Resumo: A ideia de um Império Assírio (séculos IX-VII a.C.) predominantemente belicoso e cruel fundou-se em algumas visões herdadas do passado (dos autores clássicos à Bíblia hebraica) e desenvolveu-se com as descobertas arqueológicas e o deciframento dos textos em cuneiforme, a partir do século XIX. Ao lado dos documentos oficiais (inscrições, anais etc.), as imagens dos relevos dos palácios assírios tiveram um papel central nessa construção. Considerar essa visão como resultado de uma manipulação ideológica e propagandística do discurso régio e identificar uma abordagem acrítica da historiografia moderna é necessário, mas não suficiente. Este artigo busca oferecer uma apreciação alternativa. Propõe-se que é preciso conceber as imagens da violência como agentes ativos do fenômeno social da guerra sagrada, no quadro de um processo de expansão. As respostas apontam em uma dupla direção: primeiramente, para a relação entre a violência visual e o tipo específico de expansionismo assírio; em segundo lugar, para a natureza ritual dos artefatos visuais.
Palavras chave:imagemimagem,violênciaviolência,imperialismoimperialismo.
ARTIGOS
Imagem da violência e violência da imagem: Guerra e ritual na Assíria (séculos IX-VII a.C.)
Recepção: 09 Agosto 2017
Revised document received: 25 Setembro 2017
Aprovação: 29 Setembro 2017
A cena é bem conhecida:1 o rei Assurbanipal (668-627 a.C.) está alongado em um leito finamente decorado; apoiado sobre o cotovelo esquerdo, segura em uma das mãos uma flor de lótus; na outra, uma taça. Diante dele, está sua rainha, sentada em uma poltrona elevada, com apoio para os pés. Ela segura um buquê de flores e leva aos lábios um cálice. Tudo se passa em um jardim ornado de palmeiras e abetos; uma parreira, regurgitando de cachos de uvas, emoldura o casal. Pequenos pássaros pousam nas árvores. Os soberanos são abanados e servidos com acepipes em bandejas. A música preenche o ambiente.2

A paisagem é bucólica e muitos de seus elementos contribuem para reforçar o clima de gozo e fausto próprio à vida da realeza. Nas extremidades da cena, dois elementos lembram, contudo, que todo deleite tem sua condição. Às costas do rei, sobre um aparador, repousam a espada, o arco e a aljava com flechas. Não se pode excluir que seu propósito seja situar a cena do banquete na sequência de uma caçada (é o que sugere Benoit, 2003, p.403), inserindo-a em um ciclo narrativo frequente nos relevos dos palácios assírios (Lion; Michel, 2006, p.225 e ss). Mas a caça, particularmente ao leão, apanágio régio, aproxima-se semanticamente da guerra: ambas compõem a temática do ato heroico executado pelo rei contra as forças adversas, feras selvagens ou inimigos mundanos (Albenda, 1974),3 atingindo dimensões cósmicas na luta da ordem contra o caos (Cassin, 1987, p.196 e ss, p.201 e ss).4 No mais, na iconografia assíria, muitos elementos sugerem a caçada como uma performance ritualizada da ação do rei em associação com a procissão triunfal após a vitória em combate (Weissert, 1997, p.348 e ss).5 Caça e guerra complementam-se, equivalem-se, significam uma pela outra.
Por outro lado, diretamente no campo de visão de Assurbanipal, a evocação bélica não deixa margem à dúvida: a cabeça decepada de Teumman, o rei elamita, pende de uma argola no galho de uma árvore. É apenas uma etapa, a derradeira, dos infortúnios do monarca vencido. Os violentos momentos anteriores à queda são detalhados nos relevos da sala I do palácio norte e também de outro palácio em Níneve.6 O conjunto das informações destas imagens (algumas contendo epígrafes ou legendas), das inscrições reais, de uma dezena de tabletes e um prisma permite recompor os episódios que constituirão a memória da campanha assíria contra os elamitas, em 653 a.C.:7 em meio a seus soldados massacrados durante a batalha de Til Tuba, às margens do rio Ulai, Teumman cai de sua carruagem abatida pelos assírios; tenta fugir com a ajuda de seu filho, Tammaritu, mas é flechado pelas costas; caído por terra, é decapitado por um soldado anônimo; sua cabeça é transportada para fora do campo de batalha em um carro de combate; levada para Arbela, é apresentada a Assurbanipal pendurada ao pescoço de um rei aliado de Teumman, Dunanu; este último também é torturado e executado logo a seguir; por fim, a cabeça do líder elamita segue para Níneve.

A justaposição do repasto e da degola em uma mesma cena pode parecer desconcertante. Mas deveríamos tomá-la como contraditória? A composição do Banquete no Jardim pode sugerir, ao contrário, uma plena continuidade de sentido entre o gozo do momento de paz decorrente da vitória, com sua prazerosa consumação de alimentos e bebidas ao som da música, e os horrores das batalhas. A exibição da cabeça do rei inimigo não estaria simplesmente introduzindo, por assim dizer, a guerra e o sacrifício na sala de jantar? Stephanie Reed notou a tensão desse arranjo visual "em que vida e morte são justapostas, criando uma ansiedade difusa" (Reed, 2007, p.112). A aparente ambiguidade da cena permite indagar sobre o papel da iconografia da violência: seria ela apenas um artifício discursivo de propaganda da ideologia bélica, como defende uma opinião ainda hoje bastante corrente, ou a consideração da agência da imagem em interação com os atores sociais permitiria uma outra resposta?
