Dossiê Mundos de Mulheres 2021: Pensamentos Feministas Afro-Moçambicanos - Ativismos
Recepção: 31 Outubro 2019
Aprovação: 21 Novembro 2019
O FOMMUR foi criado, inicialmente, por representações da União Nacional dos Camponeses (UNAC), Fórum Mulher (FM), Mulher, Gênero e Desenvolvimento (MuGeDe), Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC) e Fórum das Rádios Comunitárias (FORCOM). Atualmente, é composto por trabalhadoras rurais ligadas à UNAC, Associação das Mulheres Desfavorecidas da Indústria Açucareira (AMUDEIA), Associação Moçambicana para a Promoção do Cooperativismo Moderno (AMPCM), entre outras. Integra o Fórum Mulher, a Marcha Mundial das Mulheres e a Via Campesina. Seu objetivo inicial foi compor uma delegação moçambicana de camponesas ao Congresso Mundial das Mulheres Rurais, em Durban – África do Sul, em 2008.
O FOMMUR representa camponesas, pequenas produtoras, praticantes de comércio informal, pescadoras artesanais, oleiras, raparigas, paralegais e apicultoras de todo o país. Segundo dados do Censo de 2017, houve uma queda da população rural para 69%, mas permanece a alta proporção de mulheres nesse contingente (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, INE, 2017). Abaixo estão reproduzidos dois documentos das camponesas, a saber: a “Carta de demandas das mulheres pelo direito à terra – Declaração de Kilimanjaro” e a “II Declaração das Mulheres Rurais Moçambicanas”. A “Carta de demandas das mulheres pelo direito à terra – Declaração de Kilimanjaro” foi construída para a ação realizada entre os dias 10 e 16 de outubro de 2016, quando 29 mulheres rurais, representando um universo de 400, escalaram o monte Kilimanjaro, o mais alto da África. A “II Declaração das Mulheres Rurais Moçambicanas” foi elaborada em reunião do FOMMUR, nos dias 5 e 6 de agosto de 2014.
Carta de demandas das mulheres pelo direito à terra. Declaração de Kilimanjaro
Introdução
A iniciativa Kilimanjaro é uma mobilização de mulheres rurais de toda a África para um momento icónico no sopé do Monte Kilimanjaro, em outubro de 2016. A Iniciativa Kilimanjaro foi concebida pelas Mulheres Rurais durante uma reunião de mulheres rurais e organizações da sociedade civil, em 2012, realizada em Dar-es- Salaam, na Tanzânia. Esta iniciativa visa criar um espaço para nós, como mulheres rurais, podermos participar nos processos de tomada de decisão sobre a terra e os recursos naturais.
Com o 2016 declarado pela 26ª Cimeira da União Africana (UA) como o “Ano dos Direitos Humanos da África, com especial foco sobre os Direitos das Mulheres”, juntamente com a transição dos ODM para ODS, a nossa busca pela actualização do nosso direito à terra e recursos naturais com vista a um continente com segurança alimentar e nutricional não poderia ter sido mais oportuna. Também notar que, em outubro de 2015, o Comité Técnico Especial sobre agricultura, água e ambiente da UA recomendou que os Estados-Membros atribuíssem pelo menos 30% da terra às mulheres; melhorar os direitos das mulheres à terra através de mecanismos legislativos/outros, a fim de pôr em prática a declaração da UA sobre Terra em que todos os Estados africanos se comprometeram a garantir o acesso equitativo à terra a todos os usuários da mesma e reforçar os direitos das mulheres a terra.
As mulheres, portanto, proclamaram esta Carta de princípios e exigências especificamente sobre o acesso das mulheres a usar, controlar, possuir, herdar e alienar as suas terras e recursos naturais.
Objectivos
- Fortalecer a agência e o movimento das mulheres rurais em reivindicar e defender os seus direitos fundiários (direitos à terra) e recursos naturais em África.
- Gerar vontade política entre os governos nacionais,doadores e instituições regionais para implementar uma carta das mulheres africanas totalmente inclusiva.
- Mobilizar e apoiar a participação de 100.000 mulheres rurais na Iniciativa Kilimanjaro em, pelo menos, 20 países em África.
- Sensibilizar sobre os quadros1 e as medidas de segurança existentes em torno dos investimentos rurais em grande escala e a demanda pela sua aplicação na obtenção de direitos de posse legítima das mulheres rurais em África.
