Resenhas

Na conta das mulheres

On women’s account

Para que las mujeres paguen

Carlos Eduardo Caldarelli
Universidade Estadual de Londrina, Brazil

Na conta das mulheres

Revista Estudos Feministas, vol. 32, núm. 2, e98890, 2024

Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina

BOHOSLAVSKY Juan Pablo, RULLI Mariana. Deuda feminista: ¿Utopia u oxímoron?. 2023. Buenos Aires. Editorial de La Universidad Nacional de La Plata

Recepción: 05 Marzo 2024

Aprobación: 20 Abril 2024

Considerar a dívida pública uma questão feminista é apenas a ilusão de uma civilização ideal ou uma verdade que só aparentemente contraria a lógica? Eis a questão lançada a partir do título do livro Deuda feminista:¿Utopía u oxímoron? e cuja resposta é defendida da primeira à última página: por mais paradoxal que possa parecer, a ideia é que as dívidas financeiras equivalem às não financeiras. Por esse viés, não se pode negar que o capital financeiro deve muito às mulheres e à natureza dos serviços não remunerados que sustentam suas atividades.

Coordenada por Juan Pablo Bohoslavsky e Mariana Rulli (2023) e editada pela Universidad Nacional de La Plata (EDULP), a obra aborda, em seis partes e diferentes enfoques interdisciplinares sistematizados em vinte capítulos, como as medidas de austeridade do Fundo Monetário Internacional (FMI) conduzem a um aumento das dívidas dos lares, sobretudo das mulheres mais pobres, contribuindo para a desigualdade de gênero. Todos os capítulos, partindo da premissa de que a dívida pública é uma questão feminista, dão a ver aspectos que ficam ocultos na análise econômica convencional, que adota um silêncio estratégico acerca de como a economia de cuidados mantém o sistema financeiro. Para além de uma extensa argumentação, apresentam-se propostas a fim de se viabilizar a subordinação dos direitos dos credores às obrigações em matéria de direitos humanos.

No contexto do avanço das conquistas feministas, a economia é o mais hermético campo e é para essa lacuna que a obra se apresenta: a leitura da macroeconomia por uma lente feminista enriquece o debate crítico sobre as contas públicas e os direitos sociais. Ante o acelerado processo de financeirização dos países de médios e baixos rendimentos (Lena LAVINAS, 2017), a dívida pública tornou-se o vínculo entre a política pública/social e os interesses do capital.

A perversa conexão que se estabelece entre a dívida pública, o mercado financeiro e a política fiscal é supervisionada pelo FMI e organismos multilaterais internacionais representativos do capital financeiro. Em tal aspecto, Deuda feminista destaca como essa ligação tem sido altamente deletéria para as pautas feministas e os direitos das mulheres. A argumentação da obra começa por nivelar os conceitos da dívida pública e destacar como essa tem sido importante ferramenta para erodir as bases do estado de bem-estar social e ampliar a financeirização das políticas e direitos sociais.

Com base nessas reflexões e conceituações, que permeiam a primeira parte da obra, as autoras traçam um panorama abrangente de como os organismos multilaterais, com destaque para o FMI e o Banco Mundial, se tornaram elementos pivotais na conexão entre dívida pública e a captura da ação estatal (política fiscal) pelo capital financeiro.

A política de empréstimos com condicionalidades conduzida pelo FMI e a negociação da dívida pública em mercados financeiros, por meio de títulos da dívida, ensejam um duplo controle sobre os Estados devedores: em primeiro lugar, pelo próprio FMI; em segundo, pelo mercado financeiro, que classifica e ordena países de acordo com a sustentabilidade de suas dívidas - agências internacionais de risco. Diante desse cenário, a Economia Mainstream (Ortodoxa) tornou-se base teórica que respalda as políticas de austeridade e tem sido incorporada à dinâmica de funcionamento dos Estados de baixo e médio rendimentos. O ajuste de contas públicas e a geração de superávits primários têm sido o principal aval para o pagamento da dívida.

Deuda feminista destaca que a adoção de uma agenda regressiva lastreada por políticas de austeridade é elemento central para a acumulação do capital em detrimento dos direitos sociais e que essa conta tem sido paga sobretudo pelas mulheres pobres, rurais, não brancas e LGBTQIA+. A ausência de ação do Estado, em diversas áreas, causada pela transferência de riqueza aos circuitos de acumulação e valorização do capital, torna o peso sobre as mulheres desproporcional, pois elas não são compensadas pelo seu trabalho de cuidado. Por conseguinte, a insuficiência da ação estatal é suprida pelo encargo que recai sobre as mulheres. Esse trabalho invisível de cuidado converteu-se em mecanismo da drenagem de recursos públicos para a valorização do capital, sobretudo especulativo.