A associação entre o império neoassírio (séculos IX a VII) e a guerra violenta e continuada é uma das mais sólidas da historiografia mesopotâmica, além de fazer parte de um imaginário difuso. Da ação militar ao belicismo cultural, o fenômeno guerreiro aparece como definidor do conjunto social assírio, patamar qualificador da política, da economia, das artes, da literatura, da religião e do próprio deus Assur. A guerra e seus aspectos conexos - em particular, a crueldade sem limites - são apresentados como um forte componente étnico e "nacional", inerente a uma Assíria marcial. A conquista sem fronteiras, o domínio severo sobre as regiões vizinhas e a repressão sangrenta de toda resistência ou rebelião formam o quadro que confere sentido a essa caracterização. No final do século XIX, em uma das primeiras sínteses sobre os assírios, Archibald Sayce enfatizava a distância que os separava dos rivais babilônicos: "Os babilônios foram agricultores, afeitos à literatura e perseguidores da paz. Os assírios, pelo contrário, foram apropriadamente nomeados de romanos do Leste: foram um povo militar, que se importava com muito pouco além da guerra e do comércio. Sua literatura, assim como sua cultura e sua arte, foi tomada de empréstimo da Babilônia e eles nunca foram muito receptivos a ela" (Sayce,1895, p.25; original de 1885). Um século mais tarde, A. Kirk Grayson, um dos mais respeitados especialistas do período, formula um juízo muito semelhante: "O militarismo estava no coração do governo da Assíria sobre o território conquistado, pois a Assíria era uma nação de guerreiros" (Grayson, 1995, p.959).
Dois pilares da tradição ocidental nutriram fortemente essa imagem: os textos bíblicos e alguns autores clássicos. Até o século XIX, momento da redescoberta da Assíria pela arqueologia e do deciframento dos textos cuneiformes, eram essas as principais fontes do imaginário ocidental sobre os assírios.
As menções à Assíria pelos autores clássicos são tardias, mesmo entre os gregos, e, por vezes, inespecíficas, referindo-se a um território vagamente asiático. De certo modo, a belicosidade assíria prefigurou o espectro de uma Pérsia agressiva e invasora que, no século V a.C., assombraria as poleis gregas.8 A memória helênica da Assíria dissipou-se em uma visão mais presente e premente do "asiático", do "oriental", que continuava sendo, para os gregos, ameaça e fonte de terror.
Na Bíblia hebraica, a imagem da Assíria não é unívoca e serve, sobretudo, aos propósitos da narrativa metafórica e dos projetos políticos que procuravam - especialmente pela voz dos profetas - fortalecer posições ou sobreviver às ameaças externas (Weinfeld, 1986). A maior parte dos eventos assim evocados diz respeito ao domínio assírio na região siro-palestina durante o século VIII, entre os reinados de Tiglat-pileser III e Sargão II. São os anos dramáticos que levam, em 721 a.C., ao aniquilamento do Reino do Norte, Israel, à destruição de sua capital Samaria e à deportação de parte substancial de sua população.
No século XIX, o primeiro reforço à visão dessa Assíria guerreira veio das imagens. Foi grande o impacto dos relevos e dos monumentos assírios na reconstrução de uma história até então soterrada.9 Um repertório variado de motivos iconográficos diretamente associados às guerras era exibido na decoração palaciana: preparativos e acampamentos; cerco às muralhas, com uso de escadas, carros de carga e aríetes; ataques da infantaria e da cavalaria, de arqueiros e lanceiros; incêndio das cidades, saque dos campos, derrubada das árvores; butins, procissão de prisioneiros; torturas, empalamentos, degolas, desmembramento e esfolamento dos inimigos; montanhas de cabeças cortadas, corpos estirados pelas estradas e campos de batalha, boiando nos rios e despencando das muralhas; enfim, um inventário de horror e carnificina. A recepção desse material por estados europeus modernos em competição imperialista estimulou o imaginário guerreiro que cercava os antigos assírios (Bohrer, 1998; Holloway, 2002, p.9 e ss; Frahm, 2007).
Com o deciframento do cuneiforme e do acadiano assírio, verificou-se que os textos apontavam essencialmente na mesma direção das fontes visuais.10 De origem palaciana e parte do discurso ideológico régio, imagens e textos cristalizaram a ação guerreira como atributo maior de um soberano assírio em seu "palácio sem rival" (ekal šanina la išû), levando seu domínio aos "quatro cantos da terra" (šar kibrat erbetti), sob a égide da "arma de Assur" (kakki šadAššur), segundo as expressões da época. Uma reencarnação, enfim, do antigo Sargão de Akkad em seu papel de "rei do combate" (šar tamhari). Assim, as apropriações dos antigos discursos e o aporte de novos dados, arqueológicos e epigráficos, consolidaram, já no século XIX, a visão do belicismo assírio, prolongada, em grande medida, pela historiografia mais recente.11 Se uma tendência alternativa veio à luz, foi como tentativa de nuançar os exageros da grandiloquência marcial das inscrições e dos anais oficiais a partir da análise de aspectos mais cotidianos da vida guerreira, presentes na vasta correspondência palaciana (Malbran-Labat, 1984). Outros destacaram os mecanismos administrativos, alguns inovadores, que marcaram a organização do território imperial (Pecirková, 1977; 1997; Villard, 2008). Todavia, a Assíria dos historiadores jamais se despiu de suas vestes guerreiras.
A questão que se coloca é se seria possível ou necessário simplesmente abandonar essa visão belicista, relegando-a à categoria das máscaras ideológicas ou das derivas historiográficas. Não resta dúvida de que os assírios fizeram do discurso e da imagética de guerra um mecanismo de valorização de sua ação expansionista. Uma crítica ao viés ideológico das fontes é legítima e imprescindível. Seria, entretanto, um erro apostar em uma desconstrução radical, tão ao gosto de certa historiografia atual. A Assíria guerreira é uma dupla ficção, antiga e moderna, mas não deixa de ser também um aspecto inerente das realidades históricas do passado.
Recolocado nesses termos, o problema da belicosidade assíria requer uma explicação contextualizada, que a articule com a situação de disputas pelo poder no cenário mesopotâmico e com o movimento de expansão externa. A ênfase na guerra foi, em graus variados, uma constante na história mesopotâmica, mas assume um relevo maior no império neoassírio. Sem poder esgotar o problema, é possível elencar alguns fatores que auxiliem a entender o porquê dessa dimensão, em grande parte inédita.