Durante os dias 10 a 16 de outubro de 2016, cerca de 29 mulheres rurais de um universo de 400, em representação das outras, escalaram a montanha mais alta de África, o monte Kilimanjaro. A marcha insere-se na campanha “Nossa Terra! Nossas vidas! Mobilização das Mulheres, Kilimanjaro 2016”, cujo objectivo é fortalecer o movimento das mulheres rurais em afirmar e defender os seus direitos sobre a terra e os recursos naturais a nível de África e gerar vontade política entre os governos nacionais, doadores e instituições regionais para implementar a declaração inclusiva das mulheres africanas. Colectivamente, as mulheres consolidaram a sua carta de exigências sobre os seus direitos fundiários, pedindo aos governos e a outros tomadores de decisão para abordarem questões que impedem o gozo dos seus direitos fundiários: leis, políticas, quadros, barreiras socioculturais, investimentos na terra e ameaças aos defensores dos direitos humanos das mulheres.
Nós, mulheres rurais de África, reunidas em Arusha de 14 a 16 de outubro de 2016, apresentamos esta Carta de exigências das Mulheres Africanas sobre os direitos fundiários desenvolvida através de um processo consultivo envolvendo representantes das Assembleias de Mulheres Rurais e dos Fóruns de Mulheres Agricultoras de mais de 22 países africanos. Todas as exigências apresentadas a seguir foram aprovadas por todos os membros da Assembleia.
Exigimos
- Sensibilização de líderes (tradicionais, comunitários, religiosos e outros), jovens, pessoas com deficiência e mulheres em torno da lei e das políticas sobre a terra.
- Capacitação das mulheres, permitindo-lhes acesso aos seus direitos fundiários, à tecnologia e aos recursos financeiros com vista a melhorar os seus meios de subsistência.
- Traduzir as políticas e as leis de terras para línguas locais acessíveis.
- Inventário digital desagregado por sexo do direito de posse em público, comunidade e terras privadas de modo a que toda a terra seja identificada, registada e tornada pública para tutela.
- 50% da participação das mulheres nos órgãos de tomada de decisão e na implementação de questões e assuntos relacionados com a terra (incluindo na avaliação da terra e no pagamento de indemnização pelos recursos naturais) para que elas se possam expressar e defender os seus direitos fundiários.
- Os governos devem regular as empresas e os investidores que poluem e prejudicam o meio ambiente e a saúde das comunidades, especialmente das mulheres e das crianças.
- Os governos devem evitar investimentos rurais que forçosamente deslocam as comunidades, particularmente as mulheres e as crianças.
- As mulheres e as comunidades devem ter uma palavra a dizer sobre quem e que tipo de investimentos e empresas investem nas suas comunidades. O investidor deve ser obrigado a fornecer informações sobre os impactos do seu investimento (sustentabilidade – económica, ambiental, de saúde, social e infra-estrutural).
- Os investimentos rurais devem ser feitos em parceria com as comunidades, os governos e os investidores – postos de trabalho; projectos de desenvolvimento (água, estradas, escolas, hospitais etc.); participação mínima de 40% nos lucros; Protecção Ambiental.
- Os desafios de pessoas que vivem com deficiência e outros grupos vulneráveis (pessoas que vivem com HIV/SIDA, viúvas), especificamente o estigma, a discriminação, os preconceitos culturais, a falta de acesso à informação e infraestruturas devem ser tidos em conta em todos os assuntos relacionados com a terra e devem ser representados nos órgãos de tomada de decisão e envolvidos no processo de implementação.
- As terras pecuárias devem ser reconhecidas e protegidas por lei e outros mecanismos.
- Banir as práticas culturais prejudiciais e opressivas que minam os direitos das mulheres, incluindo as que proíbem as mulheres de herdar a terra e outros recursos.
- O governo deve promulgar leis para garantir a segurança e a protecção dos defensores dos direitos das mulheres.
- Parar os agricultores persistentes – conflitos de pecuaristas sobre o uso da terra e outros recursos.
- Aprovar o direito sucessório para fornecer e salvaguardar os direitos fundiários das mulheres sempre que não forem existentes.
Recomendamos
- A educação cívica sobre as leis de terra para que as mulheres as entendam, assim como os seus direitos. Isto deve incluir a promoção da educação de adultos, em particular nas zonas rurais.
- Rever, harmonizar e actualizar as leis de terras para reflectir os direitos das mulheres sobre a terra.
