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Eficácia tributária dos sistemas de cobrança dos quintos reais: A segunda capitação em Minas Gerais, 1736-1751
The Tax Efficacy of the Royal Fifths Tax Collection System: The Second Head Tax in Minas Gerais, 1736-1751
Eficácia tributária dos sistemas de cobrança dos quintos reais: A segunda capitação em Minas Gerais, 1736-1751
Varia Historia, vol. 32, núm. 60, pp. 837-860, 2016
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais
Recepção: 08 Março 2016
Revised document received: 27 Abril 2016
Aprovação: 04 Maio 2016
Resumo: A cobrança dos quintos sobre o ouro produzido no Brasil conheceu pelo menos cinco sistemas de arrecadação. Esse reformismo em matéria tributária pode ser atribuído à busca pela maior eficácia tributária de cada um dos sistemas de cobrança, mas sem dúvida a novidade da atividade econômica - a mineração -, bem como a cobrança dos tributos sobre ela incidentes por agentes da Coroa, e não por particulares sob o tradicional sistema de contratos, exerceram um papel fundamental. Este artigo analisa a eficácia da cobrança dos quintos de um desses sistemas: a capitação, que vigorou entre o segundo semestre de 1735 e o primeiro semestre de 1751. Com base na comparação, de um lado, entre os montantes arrecadados e a quota mínima estabelecida pela Coroa portuguesa, e, de outro lado, entre o rendimento dos quintos entre 1735 e 1751 e entre 1751 e 1766, mostra-se que a eficácia da capitação é inconteste. Este resultado sinaliza para a necessidade de aprofundar-se o estudo dos motivos que teriam levado a Coroa a alterar um sistema comprovadamente eficaz por outro, que se mostrou incapaz de cumprir a quota estabelecida já no primeiro ano de sua vigência.
Palavras-chave: quintos, capitação, Minas Gerais.
Abstract: The collection of the fifths tax levied on the gold produced in colonial Brazil was carried out by means of at least five different systems of tax collection. This reformism in tax matters can be attributed to the search for greater tax efficiency in each collection system, but also, without a doubt, to the novelty of mining as an economic activity, as well as the fact that mining-related duties were collected not by the traditional farming tax system, but by royal officials. This article analyzes the effectiveness of the collection of the fifths tax through one of these systems, the head tax, which was in place between the second half of 1735 and the first half of 1751. Based on the comparison between the amounts raised and the minimum quota established by the Portuguese crown, on the one hand, and between the income of the fifths tax during the periods 1735-1751 and 1751-1766, on the other hand, it is shown that the effectiveness of the head tax is incontestable. These results point to the need to further study the reasons that may have led the Crown to change a tax collection system that was proven to be efficient for another, which was not capable of meeting the established quota.
Keywords: fifths tax, head tax, Minas Gerais.
A experimentação em matéria fiscal é a característica mais notável da Coroa portuguesa com respeito à arrecadação dos quintos reais, que conheceram cinco métodos de cobrança ao longo da primeira metade do século XVIII. O primeiro sistema alicerçava-se no que Eschwege denominou "a consciência dos mineiros".1 De 1697 até 7 de dezembro de 1713 os quintos eram pagos tanto em Minas, aos guardas-mores, como nas Casas de Fundição de Taubaté ou de Santos, desde que os próprios mineradores tomassem a iniciativa. O segundo sistema foi a capitação - na prática a cobrança de um determinado valor por cada escravo e por estabelecimento comercial, e vigorou de 7 de dezembro de 1713 a 30 de setembro de 1724. O terceiro método vigorou de 1o de outubro de 1724 até 1o de julho de 1735, no qual a quintagem seria feita nas Casas de Fundição. O sistema seguinte correspondia novamente à capitação, e funcionou de 1o de julho de 1735 a 1o de agosto de 1751. Finalmente, o alvará de 3 de dezembro de 1750 restabeleceu as Casas de Fundição, que passaram a funcionar a partir de 1o de agosto do ano seguinte. Além dos sistemas de cobrança, e na ausência de dados seguros sobre a produção aurífera, outro elemento a sofrer variação no período foi o montante mínimo anual a ser pago pelos mineiros, "como estimativa do imposto devido", denominadas fintas, que "variavam ao sabor do apetite fiscal e das expectativas quanto aos níveis efetivos de sonegação": entre 1713 e 1718 o valor fixado foi 30 arrobas; de 1718 a 1722, 25 arrobas acrescidas dos direitos de entrada de mercadorias nos registros; de 1722 a 1725, 52 arrobas; e a partir de 1725, 100 arrobas anuais.2
