Resenhas

Os primórdios do futebol feminino no Brasil: uma agenda das causas feministas

The beginnings of women’s football in Brazil: an agenda of feminist causes

Los inicios del fútbol femenino en Brasil: una agenda de causas feministas

Leonardo do Couto Gomes
Universidade Federal do Paraná, Brazil
Wanderley Marchi
Universidade Federal do Paraná, Brazil

Os primórdios do futebol feminino no Brasil: uma agenda das causas feministas

Revista Estudos Feministas, vol. 32, núm. 2, e98930, 2024

Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina

BONFIM Aira Fernandes. Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). 2023. São Paulo. Aira Bonfim

Recepción: 06 Marzo 2024

Recibido del documento revisado: 22 Abril 2024

Aprobación: 23 Abril 2024

As últimas três décadas testemunharam uma infinidade de estudos sobre o desenvolvimento inicial do futebol, sobretudo o masculino. Nessa direção, o livro Futebol feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941) fornece conhecimentos inéditos para os estudos da história do futebol, de modo especial acerca da participação feminina nessa modalidade.

Fruto de sua dissertação de mestrado em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas, a obra escrita pela pesquisadora Aira Fernandes Bonfim explora os primórdios do futebol feminino no Brasil, discutindo sobre as relações de gênero nos esportes ao apresentar uma agenda das causas feministas em solo nacional. Em um contexto global, fontes confirmam a presença de mulheres jogando futebol na Europa nos anos finais do século XIX. No Brasil, os primeiros registros datam de 1915, um momento que também marca o início do período investigado na pesquisa. O marco final, em 1941, refere-se à proibição da prática do futebol por mulheres no país, baseado em discursos que argumentavam que esse esporte ia contra a feminilidade. Essa narrativa estava fundamentada em explicações morais e fisiológicas de caráter pseudocientífico, sustentada por noções eugenistas, que visualizavam o futebol como incompatível com as mulheres, que seriam consideradas “frágeis” e “dóceis”.

Para a escrita do livro, Aira Bonfim utilizou uma estrutura descritiva e materialista da história social, baseada em diversas fontes. Destaca-se o uso de jornais, imagens, atas, leis, plantas e mapas de cidades brasileiras. A obra está dividida em três capítulos. No primeiro, intitulado “Festas”, a autora retrata a entrada das mulheres no cenário esportivo brasileiro. A participação feminina foi marcada por restrições, muitas vezes visando controlar um determinado padrão corporal. Essas mulheres deveriam cumprir obrigações sociais da época, especialmente relacionadas aos cuidados domésticos, ao casamento e à maternidade. Apesar disso, Bonfim cuidadosamente considera que os esportes foram fundamentais para uma maior presença das mulheres na cena pública, mesmo que inicialmente apenas como espectadoras.

Foi por meio das festas esportivas organizadas por clubes que as mulheres experimentaram as primeiras experiências com o futebol no Brasil, ainda que de maneira desinteressada e não competitiva. Esses momentos figuraram em uma possibilidade de emancipação feminina na vida social. É importante ressaltar que à medida que aumentava o número de espaços dedicados ao entretenimento - como clubes, associações, praças e salões - as mulheres eram progressivamente reconhecidas como potenciais consumidoras, praticantes, espectadoras, funcionárias e até mesmo proprietárias.

Nessa direção, os momentos de lazer foram responsáveis pela entrada feminina nos espaços das cidades brasileiras. O futebol, conforme destacado por Aira Bonfim (2023), foi uma das práticas que mais evidenciou marcas de debates sociais acerca da participação feminina em torno de dinâmicas físicas de entretenimento. A exposição corporal e o contato físico por meio dessa prática serviram como uma afirmação de que as mulheres poderiam ocupar setores até então reservados aos homens. No entanto, isso também gerou resistência, por meio de discursos conservadores com a argumentação que esses momentos contradiziam os papéis biológicos e sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres na época.

