Artigo
Sobre a origem da linguagem de Herder, o seu legado e a inevitável reflexão a fazer no hipotético quadro de singularidade tecnológica
On the origin of Herder's language, its legacy and the inevitable reflection to be made in the hypothetical framework of technological singularity
Sobre a origem da linguagem de Herder, o seu legado e a inevitável reflexão a fazer no hipotético quadro de singularidade tecnológica
Trans/Form/Ação, vol. 45, núm. 3, pp. 237-254, 2022
Universidade Estadual Paulista, Departamento de Filosofia
Recepção: 28 Setembro 2021
Aprovação: 03 Fevereiro 2022
Resumo: Johann Gottfried Herder, à semelhança dos seus contemporâneos, reflectiu sobre a linguagem e, em 1772, publicou o Ensaio Sobre a Origem da Linguagem, que, no ano anterior, lhe valera a distinção da Academia de Berlim para melhor ensaio. No entanto, ainda hoje, muito do seu pensamento é desconhecido, ignorando-se, por isso, que algumas das modernas abordagens da filosofia contemporânea, da antropologia filosófica ou mesmo da sociobiologia estão já aí enunciadas, nomeadamente nas narrativas decorrentes da enunciação das quatro leis naturais. Mais do que a justificação sobre a origem da linguagem, o ensaio do filósofo permite ainda compreender a natureza humana, inserindo no coração da antropologia filosófica a sua génese, e contrariando, se não mesmo confrontando, dessa forma, a tradição divina dessa atribuição. Assim, num primeiro momento, far-se-á uma análise genérica da obra, ressaltando as teses fundamentais que permitirão o estabelecimento do diálogo com algumas das abordagens filosóficas contemporâneas. De seguida, admitindo a possibilidade de um cenário de singularidade tecnológica, tal como enunciado por Irving John Good, Vernor Vinge ou Ray Kurzweil, verificar a plausibilidade e a validade das teses de Herder, no que concerne ao alcance da linguagem e à natureza humana, e de como isso poderá constituir uma fronteira de resistência.
Palavras-Chave: Herder, Linguagem, Natureza Humana, Evolução, Singularidade Tecnológica.
Abstract: Johann Gottfried Herder, like his contemporaries, reflected on language and in 1772 published the Treatise on the Origin of Language, which in the previous year had earned the distinction of the Berlin Academy for best essay. However, even today, much of his thought is unknown, ignoring the fact that some of the modern approaches of contemporary philosophy, philosophical anthropology or even sociobiology are already stated there, namely in the narratives resulting from the enunciation of the four natural laws. More than justifying the origin of language, the philosopher’s essay also allows us to understand human nature, inserting its genesis at the heart of philosophical anthropology and contradicting, if not even confronting in this way, the divine tradition of this attribution. Thus, at first, a generic analysis of the work will be carried out, highlighting the fundamental theses that will allow the establishment of a dialogue with some of the contemporary philosophical approaches. Then, admitting the possibility of a scenario of technological singularity, as stated by Irving John Good, Vernor Vinge or Ray Kurzweil, to verify the plausibility and validity of Herder’s theses regarding the scope of language and human nature and how this could constitute a frontier of resistance.
Keywords: Herder, Language, Human Nature, Evolution, Technological Singularity.