A hipótese mais comum levantada para este reformismo em matéria tributária advém da maior ou menor eficácia tributária de cada um desses sistemas de cobrança dos quintos sobre o ouro produzido no Brasil durante o século XVIII, mas sem dúvida exerceram um papel fundamental tanto a novidade da atividade econômica - mineração, como a cobrança dos tributos sobre ela incidentes por agentes da Coroa, e não por particulares sob o tradicional sistema de contratos. Por "eficiência fiscal" ou "eficácia tributária", expressões aqui tomadas como sinônimas, está-se considerando "a capacidade de arrecadação dos tributos e direitos régios pelo Estado". Esta capacidade depende diretamente de um conjunto de variáveis, dentre as quais a mais relevante é sem dúvida o sistema de cobrança adotado. Um dado sistema de cobrança implica tanto a estrutura material disponível quanto os elementos institucionais. No que respeita à estrutura material, devem ser considerados o número e a distribuição geográfica das repartições e dos funcionários responsáveis pelo recebimento dos tributos, o que interfere diretamente na maior ou menor facilidade da cobrança. Entre os elementos institucionais devem ser levados em conta tanto a capacidade persuasiva do Estado, aferida por meio da percepção pelos contribuintes da legitimidade de um dado tributo, quanto a capacidade coercitiva desse mesmo Estado em fazer com que se paguem os impostos. Portanto, quanto maior a capacidade de arrecadação de um determinado tributo ou direito régio pelo Estado, maior a eficiência do sistema de cobrança por ele adotado.
A verificação da eficácia tributária destes sistemas de cobrança dos quintos, contudo, enfrenta o problema de não contar-se até o momento com cifras muito seguras relativamente ao total efetivamente arrecadado por cada um deles para a primeira metade do Setecentos. Em todo o caso, busca-se aqui proceder a uma primeira incursão sobre a eficácia tributária da capitação e censo das indústrias em Minas Gerais, que vigorou entre o segundo semestre de 1735 e o primeiro semestre de 1751.
Os dados relativos às chegadas do ouro brasileiro a Lisboa sugerem que a entrada em vigor da capitação em 1735 correspondeu a um decréscimo de cerca de 50% no quinquênio 1735-1739 em relação ao quinquênio anterior, caracterizado pela cobrança dos quintos pela Casa da Moeda e Fundição de Vila Rica. Por sua vez, a reintrodução do sistema de casas de fundição em 1751 teria aumentado as remessas para o Estado. Estas cifras sinalizariam para a maior eficácia tributária do regime de casas da moeda em comparação com o sistema de capitação (Costa; Rocha; Sousa, 2013, p.71-92). Contudo, esta análise, como bem salientam as autoras, exige que se leve em conta uma variável indispensável: os custos de dominação, isto é, as rendas das colônias eram responsáveis também pelo custo da "territorialização dos estados colonizadores". Logo, antes de concluir-se pela maior ou menor eficácia tributária dos dois sistemas de arrecadação dos quintos, tem-se de considerar que outros custos no período, realizados na colônia, poderiam interferir na remessa líquida de metal precioso para a metrópole.
O recurso aos manifestos do 1% do ouro como índice da eficácia tributária implica, outrossim, em considerar que as remessas para o rei incluíam não apenas o arrecadado com a capitação, mas também o excedente fiscal em ouro, e do qual dispomos de cifras seguras ao menos para Minas Gerais: as "sobras", como eram então denominadas, remetidas entre 1736 e 1751 pela Provedoria da Real Fazenda dessa capitania, chegaram a 2.745.638,11 oitavas.3
Neste mesmo período, foram registradas 8.209.333,33 oitavas de ouro destinadas ao rei na Casa da Moeda de Lisboa, valor bem abaixo da soma do excedente fiscal e o valor dos quintos da capitania de Minas Gerais, equivalente a 10.959.544,34 - se se considerar a cifra mais baixa, ou 11.183.115,85 - se se levar em conta o valor mais alto.4 Portanto, uma primeira conclusão a ser extraída destes dados é a de que as remessas de ouro para o rei entre 1736 e 1751 não foram integralmente registradas nos livros dos manifestos.