O primeiro fator diz respeito à situação de concorrência acirrada no interior da Mesopotâmia. A tensão constante e os episódios de conflito aberto entre a Assíria e a Babilônia foram regra por toda a primeira metade do Io milênio.12 A Assíria obteve vantagem no primeiro momento. Desde o século IX, e por mais de um século e meio, a existência da Babilônia oscilou em função de um predomínio assírio que lhe deixava ora uma autonomia maior, ora apenas uma condição de vassalagem. A cidade-reino de Marduk amargou uma sucessão de reis de origens diversas - caldeus, assírios, babilônios -, em geral de pulso fraco e vida curta. A incorporação efetiva da Babilônia ao império assírio por Tiglat-pileser III, em 728 a.C., consolidou a intenção de formar um bloco territorial interno, ao mesmo tempo que abria caminho para as incursões nas vizinhanças. Se, sob o reinado de Merodach-Baladan II (721-710), a Babilônia chegou a reivindicar a independência e a impor severos reveses aos assírios Sargão II e Senaqueribe, a situação que se segue estabiliza o domínio da Assíria. Estabilidade tênue, é verdade, pois as revoltas locais nunca cessaram. Numa delas, o vice-rei da Babilônia, Assur-nadin-shumi, filho do próprio Senaqueribe, foi deposto e entregue aos elamitas pelos revoltosos babilônicos. Sua execução dá ensejo à colérica vingança paternal do rei Assírio e à grande devastação da capital da Babilônia, em 689 a.C. O sucessor de Senaqueribe, Esarhaddon, percebeu, entretanto, que a Babilônia, poderosa demais e prestigiosa demais, não podia simplesmente ser aniquilada. Durante seu reinado, entre 690 e 669, adotou uma política de apaziguamento e previu uma sucessão baseada na solução de dois reinos, cujos tronos foram destinados, a partir de 668, a dois de seus filhos, Assurbanipal na Assíria, e Shamash-shumu-ukin na Babilônia. O parentesco que unia os irmãos não dissipou em nada as tensões: já no início, a avó de ambos - a influente rainha de Senaqueribe, Zakutu - articulou um tratado de fidelidade (adê) a Assurbanipal, jurado pelos seus irmãos; desde logo, ficava claro que a autonomia babilônica era mais aparente do que efetiva e encontrava seus limites nos desígnios da Assíria; dezesseis anos depois, Shamash-shumu-ukin levou os babilônios a uma grande rebelião, duramente debelada.13 O conflito com a Babilônia expõe, no entanto, as debilidades assírias. A balança penderá definitivamente alguns anos mais tarde, com o surgimento de nova dinastia na Babilônia, sob Nabopolassar (625-605). Parece bem evidente que, durante todo o período de submissão, a Babilônia apenas visou à destruição do inimigo assírio e tudo fez para assumir o seu lugar. Nenhuma alternativa que implicasse real acomodação foi seriamente considerada e cada movimento babilônico constituiu - para retomar a feliz expressão de J. A. Brinkman (1984) sobre o período - um prelúdio ao império.
Enfraquecida e impotente, a Assíria viu a ascensão da nova senhora da Mesopotâmia. Em aliança com os medas, Babilônia destruiu sucessivamente os principais centros assírios: Assur, em 614; Níneve, aniquilada em 612; Harran, onde os assírios se entrincheiram em busca de sobrevivência política, conquistada em 610. Ao final dos embates, a Assíria desaparece do mapa político do Oriente-Próximo.
É temerário, portanto, dizer que a militarização da Babilônia foi menos enfática que a da Assíria, mesmo se o discurso régio babilônico tenha se despido quase completamente das referências belicistas (Jursa, 2014, p.122). O processo de competição nos vales entre o Eufrates e o Tigre atingiu um nível que não admitia senão o domínio exclusivo e impulsionou um investimento bélico sem precedentes, de ambas as partes. O próprio resultado do processo, com a vitória babilônica, mostra que a Assíria não era a única "nação de guerreiros" naquele momento. A bipolaridade escondia uma irremediável tendência ao poder unitário, estimulando, de um lado e de outro, o potencial destrutivo fundado na lógica guerreira.
A geopolítica inter-regional foi igualmente afetada. Este é meu segundo ponto. No primeiro milênio, os limites de ação dos assírios foram sucessivamente alargados, extravasando as tradicionais fronteiras a que se limitavam os soberanos do período médio-assírio, em finais do segundo milênio (Tenu, 2009; Caramelo, 2011 para a expansão médio-assíria). Já em uma primeira fase, a partir do século IX a.C., os enfrentamentos se dão seja a nordeste, contra o Urartu, nas bordas do Mar Cáspio, e contra os maneus - portanto, combatendo unidades políticas porosas e dispersas, caracterizadas pelas articulações tribais dos povos montanheses na região dos Zagros -, seja a noroeste, na Transeufratiana, contra os reinos que se estabeleceram na antiga zona de dominação hitita, de estrato tanto arameu, como os (inadequadamente) chamados neo-hititas, estendendo-se desde o alto curso do Eufrates até os Montes Tauros, passando pela Síria. O domínio nesta região preparava o caminho para avançar além dos Tauros e para a Cilícia. Desde cedo, porém, e sobretudo a partir de meados do século VIII a.C., o movimento de expansão apontava claramente em direção ao corredor siro-palestino, à costa levantina, abrindo uma nunca completamente explorada porta para o Mediterrâneo (que se limitará à tributação e vassalagem de alguns reis cipriotas), e, mais ambiciosamente, até mesmo para o Egito, no qual o domínio assírio foi efêmero e superficial, embora as incursões de Esarhaddon e Assurbanipal tenham contribuído para pôr fim à dinastia "estrangeira" kushita e, em aliança com alguns potentados do delta, estimular a fundação da nova dinastia saíta, com Necao e Psamético.
A amplitude geográfica não deve, todavia, induzir a uma visão equivocada da expansão assíria. Não se trata de um império espacialmente contínuo, formado pela sucessiva anexação de territórios que passariam, então, a ser administrados como parte de um todo mais ou menos homogêneo, em que a hierarquia básica seria representada pela oposição entre um centro e as províncias. Fosse este o caso, o aparato guerreiro seria essencialmente um instrumento de conquista. A partir da anexação, a periferia seria paulatinamente controlada por mecanismos mais administrativos. A força militar estaria sempre presente, mas transformada em uma garantia de manutenção da ordem local e de submissão ao rei assírio. Evidentemente, tudo isso também ocorreu no caso assírio, mas em grau bastante limitado. Alguns historiadores acreditam que esta situação foi apenas inicial, sendo alterada de modo consistente pela integração administrativa do império por Tiglat-pileser, a partir de 745 a.C. Parece-me, entretanto, um exagero. De fato, várias reformas visaram diminuir a autonomia da periferia, transformando antigos aliados e vassalos em verdadeiras províncias assírias, comandadas por governadores designados pelo rei; o recolhimento de tributos, a conscrição de tropas e os sistemas de pesos e medidas foram normatizados para maior eficácia; as deportações de populações intensificaram-se. Todos estes fatores, e alguns outros lembrados por Simo Parpola (2003), não parecem ter garantido, porém, a alteração decisiva da estrutura militarista imperial.