Introdução
A questão com que Herder abre o ensaio é significativa e premonitória do problema fundamental que marcava as intenções filosóficas do século XVIII, a saber: “[...] terão os homens, entregues às suas faculdades naturais, podido inventar por si mesmos a linguagem?” (HERDER, 1987, p. 25). A questão tornava claro um desafio filosófico maior que a história da filosofia vinha postulando e que acabaria por ter correspondência no desafio recorrente, que era lançado pela Academia de Ciências de Berlim todos os anos e que, a par do interesse desenvolvido em França pelo tema da (origem ou princípio) da linguagem,2 premiava um autor que originalmente explorasse a possibilidade da invenção humana da linguagem.3
Herder, aluno de Kant (e cuja influência se faz sentir, nalguns momentos do texto, não tanto pelo modo de escrita, mas pela forma como estrutura o seu pensamento), permite-se explorar tal possibilidade a partir do confronto direto com a visão da origem divina da linguagem, por um lado, e, por outro lado, firmando a essencialidade racional da natureza humana. Nesse particular, Herder utiliza não só algumas das conceções filosóficas dos seus contemporâneos, o que acaba por lhe favorecer o discurso e a argumentação,4 como introduz ainda as perspetivas culturais proporcionadas pelas ofertas literário-ensaísticas que começavam a chegar ao Velho Continente, através dos relatos de viagens.5
Nesse sentido, o ensaio do filósofo não se limita a colocar hipóteses sobre o aparecimento da linguagem, ou melhor, sobre as características fundantes da linguagem, mas consolida-a no horizonte antropológico a partir do qual se permite a compreensão da natureza e da condição humana. Parece, pois, inegável a afirmação de que o ensaio representa um marco na instauração da filosofia da linguagem - arriscamos dizer que se trata efetivamente de uma aproximação ontológico-metafísica aos conteúdos que virão a categorizar a filosofia da linguagem, enquanto área específica que viria a categorizar muita da filosofia do século XX -,6 e, nessa perspectiva, um instrumento de formação ontológica do próprio mundo humano, conformando do ponto de vista epistemológico, estético e antropológico o posicionamento do homem que conhece e se conhece na historicidade das suas vivências criativas, emocionais e educativas.
A noção de uma linguagem que faz acontecer mundo está já aqui em génese, não no sentido clássico da nomeação e da relação com o valor de verdade ou com a existência do nomeado (de que os muito conhecidos Crátilo e Sofista, de Platão, são um bom exemplo), porém, no sentido da configuração íntima da acção humana com o dictum que a dita. Atente-se nas seguintes palavras de Herder (1987, p. 41-42), as quais sugerem já essa reconfiguração de sentido de uma “filosofia das línguas” para uma filosofia da linguagem, uma “filosofia primeira” que se faz objeto de reflexão para a construção do próprio pensamento filosófico do homem:
E como este tema imenso promete um tão variado alargamento de horizontes na Psicologia, na ordenação natural do género humano, na Filosofia das línguas e na reflexão sobre todos os conhecimentos a que chamamos por intermédio da língua, quem não gostaria de escrever um ensaio obre ele?
E, se os homens são, do nosso ponto de vista, as únicas criaturas de linguagem que se conhecem, se se distinguem dos animais precisamente pela linguagem, que ponto mais seguro para iniciar a investigação senão o das observações relativas à diferença entre os animais e os homens? Condillac e Rousseau tinham que se enganar sobre a origem da linguagem já que se enganaram abertamente e em vários aspetos sobre essa diferença.
Dito ainda de uma outra forma, está aqui em génese um pensamento fenomenológico do homem que fala no mundo e, permitimo-nos dizer, uma visão antecipatória da linguagem como casa do ser, que viria a marcar alguns dos discursos filosóficos do século XX, ao colocar o homem como o único ente capaz de uma linguagem que interpela ao discurso do ser e que, portanto, possibilita a interpelação de si e do raciocínio que o pensa (estendendo-se, no limite, à constituição autêntica e fidedigna do modo de ser do ente que raciocina, porque fala e fala porque raciocina, num mundo só entendível por humanos). A relação que Herder estabelece entre razão e linguagem é não só evidente como é necessária para a coerência justificativa do discurso no seu ensaio, isto é, para a justificação da origem humana da linguagem. A constituição dessa linguagem, a qual é fala e dizer, faz-se através da interconexão dos elementos que constituem a experiência subjetiva, particularmente no acolhimento realizado pelos sentidos das impressões mundanas, da operação reflexão-raciocínio e da consciência de (estar a) ser num mundo social, que, como refere o filósofo, “[...] a natureza não nos criou como rochedos isolados, como mónadas egoístas!” (HERDER, 1987, p. 25).