Ao contrário dos dados relativos aos demais períodos, o valor total arrecadado durante os 16 anos - ou 32 semestres (de 1o de julho de 1735 a 30 de junho de 1751) - de vigência da segunda capitação não conta apenas com uma cifra, mas com pelo menos três. A primeira data do século XVIII, e apresenta-se numa tabela com o rendimento anual da capitação totalizando 8.213.906,23 oitavas de ouro. No entanto, esta tabela contém dois problemas importantes: não menciona sua fonte e não explica nem as lacunas nos dados para os anos de 1735 a 1737 e 1741, bem como os totais aparentemente dobrados para os anos de 1738 a 1740 e 1744.5
Ora, há registro detalhado da remessa do rendimento da capitação do segundo semestre de 1735 e primeiro semestre de 1736 feita pelas autoridades de Minas Gerais em julho de 1736. Ainda que o valor total arrecadado na capitação desse período só fosse registrado em 1737, ele deveria figurar na tabela da Coleção Pombalina.6 Conclusão inevitável: os dados da tabela em questão não correspondem aos valores dos quintos arrecadados em anos particulares, mas de totais referentes a diversos anos e contabilizados num único ano. Poder-se-ia assim interpretar a ausência dos dados de 1735 a 1737 e 1741, e os valores dobrados de 1738 a 1740: os quintos teriam rendido de 1735 a 1741 cerca de 3.123.152,97 oitavas.
As duas outras cifras correspondem a variações de uma fonte comum, e são superiores ao montante apresentado anteriormente - 8.396.450,75 ou 8.437.477,74 oitavas de ouro, isto é, uma diferença de 182.544,52 ou 223.571,51 oitavas de ouro, ou algo entre 44,5 e 54,5 arrobas de ouro (anexo 1). Se se considerar que a finta (isto é, o valor mínimo dos quintos a ser pago a Sua Majestade) de 100 arrobas anuais, ou 409.600 oitavas no mesmo período, deveria produzir um total de 1.600 arrobas, ou 6.553.600 oitavas de ouro, os números apresentados por essas três fontes revelam que, ao longo de todo o período de vigência da capitação, os quintos teriam excedido em 1.660.306,23 oitavas (isto é, 405,35 arrobas) o total correspondente à finta.7 À primeira vista, portanto, a eficácia tributária do sistema da capitação mostra-se inconteste, pois que em 16 anos inteiros foi capaz de gerar um excedente equivalente a no mínimo 25,33% do total devido.
Variáveis de mensuração da eficácia tributária
Todo esse excedente fiscal tão satisfatório relaciona-se em primeiro lugar à coincidência entre o período de cobrança desses tributos e o de maior produção aurífera, avaliada pelas chegadas de ouro a Lisboa ao longo de todo o século XVIII. Considerando-se o período médio de 15 a 16 anos, as remessas de ouro registradas na Casa da Moeda de Lisboa totalizaram 29.741.777,76 oitavas de 1720-1735 (média anual de 1.858.861,11 nos 16 anos), 35.926.666,68 oitavas de 1736-1751 (média anual de 2.245.416,66 nestes 16 anos), e 27.189.333,32 oitavas de 1751-1766 (média anual de 1.812.622,22 ao longo de 15 anos) (Costa; Rocha; Sousa, 2013, p.191-194). A maior produção de ouro no Brasil situa-se portanto, exatamente no período de vigência da segunda capitação. Logo, esta eficácia corresponde diretamente a uma base fiscal sob uma conjuntura de bonança aurífera. Em segundo lugar, os 25% excedentes têm como termo de referência uma quota mínima a ser paga pelos mineiros. Num período de bonança, não seria de fato muito difícil ultrapassá-la.