Além da heterogeneidade, a debilidade foi uma constante.14 Mesmo o centro não formava uma zona compacta e totalmente controlada. Essa planície de estepes pontuadas por colinas de baixa altitude, a Djezireh, tinha uma ocupação humana bastante dispersa e a unidade possível era mantida à força, pela presença de guarnições militares e pelo uso de uma rede de estradas controlada diretamente pelo palácio, complementada pela navegação fluvial. Em plena época de apogeu imperial e nas próprias regiões centrais, como Assur e Kalhu, a forte presença de populações aramaicas deportadas e as incursões de tribos árabes representavam obstáculos ao domínio assírio. Como era de se esperar, nas regiões mais periféricas, o controle era ainda mais tíbio e instável. Na Síria e no Levante,15 a autoridade assíria dependia enormemente de alianças com reinos locais que, embora vassalos, sempre tiveram grande autonomia e, por vezes, particularmente incitados pelo Egito, sacudiam o jugo. Ou, ao menos tentavam, antes de terminarem tragicamente, como no caso de Israel. O esquema funcionou de modo mais ou menos adequado com as cidades fenícias da costa e com alguns reinos do interior, como Edom. No mais, guarnições militares e algumas instalações administrativas procuravam garantir o essencial, ou seja, a continuidade do fluxo de tributos. As grandes rotas tiveram um papel fundamental, mas a preferência dos assírios pelos caminhos mais seguros que partiam do Eufrates e desciam pelo Orontes, passando por Aleppo, Damasco e o vale do Beqa'a, para atingir a Galileia, mostra que não se sentiam à vontade para frequentar a tradicional rota setentrional no deserto, entre o Habur e a Síria, passando por Tadmor (posteriormente Palmira), a não ser quando do deslocamento dos exércitos em plena campanha. Também aqui, as tribos árabes não deram trégua aos assírios. Por fim, todo o arco rochoso formado pelos Tauros e pelos Zagros delimitava uma zona arredia, povoada seja de populações montanhesas nômades seja de organizações mais complexas (embora, em geral, os assírios as representassem homogeneamente como "reinos", segundo suas próprias referências), e que tinham em comum a mais absoluta aversão às tentativas assírias de controle. Em geral, estas foram, aliás, infrutíferas e, exceto incursões sazonais nas zonas mais altas, acabavam por demonstrar que o piemonte e os vales intramontanos dotados de rotas eram um limite impositivo para as pretensões dos soberanos da Assíria;16 do mesmo modo, o domínio assírio sobre a transumância dos pastores, nem sempre amistosos, dependia quase totalmente da ocupação de cidades e aldeias, além da vigilância de rotas habituais, ou seja, de pontos fixos rarefeitos em um vasto espaço virtualmente incontrolável.17
As articulações regionais e inter-regionais devem ser analisadas à luz da situação política interna à própria Assíria, onde o poder monárquico enfrentou sérias resistências por parte da elite, seja dos nobres das sucessivas capitais e das principais cidades, seja dos governadores locais. A relação conflituosa entre as forças de centralização monárquica e as tendências centrífugas foi um dos fatores decisivos para a reprodução de um equilíbrio endógeno muito instável no momento mesmo dos avanços exteriores. Ainda que a oposição entre o rei e os altos dignitários seja objeto de debate, parece certo que a reforma administrativa de Tiglat-pileser constituiu, ao menos em parte, uma tentativa de "domesticação da aristocracia" (Demare-Lafont, 1998, p.611 e ss.). Não se pode dizer que o projeto de expansão não tenha arregimentado o empenho, por vezes entusiasmado, da elite assíria. Pelo contrário, parte essencial dela era de cepa palaciana e foi a beneficiária privilegiada dos frutos do império: o círculo de altos funcionários e membros da corte - ditos rabânu / rabûte, os "grandes" - atuou decisivamente na administração de terras exploradas por concessão régia, em alguns casos com isenções de taxas, na coleta de impostos, e nas vantagens advindas da partilha dos butins e da mão-de-obra dos deportados, sem falar das eventuais dádivas dos soberanos (Matilla, 2000, p.137 e ss; Radner, 2011, p.359 e ss).18 A adesão não foi, contudo, nem imediata nem automática, como mostram os esforços régios no sentido de propagar a ideologia imperial entre os quadros palacianos. Em termos de potencial comunicativo e de eficácia da mensagem, as composições visuais no interior dos palácios parecem corresponder menos a uma propaganda generalizada voltada a aterrorizar e dissuadir os inimigos estrangeiros (ou aliados forçados) ou a garantir a submissão das populações conquistadas do que a uma persuasão dirigida a membros da própria elite palaciana assíria (Liverani, 2017, p.87 e ss). Persuasão que se traduziria por uma verdadeira sedução erótica, incitando ao engajamento no esforço de conquista guerreira por meio de uma 'pornografia da violência', como a rotulou Seth Richardson (2007, p.198).19
Também no domínio ideológico, é possível constatar sinais de inconsistência, e um problema fundamental, aqui, é o nível de compartilhamento da cultura de domínio imperial pelas elites metropolitanas e provinciais. Como diz Michael Mann, ao lado dos mecanismos de clientela, do controle armado direto e da cooperação material compulsória, a crença em um conjunto comum de noções de governança é ingrediente essencial da política imperial. Tratando do caso neoassírio, Mann sugere que, diferentemente da tônica dos impérios precedentes, ocorreu na Assíria do Io milênio, de modo bastante inovador, o aparecimento de uma espécie de "nacionalismo", que não se caracterizava, entretanto, por ser uma ideologia transversal, encampada por toda a "nação" (o próprio conceito seria anacrônico), mas por penetrar e vincular a elite política. Neste sentido, a religião assíria - e o autor lembra que o que chamamos assim é, sobretudo, uma dimensão estatal da religião - teve um importante papel. Essa "moral de classe governante" limitar-se-ia, porém, ao núcleo imperial, contribuindo para definir uma oposição excludente em relação às camadas dominantes da periferia (Mann, 1986, p.231 e ss). Seguindo a mesma linha de raciocínio, Peter R. Bedford pensa, contudo, que a abrangência da ideologia imperial teria sido mais ampla e que a cooptação das elites locais através do clientelismo ou da imposição terminou por incluí-las em uma cultura imperial de governo. Para Bedford, é preciso fazer uma distinção: é possível que as elites periféricas tenham sido mantidas à margem de uma identidade nacional ou étnica assíria, mas isto não impediria sua integração em uma identidade imperial. Este seria o modo propriamente assírio de incluir as elites estrangeiras em seu universo simbólico, em sua visão de mundo (Bedford, 2009, p.59 e ss). Muito possivelmente, a explicação para essa ambiguidade reside no fato de que a Assíria experimentou, em seus contatos com as demais populações do império, um processo apenas parcial e inacabado de cosmopolitismo cultural entre as elites: para Seth Richardson, na ausência de uma mapa etnográfico mental bem estabelecido, o projeto expansionista não se fundou em um esforço sistemático de aculturação e tampouco se colocava claramente a questão das diferenças identitárias; neste quadro de flexibilidade dos marcadores étnicos, linguísticos, de estilos, modos de vestir ou práticas religiosas, o elemento definidor do status da elite, central ou periférica, foi a fidelidade em relação ao soberano, manifesta nas diversas formas de "confidência" (documentadas nas variantes nominais do verbo rahâṣum); a mesma vinculação, estabelecida caso a caso entre o rei e a multiplicidade de elites, constituía o motor das competições, emulações e concorrências entre os membros destas camadas superiores da sociedade; por fim, é claro, era também a situação de confidência junto ao monarca que posicionava as elites diante das camadas subalternas, daí a fidelidade ser exposta conspicuamente, demonstrada com ostentação (Richardson, 2016). Os termos, aqui, são sensivelmente diferentes daqueles que nortearam o debate sobre a "assirianização" das zonas periféricas. Em geral, a "assirianização" suporia um processo bem mais abrangente, incluindo uniformizações jurídicas, fiscais, de sistemas de pesos e medidas e de calendário, o uso do aramaico como língua franca (o que sugere uma concessão bastante pragmática dos assírios, evitando as complicações de uma imposição forçada da língua assíria e da escrita cuneiforme), o compartilhamento de elementos religiosos e ideológicos etc. Tratar-se-ia do resultado de uma vontade sistemática de cooptação e de imposição por parte dos assírios que, embora seja frequentemente sugerida por diversos autores, não parece encontrar respaldo na realidade.20 O alinhamento das elites locais às novas condições impostas pelo avanço assírio foi, sobretudo, uma reação de conveniência política e uma busca de sobrevivência como camada privilegiada.
Uma das decorrências possíveis desse modo particular de operar os mecanismos de submissão talvez tenha sido a pouca importância da distinção entre um território interno e outro externo: os laços de dependência foram gestados e reproduzidos sobretudo através de relações individualizadas entre todos os membros do império e o rei, expressas em juramentos de fidelidade que não faziam uma diferença substancial entre governadores, sacerdotes ou guerreiros assírios, de um lado, e governantes estrangeiros ou líderes tribais, de outro (Barjamovic, 2012, p.53). Tem razão Bradley Parker (2002, p.375) ao afirmar que, nesse quadro, "a fronteira se transforma de uma linha estática de exclusão em uma zona dinâmica de interação". Além disso, as configurações eram muito voláteis e a relação com uma mesma região poderia alterar-se substancialmente ao longo do tempo, sobretudo se consideramos que os entes subordinados não são simples polos passivos da equação, mas atuam no sentido de obter a melhor posição possível num jogo de pressões de vários atores mais poderosos: exemplo disso são as diversas unidades políticas que se fixaram na região do Tabal, no sudeste da Anatólia, nos séculos seguintes à derrocada do Império Hitita, e que procuraram claramente equilibrar-se face aos avanços e recuos da Assíria, do Urartu e do reino da Frígia. Entre os séculos IX e VII, as ações da Assíria no Tabal conheceram várias formas: agressão e pilhagem; estabelecimento de uma relação negociada de clientela, com pagamento de tributos; transformação em província diretamente administrada. Uma trajetória que foi pontuada por defecções, traições e rebeliões, das quais os anais de Sargão II fornecem uma vívida amostra.21 Em geral, para retornar a Parker, na região do Alto Tigre, as interações com as realidades políticas, geográficas e culturais das terras altas anatolianas compunham uma "zona de fronteira multifacetada" ou, melhor ainda, uma "série de zonas de fronteira sobrepostas" (Parker, 2002, p.392). Em sentido contrário, o mesmo fenômeno ocorria: as elites políticas locais ajustavam suas relações internas em função dos reposicionamentos no cenário externo. Muitos elementos que, a princípio, indicariam um reforço na autonomia da monarquia (como listas genealógicas reais ou estatuária monumental) serviram, na verdade, como dispositivos de resistência cultural, permitindo posicionar-se de modo mais vantajoso face a um invasor que não podia ser detido pelas armas e, ao mesmo tempo, proporcionaram um discurso a uma elite que necessitava manter o domínio sobre a população interna, em um momento de maior arrocho, decorrente do dever de pagar tributos à Assíria.22
Certo é que, nas práticas e nas representações, o sistema tinha fissuras importantes. Assim, a fricção no coração da política assíria pode ser considerada o nível mais elementar de vulnerabilidade estrutural do império, somente parcialmente compensada pelas conquistas.