Nesta abordagem ao ensaio de Herder (ainda que sobrevoando muitas das suas palavras), não podemos deixar de notar que há ainda um trabalho filosófico por fazer, no que concerne ao seu pensamento. Dois exemplos podem ser imediatamente fornecidos a esse propósito: um, a falta de uma leitura linguística rigorosa às considerações do filósofo sobre os signos/sinais, e, segundo, a falta de uma fenomenologia da audição (ou pelo menos uma interpretação fenomenológica) que certamente integraria Herder como personagem principal. Dizendo de uma outra forma, falta fazer uma leitura que integrasse os elementos de uma fenomenologia do acontecimento inaugural da linguagem humana - onde a audição e o acontecer dos fenómenos vibratórios dos sons se dessem como integrantes do modo de ser do ente que está-a-ser-no-mundo -, que prepararia e alargaria a compreensão da linguagem e da própria natureza humana.
1 Linguagem, leis naturais e o pensamento da natureza humana segundo Herder
O ensaio de Herder está dividido em duas partes, sendo a primeira parte constituída por três capítulos e a segunda parte, menos longa, constituída com um único texto (eventualmente, pode ver-se uma divisão, através das leis naturais que são enumeradas). Na primeira parte, o primeiro capítulo tem a função de exortar o pensamento sobre a origem humana da linguagem7 (criticando principalmente a visão da criação divina da linguagem proposta por Süßmilch, a que não escapam Condillac e Rousseau), seguindo com a apresentação da fragilidade humana (a sua natureza) em contraponto com a natureza dos animais.8
O segundo capítulo, talvez o mais importante para o propósito do ensaio, apresenta um conjunto de considerações sobre o homem enquanto ser que, carenciado das aptidões animais (como habilidades inatas e instinto), se vê dotado de inteligência e sensibilidade (tomadas como disposições naturais).9 Aqui Herder introduz o conceito fundamental de “reflexão”, que o ajudará objectivamente a conciliar três orientações: primeira, a apresentar a razão humana e a determinação para o pensamento (exemplo, não ser um ser que apenas conhece, mas que sabe que conhece),10 segunda, a conferir a possibilidade de desenvolver o argumento em favor de um ser que só pode raciocinar, porque tem linguagem e vice-versa, e terceira, a colocação do conceito de “reflexão” (um “estado”) que enseja desvelar a essencialidade da natureza humana. Refere Herder (1987, p. 52. Itálicos nossos.):
Se o homem não podia ser um animal instintivo, então, devido à força positiva da sua alma e à liberdade de acção dessa força, tinha que ser uma criatura dotada de reflexão. […] Se de facto a razão não é uma força isolada, agindo sozinha, mas sim um direcionamento específico de todas as forças próprias do género humano, então o homem tem que a possuir logo no primeiro momento, precisamente porque é homem.
Essa conceção de Herder é fundamental para a compreensão global do seu pensamento e, em concreto, para a compreensão do problema a que se dedicou, neste ensaio. De facto, o filósofo não está apenas a realçar a racionalidade humana que, de resto, era já uma marca do pensamento na época, mas a reclamar uma tonalidade diferente para essa racionalidade, ao inseri-la no âmbito de uma essencialidade interior à mente humana; significa isso que a “reflexão”, enquanto característica do homem, permite-lhe validar uma primazia ontológica na natureza humana, quer dizer, a reflexão só assola ao raciocínio, ao pensamento, porque já é constitutivamente originária na alma humana e, se o não fosse, não poderia aparecer, pois, como diz Herder (1987, p. 54),
[...] se nada houvesse na capacidade, como chegaria a haver alguma coisa na alma? Se, no estado inicial, não houvesse na alma nenhuma presença da razão, como poderiam efetivar-se os milhões de estados que se vão seguir? É uma fraude verbal dizer que a utilização pode transformar uma capacidade numa força, transformar uma mera possibilidade numa realidade; se uma força não existe já, então não se pode utilizá-la e aplica-la. […] o estado mais sensível do homem era já um estado humano e, portanto, nele agia já a reflexão, apenas num grau menos notável; do mesmo modo que, nos animais, o menos sensível dos estados é ainda um estado animal e, portanto, por maior clareza que haja nos seus pensamentos, nunca está em acção a reflexão própria de um conceito humano.