No capítulo seguinte, intitulado “Circos”, a autora discorre sobre como os anos 1920-1930 vão marcar uma nova fase do futebol feminino no Brasil. Com maiores iniciativas e registros midiáticos, crescem, no período em questão, as competições futebolísticas de mulheres, essas cada vez mais comprometidas com as regras da modalidade. Por outro lado, se os números de partidas aumentavam, em proporção ainda maior foram as iniciativas da imprensa para desmoralizar a participação feminina nesse esporte.

É importante considerar que os anos 1930 remetem à Era Vargas (1930-1945). Durante esse período, a sociedade e o governo centralizaram seus esforços na produção de conhecimento, práticas e políticas para regulamentar diversos aspectos da vida da população, especialmente em relação ao seu aspecto biológico. Isso incluía questões como o nascimento, a reprodução e a saúde, com o objetivo de alinhar as potencialidades humanas às condições materiais do território.

Nesse cenário, o Estado emergiu como o principal gestor das relações sociais, incumbido de promover o bem-estar físico dos brasileiros. O ideal de mulher defendido pelo governo Vargas, conforme aponta Natascha Ostos (2009), era o da mulher mãe e esposa, o que refletia uma visão conservadora da sociedade. Mulheres que desafiavam esse papel eram frequentemente estigmatizadas. A prática do futebol feminino era uma transgressão aos anseios políticos instaurados no contexto em questão.

Foi nos circos que o futebol feminino passou a performar. Tratava-se de um espetáculo que lograria sucesso em diversas regiões do país. No entanto, o desempenho esportivo em si não recebia destaque. Não passava de uma atração jocosa. Nos picadeiros, por meio de uma diversão com bola, as mulheres ousaram vestir-se publicamente com “shorts curtos” e mostrar seus tornozelos e coxas (Aira BONFIM, 2023, p. 111). Esses momentos aparentemente fortuitos, na verdade, foram basilares para uma maior exposição da mulher enquanto futebolista, principalmente na qualidade de praticante de proezas atléticas que, por vezes, eram consideradas impossíveis para o seu sexo.

No terceiro capítulo denominado “O futebol suburbano”, Aira Bonfim evidencia cenas da promoção e principalmente desqualificação do futebol feminino, até ser desautorizado pelo Estado brasileiro. Com a formulação de diretrizes para o desenvolvimento do esporte a partir da formalização do Decreto-Lei nº 3.199, outorgado por Getúlio Vargas, em 1941, decretava-se a proibição do futebol feminino em solo nacional, por ser incompatível com a “natureza frágil” das mulheres (BONFIM, 2023, p. 111). Essa medida legal proibiu a prática de futebol feminino de forma regulamentada até 1979, quando foi revogada.

Ao evidenciar cenas da organização futebolística feminina, especialmente nos subúrbios do Rio de Janeiro, a autora nos fornece detalhes acerca do desenvolvimento urbano de áreas afastadas da região central. Nessa direção, é possível detectar como o esporte foi um elemento importante para a estruturação e modernização das cidades em todo o país. Essas práticas se constituíram em um útil meio para tal fim, visto que já estavam difundidas em cidades europeias, centros de referência de desenvolvimento urbano - notadamente Londres e Paris. Mas não apenas por isso, eram compreendidas também como meio de promover a emergência e refinamento de certos costumes e atitudes, principalmente os ligados à etiqueta, à postura, o exercício físico, à higiene e à saúde da população.

Alinhados com os discursos progressistas, seriam os esportes e seus espaços de difusão meios profícuos para a sociedade brasileira emular gestos sentidos como contribuintes para o desenvolvimento da nação. Por outro lado, de acordo Mauricio Drumond (2013), essa narrativa se entrelaçava com a preocupação do Estado em fortalecer uma prática desportiva alinhada a discursos eugênicos que discriminava corpos dissidentes em prol do desenvolvimento nacional.