A síntese que se depreende desse quadro sugere um modelo de imperialismo em larga medida alternativo às visões mais tradicionais, que padecem de certo anacronismo:23 ao invés de um bloco compacto de hegemonia, territorialmente contínuo, criado e alargado por anexações sucessivas, o que se vê é uma paisagem fragmentada, articulada através de linhas de ligação e de núcleos espalhados pela periferia e povoada de zonas porosas. Em outros termos, um imperialismo organizado em rede ("network imperialism"). À capital do reino e seus arredores, acrescentam-se zonas intermediárias inteiras que não estão submetidas ao comando assírio; são interstícios da rede, que o palácio central procura manter sob monitoramento, mas aos quais não consegue impor um mando regular e efetivo. Para além do coração imperial, a periferia é composta por uma enorme diversidade, com suas províncias remotas, geridas por governadores (bel pahete), assírios ou autóctones, diretamente indicados pelo rei, e sua considerável quantidade de reinos vassalos, assessorados - melhor dizer supervisionados - pelos delegados (qepu) do rei assírio.24 Mais longe ainda, nas fronteiras da periferia, estados tampões autônomos são tolerados seja porque se situam em limites em que o poder de alcance assírio já é débil e o investimento de conquista seria desproporcional aos benefícios, seja porque cumprem um papel de obstáculo de proteção contra inimigos ainda mais longínquos. Casos típicos desses "buffers states" são os pequenos reinos de Shubria, Kumme, Ukku, Musasir e outros (em grande parte de estrato étnico e linguístico hurrita), que separam a Assíria do poderoso reino de Urartu a nordeste, situados às portas da larga passagem entre os lagos Van e Urmia.25 Grosso modo, o mesmo ocorre com zonas de interstício que, não sendo dotadas de estrutura estatal, apresentam-se como vazios relativamente neutros, conferindo sensação de segurança às entidades políticas que separam.
Nesse contexto, as rotas que interligam o centro aos nós da rede - algumas consideradas como estradas reais (hul šarri), - permitem, sob proteção de guarnições, a movimentação de tropas, bens, populações expatriadas, mensageiros e toda sorte de viajantes.26 É significativo que, além da coleta de taxas, do gerenciamento das terras, da obtenção de matérias-primas e da realização de obras, uma das principais funções dos governadores locais é garantir o armazenamento de grãos e forragens para alimentar os homens e os animais que compõem as forças militares de um império em constante deslocamento.27 É uma mobilidade predominantemente terrestre, mas a expansão assíria explorará de modo inédito os rios como via de transporte e, com a conquista de grande parte da costa levantina, mesmo o mar, antes praticamente ausente na história mesopotâmica, passará a compor a logística do império (Fantalkin; Tal, 2015). As redes de comunicação, materializadas pela frenética circulação de correspondência régia, adquirem importância crucial, assegurando o fluxo de ordens e informações entre a capital e as demais regiões do império e vice-versa.28 No mais completo estudo sobre os deslocamentos no interior do império assírio, Sabrina Favaro expõe detalhadamente essa situação que, ao fim e ao cabo, "não cria uma extensão geográfica e territorial uniforme, contínua e coerente, mas uma expansão que se realiza sobre o território de maneira descontínua e fragmentada" (Favaro, 2007, p.95).
Para o que mais nos interessa aqui, uma implicação maior desse modelo é o incremento do aparato militar como mecanismo de poder e gestão imperial. A guerra excedeu em muito a função de instrumento de conquista e manutenção da ordem externa, transformando-se em uma ferramenta de administração continuada. Como aponta Bernbeck, "se um império territorial funciona através de um dispositivo administrativo de poder, no caso dos impérios em rede, o dispositivo militar prevalece" (Bernbeck, 2010, p.156). A brutalidade das ações assírias, assim como de suas representações, decorre, portanto, da natureza mesma do sistema imperial. A intervenção guerreira sistemática, a destruição como forma corriqueira de regulação dos conflitos, particularmente no caso de insubordinação e rebeliões, e a militarização das relações políticas, interna e externamente, tudo emerge em um quadro de ausência ou debilidade de outros mecanismos imperiais de controle.29 De certo modo, no caso assírio, a guerra é o império.
O modelo imperial assírio, lastreando-se na belicosidade extremada e na violência permanente, não é, portanto, resultado de um traço de caráter ou de uma natureza étnica. É a resposta histórica às novas condições estruturais que emergiram com o fim da Idade do Bronze. No primeiro milênio, o paulatino avanço na utilização do ferro na fabricação das armas e do aparato militar em geral operou uma sensível mudança no controle do exercício do terror (Meyer, 2006). O quase monopólio palaciano do bronze que vigorara no IIo milênio, assentado no acesso restrito às fontes de cobre e estanho, distantes da Mesopotâmia, e no domínio limitado do processo de produção da liga, cedeu lugar a uma pulverização da metalurgia, permitindo o ingresso mais sistemático no universo da metalurgia tanto de grupos extra-palacianos como de reinos mais modestos. As grandes potências, como a Assíria e a Babilônia, já não podiam assentar seu poderio no uso mais exclusivo do aparato metálico. A emergência dos novos reinos no Levante, decorrente do refluxo das potências tradicionais, fundou-se largamente no uso do ferro para fins militares (Liverani, 2005, p.50 e ss). Quando os centros expansionistas mesopotâmicos retomaram as rédeas do processo, uma nova lógica se impôs e a guerra passou a ser o principal instrumento de domínio imperial. Tanto a Assíria quanto a Babilônia conseguiram canalizar em seu benefício a nova metalurgia: basta lembrar o papel do ferro na crescente importância da infantaria e da cavalaria, em detrimento da batalha centrada em carros de guerra, própria do IIo milênio (Fales, 2010, p.104). Nesse quadro, o intumescimento das referências bélicas - nos textos e nas imagens - foi parte integrante do movimento e não apenas um seu reflexo secundário,30 e buscava conferir consistência discursiva a um domínio flácido e cimentar a identidade da elite guerreira em torno de um projeto imperial.
Com isso, podemos retornar à cabeça decepada de Teumman.
