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Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”: de conceitos a perguntas, de perguntas a conceitos1
Recepção: 19 Abril 2023
Aprovação: 22 Abril 2023
Em “Para Velhas Perguntas, Novas e Melhores Respostas: da Engenharia Conceitual ao Aprimoramento Erotético”, André J. Abath propõe que devemos melhorar nossas respostas a questões do tipo “O que é um F?” Com tal proposta, Abath busca “[i]ntroduzir uma nova proposta no campo de pesquisa da ética conceitual.” A ética conceitual, enquanto campo de pesquisa, diz respeito às maneiras de os filósofos irem além da mera exposição daquilo que Goldman (1989) chama de ontologia folk, rumo a maneiras de avaliar e melhorar nossas representações do mundo e de nós mesmos - aquilo que Goldman denomina metafísica prescritiva, um campo de pesquisa que tem florescido nos últimos anos (THOMASSON, 2020). Nas propostas usuais desse campo de pesquisa, os objetos a serem aprimorados são nossos dispositivos representacionais, sejam estes tomados por conceitos ou por palavras. Na proposta de Abath, são nossas respostas a perguntas do tipo o-que-é.
Abath focaliza o campo de pesquisa da ética conceitual, o qual envolve a avaliação dos nossos dispositivos representacionais (as palavras e os conceitos), mas também a intervenção, quando esses dispositivos não se adequam a nossos objetivos (coletivos e individuais) legítimos. Essa apresentação é valiosa, pois introduz os novatos ao tema, e está em conformidade com a compreensão-padrão e correta das pesquisas sobre ética conceitual e engenharia conceitual.
Abath motiva sua proposta de focar na melhoria de respostas a perguntas do tipo o-que-é no fato de que não há consenso, entre os pesquisadores da área da ética conceitual, sobre o que são conceitos. São abstracta? São significados? Representações mentais? Palavras? Essa falta de consenso é uma ameaça à área de pesquisa da avaliação e melhoria de dispositivos representacionais (a ética conceitual), pois não deixa claro o que é para ser melhorado.
Proponho, aqui, algumas questões:
Sobre a metafísica dos conceitos. Sem dúvida, há divergências nítidas e notáveis sobre a natureza dos conceitos. No entanto, é de se admitir que divergências sobre a metafísica dos conceitos não têm impedido os pesquisadores do campo da ética conceitual de ter conversas substantivas uns com os outros. Isso indica, creio, que a área de pesquisa da avaliação e melhoria de dispositivos representacionais lida bem com o pluralismo sobre a natureza dos conceitos.
Mudança de assunto? Além disso, poderia se objetar que trocar conceitos por respostas a perguntas do tipo o-que-é piora a situação, pois não diminui a babel em torno do conceito de conceito, mas diminui o foco nos dispositivos representacionais, o que pode vir a ser um risco para a área. Não seria interessante endereçar essa objeção para não enfraquecer a motivação para a proposta?
Uma questão verbal? Por fim, se a proposta de Abath está certa, então, a “ética conceitual” é misnamed, dado que não diz respeito a conceitos. Esta é uma dificuldade substantiva ou meramente verbal?
Outra questão é que o elemento reflexivo, ao se pensar sobre as respostas possíveis a perguntas do tipo o-que-é, naturalmente passa por conversas sobre conceitos. O próprio apelo de Abath à jogada da subscrição (CHALMERS, 2017) revela isso. Logo, considere-se o seguinte diálogo:
“Onde fica o banco?”
“Fica na praça.”
“Mas, peraí, o que você quer dizer com ‘banco’? De sentar ou de pagar boleto?”
No exemplo acima, a melhoria da resposta à pergunta “Onde fica o banco?” passa pela questão do conceito empregado. Não creio que a conversa acima seja atípica. Meu ponto é que o aprimoramento erotético é uma alternativa, no sentido não exclusivo, à avaliação e melhoria de conceitos.