Além disto, a estrutura responsável pela arrecadação era de fato notável. Cada vila dispunha de um conjunto de indivíduos responsáveis pela cobrança, inclusive nas áreas mais afastadas e extensas - os sertões - o que aproximava os contribuintes dos cobradores do tributo, de um lado, e reforçava a autoridade da Coroa, de outro. Nas palavras do governador:
como o território do sertão pertencente a este governo das Minas se acha hoje, sem embargo da sua grande extensão, na obediência em que vivem os mais moradores delas, me foi preciso criar de novo para aquele distrito os oficiais da ordenança que constam que são os mais capazes e abonados por informações que tirei, não só para efeito de lhe encarregar a cobrança da capitação a cada um deles nos distritos que lhe destinei, mas também para melhor se executarem outras diligências do serviço de Vossa Majestade e conservar aqueles povos na devida obediência (grifo meu).8
Como bem observou Joaquim Romero Magalhães, os cargos na estrutura responsável pela cobrança e arrecadação do tributo - a saber: intendentes auxiliados por um fiscal, um escrivão, um ajudante, um tesoureiro, um meirinho e quatro soldados dragões - "foram postos a concurso público", concorrendo a intendentes bacharéis habilitados pela Mesa do Desembargo do Paço para servir os lugares de letras. Assim constituídas, as intendências representavam "organismos de atuação fiscal de acrescida eficácia" (Magalhães, 2009, p.122).9
Mas não apenas isto. No âmbito das medidas tomadas pelo governador no sentido de melhorar a capacidade arrecadatória do tributo, foram nomeados peritos para atuarem nas intendências então criadas. A indicação recaiu exatamente sobre servidores que trabalharam com o antigo superintendente das Casas de Moeda e Fundição de Minas, Eugênio Freire de Andrada, o que diz alguma coisa sobre eles.10
Ademais, ordenou aos escrivães das câmaras, sob pena de perda do ofício, pusessem "todos os anos nas suas intendências em o primeiro de fevereiro e julho, listas das vendas e ofícios que pela dita câmara se passaram licenças". Segundo o governador, "quando se estabeleceu a capitação, foram de grande socorro e luz as listas que os párocos deram", pelo que pareceu-lhe "conveniente que os ditos párocos as continuem cada dois anos, e as remetam firmadas e juradas pela mão dos seus vigários da vara, às do governador".11 Ou seja, organizou-se uma estrutura arrecadatória que contava com o que poderia classificar-se hoje recursos humanos qualificados, cobertura territorial adequada, e um sistema de informação atualizado sobre a base de cálculo para efeitos da cobrança da capitação.
A par desta estrutura disponível para a arrecadação, não podem ser esquecidos outros elementos institucionais, em particular as medidas coercitivas que restringiam fortemente a sonegação fiscal. No entanto, há de reservar-se sempre alguma cautela para estas questões, pois que sempre ocorre uma distância entre a legislação coercitiva e sua prática efetiva. Durante a primeira capitação, por exemplo, o então superintendente das Casas de Fundição de Vila Rica afirmara que "os barrigudos deste governo pagam {a capitação} dos escravos que querem".12 Se isto ocorria na primeira, por que esta prática não se repetiria na segunda capitação?
De todo o modo, além do próprio regimento da capitação, que estabelecia as penas correspondentes a cada infração cometida pelos contribuintes, no ano seguinte à implantação do sistema o governador da capitania determinou que a matrícula e o pagamento da capitação não deviam exceder ao dia 15 de março, sob pena de multa de 10%, confisco dos escravos não matriculados, além das penas de expulsão de Minas (Vasconcelos, 1901, p.890-896, p.903).