Frequentemente, as abordagens dos relevos neoassírios limitaram-se a tomá-los como base documental para uma reconstituição factual dos conflitos. Nesta perspectiva, as imagens são avaliadas como narrativas de eventos, aproximando-se ou afastando-se da realidade em função de uma menor ou maior intervenção da manipulação ideológica a que foram submetidas quando de sua criação.31 É, porém, uma abordagem empobrecedora, que reproduz, para as fontes iconográficas, um método já reconhecidamente limitado para documentos escritos. Evidentemente, um adequado uso heurístico das imagens pode contribuir para consolidar a coleta de informações sobre aspectos mais concretos da guerra, dos armamentos às táticas de batalha,32 mas a evidência pictográfica não deve ser tomada pelo seu valor de face, pois a construção discursiva opera já no nível da seleção e dos modos de apresentação dos eventos figurados (Fuchs, 2011, p.385). No nível interpretativo, portanto, a análise pode avançar mais. Zainab Bahrani tem argumentado contra o que considera uma visão errônea sobre a própria natureza da imagem assíria (e, mais genericamente, mesopotâmica), que cria obstáculos consideráveis para a sua apreciação histórica: para reter o essencial, no centro da argumentação de Bahrani, encontra-se o questionamento da aplicação automática da noção de representação, fundada na aparência formal, à imagem mesopotâmica; para a autora, a imagem constitui uma presença essencial e imanente, que não pode ser captada pelos conceitos de representação mimética que lastrearam a tradição ocidental da história da arte. Assim concebida, a imagem assume um potencial de performance (inclusive ritual, como veremos), indispensável para o correto entendimento de seu papel social (Bahrani, 2003, especialmente cap. 5).33
A análise de Bahrani sobre a iconografia de Teumman oferece alguns elementos interessantes.34 A centralidade da cabeça decepada do rei elamita desloca para um segundo plano a narrativa dos eventos propriamente dita: o encadeamento factual deixa de ser o fio condutor da apreciação dos diversos painéis, o que vale igualmente para os textos que tratam do mesmo tema.35 Como uma espécie de "signo-mensagem", portador de sentido e condutor da expressão visual, a cabeça de Teumman não se reduz a uma exortação das atrocidades ou a uma demonstração ostensiva do poderio assírio sobre os demais povos. Mais poderosamente, ela vetoriza um sentido ritual, na forma do cumprimento de um oráculo anterior à decapitação e mencionado nos textos, sinalizando a consumação de um decreto divino. Nas inscrições, Ishstar de Arbela, Assur, Marduk e seu filho Nabu aparecem entre as divindades que, em diferentes momentos, incitam à punição ou recebem em oferenda a cabeça do rei elamita. Não se trata, porém, ao menos não prioritariamente, de simples artifício de exibição, embora este aspecto também esteja presente: separada de seu corpo, a cabeça é pendurada conspicuamente na porta da cidade de Níneve. As composições, textuais e iconográficas, salientam o ato ritual, a performance na qual a cabeça decepada é um elemento "que faz as coisas acontecerem", como todo item que prima por sua função de evocação mágica e apotropaica.36 Assim como as palavras ritualisticamente repetidas, as imagens não se limitam a figurar ou descrever. Para além da estrita representação, elas atuam, intervêm, são presenças eficazes, afirma Bahrani. É esta repetição, através da profusão (aparentemente) redundante de formas, que faz o objeto visual exercer um fascínio gerador: como nos encantamentos, a multiplicação formular induz a um movimento constante e causador de efeitos, tanto nos oficiantes como na audiência. Esse fenômeno, tão bem conhecido e estudado no nível das fórmulas verbais,37 também se reproduz através dos dispositivos visuais.
O aspecto ritual da imagem da cabeça decepada de Teumman também foi salientado por Dominik Bonatz.38 A extirpação corporal implicada pela caça às cabeças opera uma transformação da ação e de seu campo semântico, deslocando-os da exibição de um troféu de vitória para um ato sacrificial. Não se trata, no caso específico da cabeça pendurada do rei elamita, de uma demonstração genérica de brutalidade através do acúmulo de mutilações, no mais tão comum no restante da imagética neoassíria, mas de um ato singular, com potencial ritual igualmente determinado. Bonatz chama a atenção para os paralelos entre as libações sobre o corpo do leão caçado, nos relevos do mesmo Assurbanipal, e a aspersão de vinho sobre as cabeças de Teumman e de seus aliados, tratamento aliás absolutamente excepcional quando se trata de despojos humanos. O autor não deixa de atentar também para a natureza religiosa da consagração da cabeça decepada do rei aos deuses, o que aproxima nosso episódio da passagem em que Gilgamesh e Enkidu levam para Nippur, cidade sagrada por excelência, a cabeça de Humbaba, o guardião da floresta de cedros, por eles abatido em um fragoroso combate.39 De modo mais geral, o desmembramento dos corpos dos inimigos dizimados pelo herói é tema recorrente nas narrativas mitológicas. No Lugal.e, o deus Ninurta fragmenta impiedosamente o corpo do demônio Asakku: "ele esmaga Asakku como o trigo torrado, emascula-o e fá-lo em pedaços, como montes de tijolos".40 No Enuma eliš, a grande epopeia de ascensão de Marduk, o desmembramento do corpo de Tiamat está na origem mesma da ação cosmogônica do deus babilônico: após ter abatido a grande divindade primordial do mar de águas salgadas, Marduk "contemplou o cadáver de Tiamat, a fim de dividir astutamente aquela massa, ele partiu-a em dois, como um peixe seco" e das partes do corpo criou todo o ordenamento;41 na sequência, a sangria de Qingu, amante e líder de tropas de Tiamat, fornecerá o sangue para a criação da humanidade.42
Assim, as narrativas visuais e textuais assírias sobre o desmembramento dos corpos atualizam, em uma chave 'histórica' (isto é, factual), os tratamentos dispensados aos inimigos nos embates mitológicos, permitindo que os reis inscrevam-se no processo cósmico de criação da ordem e combate ao mal (De Backer, 2010), traduzindo-o ritualmente num patamar espaço-temporal terreno.43 Além disso, o ato consuma uma transformação que apenas o ritual pode proporcionar: como observou Jean-Jacques Glassner, "uma vez que ele é morto e decapitado, as forças vitais e hostis do inimigo se metamorfoseiam em forças propiciatórias" (Glassner, 2006, p.50), passando a servir de escudo protetor do próprio deus vitorioso ou como matéria-prima da criação.
