossos deveres como cidadãs olhando para o nosso engajamento cívico e político para a transformação das nossas comunidades e escolas em espaços seguros e amigos da rapariga e mulher jovem.

Denunciamos a imposição da maternidade como destino obrigatório para todas as raparigas e mulheres jovens e reafirmamos a autonomia de decisão sobre os nossos corpos, nossa sexualidade e o gozo pleno dos direitos sexuais e reprodutivos.

Denunciamos os castigos corporais e morais dentro da escola, assédio sexual e outras práticas que colocam barreiras para as raparigas frequentarem livremente o ensino, tais como expulsões das salas de aulas por falta ou insuficiência de material escolar, uniforme considerado inadequado por parte dos professores e directores, falta de gravatas e atrasos sem, para isso, procurar saber quais são as reais causas.

Denunciamos a violência existente nos transportes públicos, semicolectivos, com destaque aos informais (vulgo my love); subir o mesmo significa ser sujeita ao assédio sexual, pois nesses transportes as pessoas pegam no corpo uns dos outros sem nenhum pudor, pois dizem que “Ninguém é de Ninguém”.

Denunciamos a objectivação e mercantilização dos corpos e da vida das raparigas e mulheres jovens na média, quer nas publicidades, nos vídeos clips e nas músicas.

Denunciamos a ineficiência no tratamento e atendimento a vítimas de violência.

Nós exigimos:

- Que a selecção de candidatos à profissão de professores e polícia seja numa hasta6 da comunidade.

- Inspecção das condições educativas e implementação da estratégia de género e políticas públicas para permanência das raparigas na escola.

- Criação e manutenção de espaços seguros e redes das raparigas e mulheres jovens dentro das escolas, para que seja possível a conquista de voz activa e de espaço de desabafo sobre a opressão que se sofre nas instituições sociais.

- Responsabilização criminal de todos agressores (professora/es, polícias, administradores da justiça).

- Afastamento de barracas das portas das escolas; é preciso proibir a venda de álcool e outras drogas ao redor das escolas.

- Maior preocupação com o alargamento dos becos e com a implementação de iluminação pública.

- A criação de espaços recreativos como jardins e campos desportivos nos lugares onde hoje são zonas abandonadas.

- Expansão dos espaços de atendimento integrado para vítimas de violência e que funcionem 24h e que os mesmos sejam divulgados para as comunidades.

- Que os provedores de justiça tomem os casos de violência como prioritários e sem julgamento da vítima.

- Cumprimento do horário estabelecido para o fecho dos estabelecimentos de venda de bebidas alcoólicas.

- Revisão do regulamento que rege que raparigas grávidas devem passar para o curso nocturno e incentivar que as raparigas sigam com os seus estudos.

- Revisão da Lei da Família, que no artigo número 307 dá excepção para casar aos 16 anos.

- Exigimos que os Serviços de Saúde Amigos de Adolescentes e Jovens (SAAJ’s) nas zonas periurbanas sejam funcionais 24h por dia.

- Exigimos que as estratégias e políticas públicas das instituições municipais sejam construídas com as lentes de género.

Nós recomendamos:

- Mobilização e treinamento da comunidade para socorrer as vítimas em situação de violência.

- Sensibilização das autoridades para que elas percebam que problemas de violência e insegurança precisam ser resolvidos e que essas autoridades são responsáveis por resolver a situação.

- Que hajam debates de reflexão na luta contra violência e machismo.

- Recomendamos que haja diálogo horizontal entre pais e filhos, professores e alunos sobre sexualidade, sem expor ao risco de assédio.

- Preparação e engajamento de policiamento comunitário, dentro das comunidades que trabalhem em conjunto pelo combate à violência.

- Debates de reflexão sobre violência e normas sociais e o papel das lideranças comunitárias na redução ou eliminação dessas práticas nocivas na comunidade.

- Mobilização de jovens e adolescentes para ter acesso aos métodos contraceptivos e também aos centros de saúde sem tabus e também em relação.

- Inclusão dos rapazes nos aspectos de planeamento familiar, pois actualmente a ênfase está voltada para as raparigas (paternidade responsável).

- Precisa-se criar aliados na média para ter-se presença e voz nestes canais com mensagens claras para fixar recado de jovens e adolescentes. É preciso usar a comunicação social como uma ferramenta de consciencialização para transformar a realidade.

- Investir na média alternativa como forma de sensibilização e mobilização pública para questões de género e violência baseadas no género.

Afirmamos que a violência contra a mulher é um crime de natureza pública, não depende da pessoa que sofreu o dano. Somos todos responsáveis por recorrer à queixa e a instituições mais próximas.

Nada sobre nós sem nós! Por uma sociedade livre da violência baseada no género!

Associação Sócio Cultural Horizonte Azul (ASCHA)

Maputo, 28 de Julho de 2017.

Notas

1 Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas, a faixa etária das raparigas é entre 10 e 18 anos de idade.
2 Aqui se refere às mídias na condição de veículos de comunicação e redes sociais.
3 Esquadras faz referência às delegacias de polícia.
4 My love é a forma como chamam veículos de carroceria aberta onde as pessoas são transportadas em pé.
5 As expressões “uniões forçadas” e “casamentos prematuros” expressam a controvérsia que existe no âmbito das próprias organizações sobre como explicar o fenômeno em que meninas entre 12 a 15 anos são obrigadas a casar. A ASCHA/Fórum Mulher (FM) participa da Coligação para a Eliminação dos Casamentos Prematuros (CECAP), que usa essa denominação por ser uma terminologia internacional no âmbito da campanha “Mulheres e meninas, não noivas”. Entretanto, o FM contrapõe essa terminologia, questionando o que é casamento: é uma união livre e feliz? Meninas entre 12 a 15 anos podem viver um casamento prematuro e ter decidido? É um ponto que é necessário afinar, fazendo com que a ONG Mulher e Lei na África Austral (WLSA) mude a nomenclatura em seus estudos. Os movimentos de mulheres lutam por legislação que impeça essas uniões forçadas ou prematuras.
6 Uma indicação referendada em Assembleia ou reunião da comunidade.
7 A Lei da Família (10/2004) é contraditória em relação à legislação sobre o tema: proíbe o casamento antes dos 18 anos, mas abre exceção para casamentos aos 16 anos em caso de interesses da família e consentimento dos pais ou responsáveis.
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