O filósofo insere assim, no âmbito da análise da natureza humana, uma forma de intelecção fundante que será propiciadora da linguagem. A reflexão (veja-se também o sentido primeiro dessa consciencialização interna como o que reflete na sua interioridade) é essa capacidade de interiorização que opera um reconhecimento (de características diferenciadoras, leia-se também com função simbólica) e que, dando uma dimensão consciente de si e do acto, favorecerá o aparecimento da linguagem:11
Colocado no estado de reflexão que lhe é próprio, logo que essa reflexão começou a agir livremente, o homem inventou a linguagem. Pois, reflexão o que é? E linguagem?
A reflexão é caracteristicamente específica do homem, faz parte da essência da espécie humana. Ora, a linguagem e a invenção da linguagem pelo próprio homem também o são. Assim, a invenção da linguagem é para o homem tão natural como o facto de ser homem! […]
Ou seja, o homem evidencia reflexão, não quando se limita a conhecer com vivacidade ou clareza todas as propriedades, mas quando consegue reconhecer para si uma ou mais propriedades como diferenciadoras. O primeiro acto de um tal reconhecimento fornece já um conceito distinto; é o primeiro juízo do espírito. […]
Esta primeira característica da consciência era já palavra da alma! Com ela estava descoberta a linguagem humana! (HERDER, 1987, p. 55-56).
É, portanto, a partir da compreensão desse estado de reflexão e não da explicação do carácter imitativo, presente na natureza,12 que deve residir a explicação lógica e natural para a origem humana da linguagem. Este é um ponto sensível no discurso de Herder que, tal como sucede ainda hoje, suscita muitas interrogações. E suscita-as precisamente porque a ideia da imitação parece surgir como algo redutor ou como algo que remete para uma competência instintiva no humano, o que, de acordo com Herder, não parece aceitável.13 Uma das grandes defensoras da teoria mimética é Susan Blackmore, para quem a imitação é precisamente aquilo que nos faz humanos, ou melhor, seriamos “imitadores diferenciados”,14 seres de memes (nota-se claramente a influência da obra de Richard Dawkins, O Gene Egoísta), que define como “[...] instruções para realizar comportamentos, armazenadas no cérebro (ou em outros objetos) e passadas adiante por imitação”. (BLACKMORE, 1999, p. 17). Diga-se apenas que, apesar dessas teorias, e mesmo com a descoberta dos neurónios-espelho (uma espécie de justificação neuronal para os processos imitativos), ainda subsistem muitas incertezas quanto à sua validade.
O terceiro capítulo revela a genialidade do pensamento de Herder, já que justifica, do ponto de vista interno (da alma humana) e do ponto de vista externo (a história social das línguas e povos do mundo), a invenção humana da linguagem.15 Para tal, o filósofo introduziu uma triangulação curiosa, a qual se opera no jogo entre sonoridades, ouvido e linguagem interior (audição, som e reflexão), e avançará com a conclusão que explorará na segunda parte, frisando “[...] que o homem teve necessariamente que inventar a linguagem.” (HERDER, 1987, p. 113).
Na verdade, e como já fizemos questão de mencionar, Herder dá especial atenção à audição, ao atribuir-lhe a responsabilidade de interligação entre o som ouvido e o ressoar interior de significação (enquanto atribuição de características identificadoras e/ou diferenciadoras da realidade exterior), o que assentirá na interioridade do homem ao desvelamento funcional da razão e linguagem.16 Embora não descurando a importância dos outros sentidos para o processo, Herder submete-os à relevância da audição,17 pois é “[...] fácil compreender como as sonoridades, uma vez transformadas em características para uso do entendimento, se converteram em palavras.” (HERDER, 1987, p. 82). Quer isso significar que, na ordem da sensação (todo o sentir), terá imediatamente o seu “som” e, sendo o ouvido um órgão de linguagem que unifica a totalidade das sensações que soaram, a condução ao plano em que é racionalmente atribuída uma característica, passará a existir uma palavra para tal evocação.18 É exatamente isso que está dito para fundamentar a noção do ouvido como sentido central para a “[...] criatura de reflexão e linguagem, de consciência e criatividade linguística” que é o homem. Refere Herder, a esse propósito (1987, p. 87):
Como o homem só por intermédio do ouvido recebe a linguagem que a natureza lhe ensina e como sem o ouvido não seria possível a invenção da linguagem, o ouvido tem que ocupar uma posição central específica no conjunto dos sentidos; o ouvido torna-se assim a verdadeira porta para a alma e o laço de união entre os restantes sentidos.