Diante destas penalidades a que estavam sujeitos os que não cumprissem os prazos para pagamento dos quintos, é compreensível que se difundissem boatos quanto à necessidade de recorrer-se a penhores para fazer frente aos pagamentos. A este respeito, em agosto de 1736 o responsável pela implementação da capitação Martinho de Mendonça informava à Coroa que, "sabendo que no Rio de Janeiro se divulgam falsa e maliciosamente que para a cobrança da capitação fora necessário fizesse penhora em peças de ouro ... dos moradores das Minas e suas mulheres, o que era notoriamente falso", ordenou a todas as intendências que lhe remetessem certidões sobre tais penhores. As respostas foram unânimes: todas as intendências informaram que "se não haviam arrematados penhores alguns", e que "os poucos que vieram seus donos os remiram em tempo hábil" Só à Intendência do Serro, por conta da distância, não lhe havia sido possível enviar a certidão a tempo de seguir na frota.12
O sistema parece também ter-se mostrado infenso a isenções tributárias. Tal ocorreu com os "roceiros do Caminho Novo", que requereram isenção fundados no argumento de
não assistirem em terras minerais e só venderem os frutos das suas lavouras a dinheiro aos passageiros que vêm às Minas, e o dão por certo e determinado preço de que não recebem ouro em pó, o que os priva de não gozarem a vantagem do acréscimo dele como os mais roceiros desta capitania, representam mais que a seu favor concorre o grande serviço de mandarem à sua custa no tempo que lhe vaga, consertar os caminhos, estivas e pontes que há entre as mesmas roças para estarem prontos ao serviço de Vossa Majestade, para o qual contribuem com o mantimento, quartel e erva aos soldados e cavalos que passam à quele caminho dando-lhe algum cavalo ou escravo se o necessitam.14
Argumentaram em vão, pois o governador rebateu cada um dos argumentos, e o Conselho Ultramarino confirmou o indeferimento. Do mesmo modo, a câmara de Minas Novas rogou debalde isenção:
com sensível dor nos move a obrigação de nossos cargos a por na presença de Vossa Majestade o lamentável estado em que se acham os moradores destas minas, que vendo-as no seu princípio oferecem em tanta abundância de ouro, hoje apenas em tal esterilidade que tem reduzido a todo este povo a uma deplorável miséria que todos choramos sem remédio.15
Já nos anos finais da vigência da capitação, ao menos o arcediago e mais dignidades e cônegos da nova Sé da cidade de Mariana obtiveram êxito na solicitação de isentarem-se do pagamento da capitação "dos quatro escravos que consideravam necessários ao serviço de cada eclesiástico".16
Diante do exposto, não há negar que o sistema, do ponto de vista da Coroa, era altamente eficaz, por conseguir não apenas cumprir a quota das cem arrobas originalmente estabelecida, mas mesmo ultrapassá-la ao longo de todo o período. Prova disto é que, tão logo a capitação foi substituída pelo sistema de Casas de Fundição, verificou-se uma queda abrupta na arrecadação: no ano fiscal de 1o de agosto de 1751 a 31 de julho de 1752 o rendimento dos quintos foi de 55 arrobas, 13 arráteis, 7 onças, uma oitava e 39 grãos de ouro (ou seja, faltaram 44 arrobas e 1.223 oitavas de ouro para se completar a finta das 100 arrobas anuais). A redução era clamorosa, já que a capitação do ano fiscal anterior rendera mais do que o dobro: 114 arrobas e 907 oitavas de ouro.17
Além disto, para igual período de 32 semestres - de 1o de julho de 1751 a 31 de dezembro de 1766 - as casas de fundição em Minas Gerais produziram 6.361.126,52 oitavas de ouro (ou 1.553 arrobas) (Eschwege, 1944, p.367).
Seja qual tenha sido o volume efetivo de ouro enviado entre 1736 e 1751, o fato é que tanto o valor arrecadado com a capitação como o montante correspondente ao superávit fiscal em Minas Gerais foram regularmente remetidos pelas autoridades da capitania aos responsáveis no Rio de Janeiro. Ao longo do período, a média anual foi de 527.342,35 oitavas de ouro (ou 128,74 arrobas), segundo os números de Cunha Matos. Para alguns anos os dados disponíveis confirmam remessas maiores, como em 1738 e 1739, e menores, como em 1736, 1748, 1749 e 1750 (anexo 2). Em síntese: o sistema da capitação pode ser considerado um absoluto sucesso, do ponto de vista da Coroa portuguesa, evidentemente.
Então, porque alterar um sistema que, do ponto de vista da eficácia tributária estava funcionando adequadamente? Joaquim Romero Magalhães elencou os dois argumentos principais brandidos pelos contemporâneos contrários ao sistema. Um primeiro, de natureza doutrinária, respeitante à justiça tributária. De um lado, os que destacavam ser a capitação "o meio mais desembaraçado e menos imperfeito de todos os que podiam ocorrer", nas palavras de Alexandre de Gusmão. De outro lado, uma multidão que salientava, como o Secretário de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos Diogo de Mendonça Corte Real (pai), tratar-se da "mais injusta desigualdade que jamais se praticou" (Magalhães, 2009, p.123).18
O próprio governador da capitania Gomes Freire de Andrada, defensor da capitação, admitia ser "incontestável" que esse método de cobrar o quinto tinha "durezas", apesar de julgar a falta do ouro reclamada nas representações das câmaras decorrente
de se apurarem as lavras e as faisqueiras e não haver pessoas que se animem a novos descobertos, temendo depois de gastos, mantimentos, gêneros e serviços de escravos, e com perda de alguns, e ter passada dura e bárbara vida, pagarem indefectivelmente a capitação.19
A argumentação do governador, apesar de favorável à continuação do sistema, continha algo que inspirava cuidado.