Entre exposições que apresentavam o futebol feminino como uma novidade agradável no cenário esportivo e as alegações de inadequação estética e biológica, apoiadas por discursos médicos na imprensa, prevaleceu a narrativa conservadora que se alinhava melhor com os ideais do regime Estadonovista. O futebol feminino passou a ser rigidamente fiscalizado, os espetáculos circenses foram controlados e os jogos entre clubes ainda mais restritos.

Aira Bonfim é enfática ao considerar que o futebol feminino representa um desafio às ideias binárias de gênero. Assim, observa-se que a prática do futebol por mulheres é mais uma expressão que evidencia os discursos e conflitos de gênero no Brasil. Essas reflexões nos permitem ponderar, com o auxílio de algumas noções de Pierre Bourdieu (1998), como as hierarquias de gênero são mantidas por meio de processos sutis e muitas vezes invisíveis de dominação, nos quais as normas culturais e as representações sociais legitimam e naturalizam a subordinação das mulheres em relação aos homens. Isso pode ser observado em várias esferas da vida social, como no mercado de trabalho, na política, na educação, na família e, como demonstra Aira Bonfim, no campo esportivo.

Nesse sentido, a autora faz contribuições significativas para os estudos da história do esporte, mas também enriquece as investigações históricas sobre questões de gênero ao destacar as formas pelas quais as estruturas sociais e culturais influenciam as relações de poder entre homens e mulheres. No contexto da obra, essas relações são reproduzidas em desigualdades de gênero por meio das experiências no futebol.

Certamente, vale ressaltar o rigor da autoria em explorar e analisar a literatura sobre a história das mulheres no esporte brasileiro durante a transição do século XIX para o XX. Esse esforço é respaldado pela excelência e pela abordagem eclética tanto teórica quanto metodológica no manejo de uma ampla gama de fontes.

A título de considerações sobre Futebol feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941), reconhece-se que o presente material convida a compreender o campo esportivo como um componente potente na elaboração de inquirições históricas, especialmente as ligadas às pautas feministas. Entretanto, um dos pontos que poderia ser ampliado na obra é o diálogo com fontes de mais cidades brasileiras. O material foca majoritariamente nas experiências da região sudeste. Essa ampliação de contextos poderia ilustrar melhor a possibilidade de visualizarmos e problematizarmos elementos similares ou não em diversas localidades.

Acredita-se que será válido, no futuro, explorar outras dinâmicas em outros ambientes e locais em que a participação feminina esportiva se desenvolveu. Sem dúvida, essas experiências podem apresentar novas questões para a história dos esportes, das mulheres, das cidades brasileiras e dos estudos de gênero.

Referências

BONFIM, Aira Fernandes. Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). São Paulo: Aira Bonfim, 2023.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.

DRUMOND, Mauricio.Estado Novo e esporte: uma análise comparada dos usos políticos do esporte nos regimes de Getúlio Vargas e Oliveira Salazar (1930-1945). Doutorado (História Comparada) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

OSTOS, Natascha. Terra adorada, mãe gentil: representações do feminino e da natureza no Brasil da Era Vargas (1930-1945). Dissertação (História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

Notas

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: GOMES, Leonardo do Couto; MARCHI JÚNIOR, Wanderley. “Os primórdios do futebol feminino no Brasil: uma agenda das causas feministas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 2, e98930, 2024.
Financiamento: Não se aplica.
Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.
Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Notas de autor

Leonardo do Couto Gomes (leonardocouto@ufpr.br, leonardodocoutogomes@gmail.com) é doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua principalmente nos seguintes temas de investigação: História da Educação Física e do Esporte; História dos divertimentos e História da Educação.
Wanderley Marchi Júnior (marchijr@ufpr.br, wmarchijr@gmail.com) é Professor Titular da Universidade Federal do Paraná no curso de Educação Física e nos programas de Pós-Graduação de Educação Física e Ciências Sociais da mesma instituição. Tem experiência na área de Educação Física, com ênfase em Sociologia do Esporte, atuando principalmente nos seguintes temas: esportes, voleibol, gênero, educação física, sociologia do esporte e história do esporte.

Declaración de intereses

Conflito de interesses: Não se aplica
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