Abath compara a facilidade de mudar significados à facilidade de mudar respostas. Sem dúvida alguma, é mais claro o que é mudar (e melhorar) uma resposta do que mudar (e melhorar!) um conceito. Por um lado, não é claro como se faria para mudar o significado (extensão ou intensão) de um conceito, pois mecanismos semânticos são complexos. Por outro lado, é relativamente fácil detectar quando uma resposta deixa de responder a uma pergunta, quiçá porque mecanismos epistêmicos e psicológicos são mais fáceis de entender e manipular do que mecanismos semânticos. Este é, sem dúvida, um ponto a favor do aprimoramento erotético. Contudo, não se poderia usar melhores respostas para aprimorar conceitos? Pense-se no caso das baleias:
A pergunta. O que é uma baleia?
A melhor resposta. Uma baleia é um mamífero.
Essa resposta melhora o conceito de baleia.
De qualquer forma, o foco no jogo do perguntar e do responder é o elemento mais original e mais frutífero da proposta de Abath. Abath se propõe resgatar o projeto clássico de investigar o que as coisas são. Este é um projeto de Sócrates, o qual não cansava de pedir que as pessoas que têm posições firmes sobre algum F (a justiça, a virtude etc.) explicitassem o que elas entendiam sobre F. Esse projeto, que para Sócrates se limitava às coisas da moral, foi estendido por Platão para tudo, inclusive o ser. Não é claro, no entanto, de que tipo de projeto se trata. Qual o foco do aprimoramento erotético? Creio que é possível focar:
Em questões metafísicas, como “O que é um F?”
Em questões ontológicas, como “Como os Fs são conceitualizados na ontologia da população S?” (metafísica descritiva), ou “Como deveríamos conceitualizar os Fs (as baleias, por exemplo), à luz da biologia?” (metafísica prescritiva, como diria Goldman)
Em questões cognitivas, como “Como a população S conceitua os Fs?”
Em questões epistêmicas, como “Como um indivíduo da população S pode vir a saber o que é um F?”
No livro, Abath explora, antes de tudo, a via epistêmica. Abath (2022, p. 3) afirma que saber o que um tipo de coisa é saber responder (habilmente, legitimamente) à questão “O que é um F?” O foco no epistêmico tem sua razão de ser na importância de saber o que as coisas são. Nossa geração viu de perto as consequências de se ignorar o que é a COVID - e o quanto a negação do pouco que se sabia foi mortal. Este é um caso extremo, mas, mesmo para interagir bem com um gato, você tem que saber o que é um gato (ABATH, 2022, p. 1).
No livro, Abath defende que a proposta do aprimoramento erotético só funciona para os conceitos sociais não disputados, pois não é claro o que é conhecer um ente social, tal como o casamento, não é saber responder à pergunta “O que é o casamento?” apenas dizendo “Casamento é…” (ABATH, 2022, p. 77). Aqui se revela o ponto fraco da proposta do aprimoramento erotético. Eis minha crítica:
Por se apoiar no conhecimento (epistemologia), em vez de se apoiar no esquema conceitual que usamos para lidar com a realidade (ontologia), o aprimoramento não dá conta de uma parte significativa das perguntas do tipo o-que-é.
Aqui se mostra mais aguda a proposta de Thomasson (2020), o qual propõe que se faça metafísica prescritiva sobre os aspectos da realidade que nos interessam, incluindo os aspectos sociais. Nessa proposta, o importante é avaliar se nossos conceitos estão de acordo com nossos interesses legítimos. A partir daí, avaliam-se as respostas às perguntas do tipo o-que-é.
Minha crítica, aqui, é que restringir a aplicação do esquema explicativo do aprimoramento erotético a espécies naturais é ad hoc. Abath sustenta que, no caso de certos entes sociais, as respostas às perguntas do tipo o-que-é podem nos parecer muitíssimo erradas (ABATH, 2022, p. 98). No entanto, este é o caso também para espécies naturais. A tese de que um átomo pode ser partido pareceu totalmente errada a vários cientistas de primeira linha, assim como a tese de que baleias são mamíferos.
A proposta de aprimoramento erotético para respostas a perguntas do tipo o-que-é relacionadas a entes sociais parece desmotivada, portanto. Melhor seria seguir o caminho de Thomasson e de tantos que reconhecem que o trabalho do metafísico prescritivo se dá no envolvimento em negociações metalinguísticas.
[Artigo comentou ] 10.1590/0101-3173.2023.v46esp1.p103