No cerne da discussão estava o fato de que a capitação "tratava-se de um imposto geral sobre os rendimentos, específico para as populações de Minas Gerais, que substituía o tributo devido ao rei do quinto do ouro minerado e que se aproximava de um imposto de renda". A última expressão merece toda a atenção, pois coloca sobre a mesa o tema da admissibilidade, pelas proprietários de escravos nas Minas setecentistas, de um imposto sobre sua renda. Os dízimos também poderiam ser invocados aqui como um tributo que gravava a renda, mas o caso é diferente. Os dízimos incidiam sobre a produção efetivamente destinada ao mercado, e não sobre toda a produção agrícola e pastoril, esta sim, guardando íntima relação com o total da força de trabalho em atividade (Magalhães, 2009, p.124). Seja como for, os argumentos doutrinários não parecem muito consistentes, mas demandam uma análise em profundidade. As casas de fundição estabelecidas em substituição ao sistema da capitação a partir de 1751 cumpriram outros propósitos. Os registros que nos alcançaram mostram:
que os contribuintes preferenciais cujos nomes se inscreviam nos livros das Intendências não eram, obrigatoriamente, os mineradores. Em vez disto, eram todos quantos precisassem efetuar negócios que envolvessem quantias mais elevadas - em sua maioria, fora da capitania, ou quem quisesse levar consigo ouro reduzido a barras, ao sair de Minas. (Carrara, 2008, p.36-40).
Um segundo argumento relaciona-se com um fato que talvez pudesse ser facilmente demonstrável para as autoridades de uma margem e outra do Atlântico: o número total de escravos capitados a partir de 1738 apresentou uma tendência de queda. Como o total arrecadado dependia principalmente do número de escravos, não é de admirar que esta queda sinalizasse algum problema num futuro não muito distante. Este movimento, por sua vez, parece correlacionar-se a uma tendência também de redução no número de escravos desembarcados no porto do Rio de Janeiro, o principal abastecedor da região das Minas, a partir de 1742 (gráfico 1). E a retomada do movimento de alta na importação de africanos a partir de 1755 não parece corresponder - ao menos não mais exclusivamente a um crescimento da atividade mineradora.

Este fato foi rapidamente incorporado pelas câmaras no rol de argumentos dirigidos às autoridades metropolitanas, num movimento concertado. Os camaristas de Caeté, em carta de 10 de outubro de 1744, consideravam as Minas já no extremo da sua decadência, em razão da redução do rendimento das faisqueiras. Sete dias após esta representação, a câmara de São João del Rei assinalava a decadência das lavras com mais de dez anos, e a da vila de São José del Rei (atual cidade de Tiradentes) augurava que não era muito esperar a última ruína das minas. Nesse mesmo dia, as câmaras de Sabará e de Mariana representavam com o mesmo conteúdo, e esta última confirmava a decadência das lavras com mais de dez anos de serviços de montes e rios, e demonstrava a redução dos rendimentos dos mineiros com a decadência do culto divino, da agricultura e do comércio.20
Este parece ter sido o ponto de inflexão, "porque, quase de imediato, a partir do ano seguinte {de 1745}, se abriu um alargado processo de consultas", e em 1748 já tendo sido decidida sua revogação (Magalhães, 2009, p.126).21
Mas há outro elemento, diretamente ligado ao argumento anterior, para o qual Joaquim Romero chama atenção, e ainda muito pouco explorado pela historiografia: os interesses em jogo. A capitação e o censo, escorados "em princípios de igualdade tributária e de proporcionalidade", talvez "não interessasse aos pagadores mais abonados". De fato, os maiores proprietários de escravos eram também os maiores contribuintes. Como eram também os indivíduos que se faziam representar nas câmaras, eram suas vozes - travestidas das do "povo destas Minas" - que ecoavam nas muitas representações que expunham a vexação a que estavam submetidos.22 Ou seja, as representações das câmaras constituiriam a expressão da insatisfação das classes que controlavam os meios de produção da capitania - em especial, um: os escravos. Assim, para satisfazer seus interesses particulares, os proprietários de escravos da capitania, principalmente, mobilizaram argumentos de duas naturezas: uma, doutrinária - a injustiça do sistema; e outra, econômica - a redução da produtividade das lavras. E assim a capitação foi substituída pelas Casas de Fundição.