Acontece ainda que as línguas evoluem, preparam e desenvolvem conceitos mais vastos e, portanto, também mais abstratos, o que vem, segundo Herder, corroborar mais uma vez a origem humana da linguagem (1987, p. 106):
Precisamente porque a razão humana não pode existir sem abstração e porque nenhuma abstração se faz sem linguagem, acontece que em qualquer povo a língua tem que conter abstrações, ou seja, tem que ser imagem da razão, uma vez que foi seu instrumento. Mas, como cada língua só contém aquilo que o povo que a fala pôde fazer, e como nenhuma abstração existe que tenha sido obtida sem os sentidos (assim o demonstra a sua expressão originalmente sensível), acontece que em parte alguma se encontra ordem divina a não ser no acto de a linguagem ser integralmente humana!
Deve ser notado que Herder está, ao longo de todo o ensaio, a articular (quase) despercebidamente um conceito fundamental que conferirá uma unidade extraordinária e genial à sua teoria e que é, nas palavras de José M. Justo, o “dispositivo” da totalidade (ou globalidade). É com ele e a partir dele que faz sentido pensar a unidade global do homem no devir, no transcorrer histórico das suas aquisições e, nesse sentido, a totalidade do homem faz-se ressoar na totalidade do processo constitutivo da linguagem, ao sucessivamente ir aprimorando os estados reflexivos (na interioridade) do seu ser.19
Na segunda parte do ensaio, e com base em grande parte da argumentação já desenvolvida, Herder irá estabelecer as leis naturais que condensam as leis da natureza e da espécie humana, no que diz respeito à sua predisposição para a linguagem.
Assim, a primeira lei natural refere: “O homem é um ser em actividade, que pensa livremente, e cujas forças atuam em progressão; por isso é uma criatura de linguagem.” (HERDER, 1987, p. 117). O homem é um ser que está, pela sua natureza, predisposto a desenvolver-se, pelo que o seu primeiro momento de consciencialização interna teria de ser também o do nascimento interior da linguagem. Para Herder, o homem é homem desde que é posto no mundo e, embora possa não ser ainda uma criatura de consciência, já o é de reflexão (porque todos os estados de reflexão são estados linguísticos, quer dizer, “uma cadeia de pensamentos é uma cadeia de palavras”). Desse modo, a formação da linguagem é um processo que se desenvolve tão naturalmente como a formação da própria natureza humana.
A segunda lei natural estabelece: “O homem é por vocação uma criatura gregária, social: o desenvolvimento progressivo duma língua é-lhe, pois, natural, essencial, necessário.” (HERDER, 1987, p. 134). Da mesma forma que é natural uma criatura se desenvolver no seio de uma comunidade, é natural que um homem se desenvolva linguisticamente, no seio dos homens. Herder afirma que nenhum homem existe para si mesmo, quer dizer, os homens partilham de uma natureza tal que os impede de se desenraizarem da espécie humana. Acresce ainda que, sendo o homem um ser social por essência, não faria sentido não possuir um meio de comunicação, quer dizer, in absurdo isso entraria em contradição com a própria noção de ser social. Daqui decorre também a diversidade de línguas, que a terceira lei e a quarta lei vêm plasmar, como se vê:
A terceira lei natural dita: “Tal como o género humano na sua globalidade não podia continuar a ser uma só horda, também não podia permanecer com uma só língua. Assiste-se, assim, à constituição de diferentes línguas nacionais.” (HERDER, 1987, p. 146).