O livro ainda destaca que a chamada economia do cuidado guarda íntima relação com a insuficiência dos serviços públicos e que, onde falham direitos, crescem as dívidas. Apresenta haver forte correlação entre dívida pública e dívidas privadas, sendo que parcela significativa das mulheres se endivida como consequência da necessidade de recursos para suprir carências decorrentes de lacunas da ação estatal, a chamada dívida para o cuidado.

O impacto desse processo nas pautas e na trajetória dos movimentos feministas é multifacetado e complexo. O completo apagamento da perspectiva de direitos humanos da avaliação de sustentabilidade da dívida pública afeta as mulheres em seus direitos básicos à educação, à saúde e ao bem-estar e também torna mais distante uma perspectiva ampla de igualdade de gênero nos países endividados. Em suma, as políticas neoliberais não são neutras em termos de gênero e não são uma exclusividade de governos com alinhamento à direita. A solução apresentada pelas autoras é uma abordagem a partir de bases de uma economia feminista, que não somente avalia e mensura sintomas e efeitos superficiais das desigualdades de gênero, mas, sobretudo, trabalha em bases mais profundas das relações sociais envolvendo as mulheres.

Se, de um lado, a obra revisita uma literatura que tem sido construída desde meados da década de 1990 acerca da dívida pública e os direitos das mulheres, de outro, ela é original ao traçar uma agenda e algumas preocupantes conclusões para as tendências mais atuais de algumas vertentes do movimento feminista.

O FMI apropria-se do discurso de gênero e o modera aos objetivos da política neoliberal, forjando inclusive tendências para correntes do movimento feminista, que incorporam aos seus discursos evidentes elementos neoliberais. A luta das mulheres tem sido utilizada, por meio dos chamados Títulos de Gênero, para precificar e lucrar sobre pautas históricas do feminismo e, com isso, criar mais riqueza financeira. Os títulos rotulados com gênero atraem investidores com preocupações com causas nobres, sem qualquer reflexão sobre a questão ou ação transformadora; pelo contrário, fragilizam e capturam o debate de forma mesquinha.

A contribuição da obra é indiscutível e o diálogo entre diferentes perspectivas acerca da “dívida feminista” é elemento necessário à reflexão. Fica aberta, para estudos futuros, uma análise mais completa à luz da interseccionalidade (Angela DAVIS, 2016), a fim de mensurar os efeitos mencionados e discutidos no livro e como esses se manifestam quando diferentes marcadores sociais se sobrepõem. A abordagem em termos de mulheres racializadas, de povos tradicionais e LGBTQIA+ também contemplam campos a serem explorados.

O livro dá um passo adiante na necessidade de se repensar o modelo atual de crescimento induzido pela dívida, pois este fragiliza ainda mais os países em desenvolvimento ante impactos externos e agrava a desigualdade de gênero, fazendo com que as mulheres paguem um preço muito alto. São imprescindíveis, portanto, metas sociais e econômicas nas quais os direitos humanos sejam o centro do debate, ao contrário da visão do FMI, que não aceita sua vinculação a eles.

A conclusão a que se chega é a de que a questão feminista é uma senda contra a dominação, a desumanização, a subordinação e a colonização, sustentando todos os aspectos da vida pública e privada e oferecendo, enfim, esperança para o futuro. É um caminho árduo ante a estrutura patriarcal imposta; a conscientização, entretanto, é irreversível.

Referências

BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; RULLI, Mariana (Coords.) Deuda feminsta: ¿Utopia u oxímoron? Buenos Aires: Editorial de La Universidad Nacional de La Plata, 2023.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. de Heci Regina Candiane. São Paulo: Boitempo, 2016.

LAVINAS, Lena. The Takeover of Social Policy by Financialization. The Brazilian paradox. New York: Palgrave Macmillan, 2017.

Notas

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: CALDARELLI, Carlos Eduardo. “Na conta das mulheres”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e98890, 2024.
Financiamento: Não se aplica
Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.
Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Notas de autor

Carlos Eduardo Caldarelli (caldarelli@uel.br, carlos.caldarelli@gmail.com) é professor associado do Departamento de Economia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutor em Economia Aplicada (USP/ESALQ) com estágio pós-doutoral na Universidade da Califórnia, Berkeley. Atua principalmente nos seguintes temas: economia do bem-estar social, economia agrária e macroeconomia aplicada
Contribuição de autoria: Não se aplica

Declaración de intereses

Conflito de interesses: Não se aplica
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