Ao longo da primeira metade do século XVIII, os quintos reais sobre o ouro extraído nas áreas mineradoras do Brasil foram arrecadados segundo diferentes sistemas de cobrança. O principal desafio enfrentado pelas autoridades metropolitanas era encontrar um mecanismo de extração fiscal que guardasse máxima relação com a alíquota correspondente ao direito régio dos quintos - 20% da produção total de ouro. Uma variável de referência fundamental para o estabelecimento dos cálculos eram obviamente os volumes de ouro desembarcados em Lisboa, objeto de atenção inclusive das autoridades e comunidades mercantis estrangeiras. A este respeito, tanto correspondência do cônsul francês em Lisboa como as Gazetas Holandesas são muito representativas.23 A relação entre o total de ouro anualmente desembarcado e o montante que chegava para os cofres régios pode sem dúvida ser invocada como o melhor índice para aferir a eficácia dos sistemas de cobrança adotados. Não demorou muito para que a Coroa estabelecesse um mecanismo sofisticado de controle sobre o ouro chegado ao Reino: os manifestos do 1%. Se os registros a partir de 1710 ainda padecem de alguma irregularidade, a partir de 1720 a série documental permite uma análise detalhada dos fluxos de ouro.
Contudo, a arrecadação de um tributo ou direito régio não depende exclusiva e estritamente do estabelecimento e consequente aplicação de uma dada alíquota sobre uma base de cálculo. Requer, entre outros elementos indispensáveis, a capacidade logística de cobrança, o reconhecimento por parte dos contribuintes da legitimidade da cobrança e a capacidade de coerção sobre os que eventualmente se recusassem a pagar. Os dados coletados e aqui sistematizados demonstram de modo inequívoco que a capitação em vigor em Minas Gerais entre 1735 e 1751 foi capaz não apenas de cumprir a quota das 100 arrobas anuais devidas ao rei pelos direitos dos quintos sobre o ouro, mas igualmente gerar um excedente da ordem de pelo menos 20% desse total. Este resultado, portanto, afasta, por absoluta inconsistência, a ideia de que as razões estivessem relacionadas a uma melhoria no sistema de cobrança dos quintos e sinaliza, como consequência, para a necessidade de aprofundar os estudos sobre os interesses em jogo no âmbito das discussões sobre a mudança do sistema de cobrança. Deve-se enfatizar que as representações das câmaras não questionaram em nenhum momento a legitimidade de cobrança dos quintos e a finta de 100 arrobas. O objeto da contestação foi o método empregado na arrecadação de um direito régio.
O cerne da questão a merecer atenção talvez não resida em razões de eficácia tributária entendida estritamente como a capacidade de arrecadação do montante preciso de uma dada alíquota. Talvez nem mesmo os argumentos contrários à capitação levantados pelas câmaras em suas representações contenham a chave para o entendimento do que efetivamente pesou na mudança do sistema de cobrança. A solução deve resultar de uma investigação que revele a identidade dos grupos sociais que conseguiram fazer valer seus interesses específicos frente aos interesses de outros grupos e os das próprias autoridades metropolitanas. Nesse sentido, o avanço da pesquisa sobre a mudança de um sistema de cobrança dos quintos por outro, como o estudado aqui, permitiria desnudar as relações - certamente complexas - de indivíduos numa e noutra margem do Atlântico. Talvez a pressão pela mudança do sistema de arrecadação dos quintos nas décadas de 1730 e 1740 deva ser buscada exatamente na elevada eficácia tributária da capitação, por se tratar de um tributo sobre a riqueza, incapaz de ser compartilhado pelo conjunto da sociedade.
Agradecimentos
Devo sinceros agradecimentos à professora Rita Martins de Sousa e ao professor Luciano Figueiredo pelas críticas e sugestões ao texto original.
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RODRIGUES, Gefferson. No sertão, a revolta: grupos sociais e formas de contestação na América portuguesa; Minas Gerais, 1736. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2009.