A quarta lei natural: “Tal como o género humano, segundo toda a probabilidade, se foi constituindo progressivamente como um todo, duma só origem para uma grande família, o mesmo se passou com todas as línguas e, portanto, com toda a cadeia da formação.” (HERDER, 187, p. 156).
O filósofo está a acentuar aquilo que estava já subentendido antes da expressão das leis e que estas vêm sublinhar com a riqueza do seu pensamento antropológico, a saber, que não só que a humanidade é uma e una, mas também que a linguagem se reproduz e se desenvolve na proximidade da humanidade ou, para usarmos a nomenclatura de Herder, com o género humano (sente-se uma vez mais a coesão do discurso do filósofo, pela constante referência à globalidade na proximidade da essencialidade da natureza humana). Diga-se, por conseguinte, que o pensamento de Herder se alarga e abre portas a pensar a existência humana com a linguagem (naquilo que pode ser encarado como uma afirmação da coexistência da espécie e o seu legado cultural):
Tal como não posso fazer uma acção ou pensar uma coisa sem que isso naturalmente tenha efeito sobre toda a incomensurabilidade da minha existência, nem eu nem nenhuma outra criatura da minha espécie podemos fazer seja o que for que não tenha efeito sobre toda a nossa espécie e sobre todo o progresso global dela. Cada um junta sempre uma onda, pequena ou grande; cada um modifica o estado da própria alma e nisso a totalidade dos estados das almas; cada um age sobre os outros e neles modifica sempre qualquer coisa. O primeiro pensamento da primeira alma humana está ligado ao último pensamento da última das almas. (HERDER, 1987, p. 157).
2 O cenário de Singularidade Tecnológica e o legado de Herder
A cogitação operada por Herder em torno da origem humana da linguagem possibilitou compreender que a espécie humana e a linguagem estão em permanente evolução.20 Se há uma história efetiva do progresso, então ela deve contemplar a linguagem como aquisição fundamental, a partir da qual não haveria essa mesma história. Também de considerar que há no ensaio de Herder uma espécie de teleologia (de evidente fundo kantiano) para a humanidade, que se revela precisamente através da conceção de um inacabamento da linguagem e do homem, entretanto, que tenderia para um perfecionismo (de que as linguagens metafísicas podem constituir uma primeira amostra). De acordo com isso, tal finalidade encontra sentido nos horizontes que vai constituindo e, por isso, alargando a experiência de ser um ser que reinventa a linguagem.
Talvez aqui o texto de Herder ganhe um novo sentido, ao alertar-nos para a permanente reconstrução que o homem faz de si mesmo e dos conhecimentos que gera. É a partir dessa capacidade inventiva do homem (inscrita na sua natureza) que se dá o desabrochar das diferentes linguagens que viriam a transformar o mundo. Uma tal conceção permite compreender também que nem todas as invenções poderão ser tidas com a fortuna da linguagem, na sua criação. Pensemos um pouco sobre isso.
No ensaio “A última grande invenção ou o fim do humano”, defendi a tese de que a Inteligência Artificial poderá ser a última grande invenção da humanidade. Com tal tese, permiti-me alertar, baseando-me nas preocupações de reputados filósofos (sobre a criação e uso de drones militares), entre os quais Stephen Hawking e Noam Chomsky, não apenas para o perigo da robotização inteligente,21 mas também para a possível anulação da espécie.22 Naturalmente, estamos conscientes de que um tal cenário (que não deve ser tido como um cenário de ficção científica, mas como uma possibilidade real) recai sobre um cenário de “Singularidade”, termo que Raymond Kurzweil cunhou, para se referir a esse ponto no qual a inteligência artificial teria superado a inteligência humana. Também Nick Bostrom coloca em questão a possibilidade de uma superinteligência poder fugir ao controle humano (o que enseja pensar que a última invenção pode ser efetivamente dramática, do ponto de vista existencial para a humanidade). São disso exemplos os livros The Age of Spiritual Machines: When Computers Exceed Human Intelligence (2000), de Ray Kurzweil, ou Smarter Than Us. The rise of machine intelligence (2014), de Armstrong, os quais alertam para esse cenário dramático.