- Envolver os governos na Iniciativa Kilimanjaro para que apoiem os direitos fundiários das mulheres.
- Envolver os jovens em questões relativas à terra – por meio do currículo e os jovens devem ter representação nos órgãos de tomada dedecisão.
- Posse conjunta e igual da terra através de títulos conjuntos de propriedade de terras.
- Incluir as mulheres nas estruturas habituais de governação da terra.
- Assegurar que o direito consuetudinário seja consistente com as garantias constitucionaise legais para os direitos fundiários das mulheres.
- Leis e as políticas de terras devem ser traduzidas e disponibilizadas às comunidades (divulgação) nas línguas locais acessíveis.
- Mobilizar e construir movimentos de mulheres em prol dos direitos fundiários das mulheres (a Iniciativa Kilimanjaro) – popularizar as exigências e as soluções.
- Educar e mobilizar os guardiães da cultura para se tornarem defensores dos direitos fundiários das mulheres.
- Criar uma rede africana dos defensores dos direitos das mulheres.
- Reconhecer e facilitar o trabalho dos defensores dos direitos das mulheres.
- Implementar a recomendação da UA que obriga os Estados a destinar pelo menos 30% da terra às mulheres.
- Melhorar os direitos fundiários das mulheres através de mecanismos legislativos e outros.
- Criar um quadro sensível ao género relativo aos direitos de propriedade, além das leis de terras através da reforma da lei de propriedade conjugal, sucessão (direito sucessório) etc.
- Identificar e proteger as áreas de cultivo e de pastagem para parar conflitos opondo pecuaristas e agricultores.
II Declaração das Mulheres Rurais Moçambicana
Nós, do Fórum Moçambicano das Mulheres Rurais representamos camponesas, pequenas produtoras, praticantes de comércio informal, pesca artesanal, olaria, raparigas, paralegais, apicultoras de todo o país reunidas nos dias 5 e 6 de agosto de 2014.
Considerando que cerca de 80% da população moçambicana vivem nas zonas rurais, e destes, 58% são mulheres que encontram na terra a fonte do sustento familiar (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, INE, 2017).
Endereçamos ao Governo, aos parceiros e à sociedade, as seguintes demandas:
- A paz é um bem precioso, o qual devemos preservar como um direito colectivo de mulheres, de homens e de crianças, inalienável e inegociável, pelo que apelamos à manutenção da paz, da convivência saudável, da comunicação e do diálogo transformativo.
- O nosso bem-estar e a nossa autonomia estão ligadas ao acesso à terra e aos recursos que a natureza nos disponibiliza para viver, pelo que queremos ser incluídas na discussão e na tomada de decisão sobre o uso da terra e dos recursos naturais em Moçambique, para investimentos de pequena, média e grande escala.
- Que as iniciativas de promoção da agricultura em Moçambique contemplem a potencialização da prática agrícola pelas mulheres, valorizando o nosso conhecimento, as nossas tecnologias e experiências, privilegiando a agro-ecologia e as demandas nutricionais das famílias moçambicanas.
- Que as políticas de desenvolvimento privilegiem a construção de infraestruturas rurais resistentes aos desastres naturais e uma massificação das tecnologias de prevenção e de alerta de desastres.
- Como maiores usuárias da terra, queremos ter maior controlo sobre este recurso, através da obtenção do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra, em nome das mulheres viúvas, mães solteiras e mulheres chefes de família, com menos burocracia e custos acessíveis e ajustados à nossa realidade, de modo a que o Direito à Propriedade e à Herança seja uma realidade para as mulheres moçambicanas.
- Demandamos mais esforços para reduzir o índice de analfabetismo, para reduzir o índice de casamentos prematuros, de gravidezes precoces e de mortalidade materno-infantil que afecta, com maior extensão, as mulheres e as raparigas do meio rural.
- Conforme os compromissos nacionais e internacionais assumidos pelo Estado Moçambicano, queremos participação igualitária de mulheres e de homens nos postos de tomada de decisão, a nível nacional, provincial e local. Queremos que as mulheres que ocupam lugares nos órgãos de tomada de decisão, desde o nível local, distrital, provincial até ao central, se reconheçam como protagonistas das questões ligadas à vida das mulheres moçambicanas.
Pelos direitos das Mulheres Rurais seguiremos marchando até que todas sejamos livres!
Fórum Moçambicano das Mulheres Rurais
Referências
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Instituto Nacional de Estatística. Relatório do Censo, 2017.
Notas