Anexo 1:
quintos do ouro segundo Eschwege e Cunha Matos, 1736-1751
Fontes: ESCHWEGE, Wilhelm von. Pluto Brasiliensis, vol. 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944, p.366-370 (os dados foram conferidos com a primeira edição alemã: ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Berlim: G. Reimer, 1833); "mapa do rendimento do quinto do ouro de Minas Gerais desde 1o de julho de 1735 até 31 de julho de 1751 que se cobrou por capitação dos escravos e censo das indústrias dos moradores da capitania". In: MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia Histórica da Província de Minas Gerais {1837}, vol. 2. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1979, p.220; a fonte dos dados mencionada por Cunha Matos é o próprio "livro da receita da capitação da Casa de Intendência de Vila Rica, fols. 240 e ss.".
Observações:
1. Os valores de Eschwege são apresentados em arrobas, marcos, onças, oitavas e grãos cujo total é 2.049 arrobas, 58 marcos, 5 onças, 4 oitavas e 54 grãos de ouro, o que perfaz o montante de 8.396.460,75 oitavas; contudo, o valor total apresentado na p.283 deve também ser corrigido, já que figura como 2.049 - 58 - 4 - 2 - 54; no original alemão a palavra idem refere-se muito claramente a Intendência, razão pela qual foi substituída na tabela;
2. Na tabela publicada de Cunha Matos há erro na soma dos valores referentes à Intendência e sertão de Paracatu: o correto é 317.622,94 e não 326.622,94 como consta no texto do autor;
3. O total do termo da vila de Paracatu em Cunha Matos foi corrigido; contudo, para se chegar ao valor total de 8.437.377 oitavas e 36 grãos e, com isto, desfazer-se a diferença de 9.000 oitavas, basta mudar a ordem de dois algarismos (em lugar de 289.229 como está no texto, 298.229);
4. A tabela de Cunha Matos apresenta ainda uma variação entre o total arrecadado em Minas e o total registrado na Casa da Moeda do Rio de Janeiro, em razão da distinção entre o "peso do povo na cobrança" e o "peso da Casa da Moeda do Rio de Janeiro". Em nota, Tarquínio de Oliveira levanta a hipótese de que esta diferença decorra da diferença do toque do ouro, além das diferenças de pesos e medidas entre Minas e o Rio de Janeiro. Na Casa da Moeda o total registrado foi de 8.462.900:11 (diferença de 25.423 oitavas, ou 6,2 arrobas de ouro). A este total foi acrescido na Casa da Moeda do Rio de Janeiro 5$936 réis em dinheiro. Este "peso do povo na cobrança" corresponde ao "peso do marco usual do comércio". A este respeito conferir AHU/MG/CARTA de Gomes Freire de Andrade, governador de Minas Gerais, para D. João V, remetendo um mapa das receitas da Fazenda Real e da capitação do ano de 1748; Rio de Janeiro, 13 maio 1750 {cx. 55, doc. 43}. Segundo este documento, na primeira matrícula de 1748 foram arrecadadas 261.559 oitavas de ouro "pelo marco usual do comércio", as quais, repesadas "pelo marco da Casa da Moeda" produziram 262.232 oitavas. A diferença entre um e outro peso de 673 oitavas corresponde a 0,257%.

Anexo 2:
capitação de Minas Gerais em 1736-1739/1747-1750
Fontes: Carta de Gomes Freire de Andrade, governador do Rio de Janeiro e Minas Gerais, a D. João V, informando as medidas por ele tomadas para obviar a fraude na cobrança das capitações dos escravos; Vila Rica, 30 abr. 1740 {cx. 39, doc. 33}; Carta de Gomes Freire de Andrade, governador de Minas Gerais, para D. João V, remetendo um mapa das receitas da Fazenda Real e da capitação do ano de 1748; Rio de Janeiro, 13 maio 1750 {cx. 55, doc. 43}; Carta de José António Freire de Andrade enviando os mapas gerais de capitação do governo de Minas Gerais das duas matrículas do ano de 1750 e do que rendem as Casas de Fundição de 1751 a 1752; Vila Rica, 06 set. 1752 {cx. 60, doc. 52}.
Observação: escravos, lojas e vendas, ofícios e forros em unidades; acréscimos e total em oitavas de ouro.

Notas