Ora, esse cenário conta ainda com uma agravante. No final do século XX e início do século XXI, começaram a surgir alguns estudos que alertavam para uma diminuição do uso de vocabulário, sobretudo nas camadas mais jovens da população, tal como alertavam para uma diminuição das capacidades cognitivas, motivada pelo uso excessivo de meios digitais, como tablets e smartphones e dos motores de pesquisa, em detrimento da informação (SPARROW; LIU; WEGNER, 2011). Esses estudos vinham confirmar, em parte, aquilo que já se supunha poder acontecer com a alienação intensa a que o homem estava a ser submetido. Embora esteja aqui apresentada uma visão sinistra, talvez seja a partir dela que se possa questionar a sua validade, isto é, que se possa questionar o que significa ser humano ou como ser humano, num mundo computacionalmente inteligente, segundo alerta Nick Bostrom, em Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies (2014).
Considerações finais
Chamando ao debate o nosso filósofo, poderemos perguntar também que lições retirar do seu ensaio ou, reequacionando de outra forma: a verificar-se um quadro de singularidade, o legado de Herder, no que concerne não só à linguagem per se, mas em relação à essência da natureza humana, fará sentido ou constituirá mesmo um patamar de compreensão e determinação para a salvaguarda da humanitas? É bom de ver que a pergunta conduz já a um respondimento afirmativo e, no que interessar considerar para o intuito deste ensaio (estabelecendo um contacto com o ensaio de Herder), devem ser tidos em conta dois aspetos: o primeiro, a natureza humana, e o segundo, a linguagem humana. Como referido, Herder pensa o Homem na sua globalidade e descobre-lhe forças e fraquezas. Todavia, é nessa fragilidade que o homem descobre a sua força, é nessa aparente incapacidade que se faz homem, conforme escreve Herder (1987, p. 136. Itálicos nossos.):
E do mesmo modo, também na totalidade do género humano a natureza sabe transformar a fraqueza em força. É por isso mesmo que o homem vem ao mundo tão fraco, tão necessitado, tão destituído de ensinamentos naturais, todo ele sem talentos, sem habilidade, como nenhum animal; para que possa, como nenhum animal, gozar duma educação e para que o género humano, como nenhuma espécie animal, possa tornar-se um todo intimamente ligado!
Essa espécie de apelo de Herder à natureza humana, esse apelo à compreensão e avaliação das capacidades humanas, reverte-se na capacidade que a humanidade tem para se reinventar e, nesse sentido, também para reinventar a linguagem.
Se a inteligência artificial, num estado avançado, poderá vir a manifestar algo como uma vontade própria (o machine learning parece apontar nesse sentido), só uma reinvenção humana da linguagem poderá estabelecer os alicerces de uma resistência total aos ditames dessa nova entidade. É pela linguagem que se resiste. Do mesmo modo que se codificam as mensagens (ou, se preferirmos, se codificou a linguagem), nas grandes guerras, também, num cenário futuro, uma reinvenção da linguagem permitirá resistir para vencer. E talvez aqui se encontre a grande força do homem, o qual, mesmo num cenário de singularidade, não deixará de manifestar a sua capacidade de criação, a sua força inventiva, a sua força e capacidade de resistência (à semelhança dos seus antepassados, dos criadores humanos da linguagem). Nada disso é novidade - só um cenário distópico o poderá ser, na realidade - e Herder já o sabia e deixou-nos este legado (1987, p. 163):
Coloque-se este homem em sociedade e perante dificuldades várias, de tal forma que tenha de cuidar de si e doutros […] Poder-se-ia pensar que o peso desses novos fardos lhe retirasse a liberdade de se erguer, que este acréscimo de tarefas penosas lhe roubasse a disponibilidade para a invenção. Mas passa-se precisamente o inverso! A necessidade fortalece-o, as tarefas pensosas despertam-no, a falta de descanso mantém-lhe a alma em movimento: há-de fazer tanto mais quanto mais espantoso for que o faça.
Referências
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Notas