Como o caráter geral se reproduz em cada um de seus componentes, não é demais acrescentar que o significativo momento do triunfo e suas figurações compartilham da mesma dimensão ritual. A parada triunfante do rei, que se segue ao recebimento de butins e prisioneiros, sua entrada vitoriosa pelas portas da cidade ou do acampamento é nomeada pela mesma expressão que designa a entrada do deus durante o festival do Akîtu, a comemoração do novo ano: erab ali ('entrada na cidade'). Como notou Natalie May, a apreciação do conjunto dos programas decorativos dos relevos palacianos estabelece um claro encadeamento entre caçadas rituais, libações (sobre leões e cabeças cortadas), triunfo e banquete real (May, 2012). No interior do palácio, a figuração do triunfo e de suas etapas rituais transforma-o em uma memória que não é apenas depositária da lembrança do passado, mas também, nas palavras de Davide Nadali, uma dimensão projetada para o futuro (Nadali, 2013, p.90).
A presença dos demônios nos relevos é outro aspecto a ser lembrado.44 Seres em geral híbridos ('Mischwesen'), representados em composições de partes de animais ou em misturas entre corpos humanos e animais, eles povoam o imaginário mesopotâmico evocando forças desconhecidas e incontroláveis, responsáveis por males, mas também por boas ações. Além dos colossos guardiães das entradas,45 nos relevos que revestiam as paredes dos palácios assírios, as figuras demoníacas apareciam seja isoladamente em grandes painéis, sobretudo das portas internas, seja em discretas inserções em meio às cenas de guerra. Uma evolução no repertório faz com que o quase monopólio do sábio-apkallu no século IX de Assurnasirpal II ceda lugar, a partir de Sargão II, a uma maior diversidade. Nos palácios do século VII, de Senaqueribe e Assurbanipal, os artesãos buscam inspiração em uma fonte que nos interessa particularmente: as figurações dos demônios reproduzem as criaturas que Tiamat traz à vida para formar suas tropas e combater os deuses. Dos onze demônios nomeados no Enuma eli š (I, 133-142; II, 20-29), seis são atestados nos relevos: o kullulu (o homem-peixe); o lahmu (o herói com seis cachos no cabelo); o mušhuššu (o dragão-serpente); o girtablilu (o homem-escorpião); o ugallu (o demônio leão) e o uridimmu (o homem-leão). Em minha opinião, a presença da prole de Tiamat na imagética dos palácios opera em uma zona de ambiguidade, sugerindo que as forças adversas existem e podem ser encarnadas pelos inimigos do reino, mas também que o soberano, uma vez vitorioso, é capaz de submetê-las e tomá-las em seu benefício, do mesmo modo que põe os elamitas a serviço da Assíria. É significativo que os artesãos de Senaqueribe e Assurbanipal tenham cuidadosamente evitado a presença em uma única cena do rei e de um demônio, ao mesmo tempo que substituíram os demônios pelo rei como oficiante dos rituais.46 De um lado, buscaram afastar o monarca de uma contaminação pelo potencial negativo que carregavam essas figuras ambivalentes, benfeitoras e malfeitoras. De outro, dotavam o líder guerreiro de capacidades mágicas antes reservadas aos seres sobre-humanos.
Tais considerações nos remetem à natureza sagrada da guerra. É preciso, no entanto, certo cuidado ao evocar a noção. Não há muita novidade em lembrar que, na Assíria, como é o caso da Mesopotâmia em geral, a guerra foi legitimada pelo discurso religioso.47 Este traço de mentalidade não se limita, porém, à simples justificação. Como dito acima, a ação mundana do rei prolonga a vontade dos deuses na Terra, reitera o embate mítico entre ordem e caos, fazendo da guerra a perfeita tradução, em seu cenário humano, dos planos divinos, mais universais, mais ancestrais e mais abstratos.48 A concepção binária (Fales, 2010, p.82 e ss) entre o bem e o mal, entre os espaços civilizados, isto é, controlados, e a natureza hostil e selvagem, entre a identidade assíria e a alteridade do estrangeiro (distâncias e diferenças que os assírios rotulam genericamente de nakru), entre piedade e temor aos deuses e o comportamento ímpio, esta concepção binária, dizíamos, é que se repete no campo de batalha, na oposição entre o rei heroico e seu inimigo sacrílego. A atribuição maior do soberano - uma obrigação ética e não apenas seu direito político - é de levar a ordem reinante nos domínios de Assur ao caos circundante (Liverani, 2011, p.263). A guerra é a continuação da religião por outros meios, se quisermos parodiar Clausewitz. Contudo, e aqui reside uma diferença fundamental, a "guerra santa" na versão assíria foi desprovida da prescrição forçada de adoração a um deus ou da adoção obrigatória de um panteão; dispensou também a imposição de um culto religioso específico.49 As oferendas sacrificiais ao deus Assur - e a outros deuses assírios - pelas populações submetidas implicam o reconhecimento da superioridade das divindades dos vencedores, mas não se traduzem em adoração imposta ou em interdição aos cultos dos deuses locais. Muitas manifestações dos vencidos reconhecem, aliás, essa dinâmica bivalente que permitiu, por exemplo, a continuidade do culto de Yahweh em Israel.50 Outrossim, as demonstrações de reverência a Assur são articuladas àquelas devotadas ao próprio rei (palah ili u šarri = 'temor ao deus e ao rei') e sinalizam mais um reconhecimento da soberania do monarca assírio - de cujo poder o deus é, nas palavras de Liverani, uma hipóstase (Liverani, 1979, p.301) - e menos uma adesão propriamente religiosa.51
A experiência religiosa assíria não foi caracterizada, ao menos não suficientemente, por fatores essenciais para outras experiências que trilharam o caminho da imposição religiosa ou da eliminação das demais crenças: a interiorização da fé; a ideia de distinção radical entre deuses verdadeiros e falsos;52 a constituição de um conjunto obsessivo de dogmas de comportamento de valor moral, em geral postos por escrito etc. Permanecendo nos patamares de uma religião de tipo cerimonial, centrada na figura do soberano, e à qual faltava uma moralidade ética subjetiva, a sacralidade da guerra assíria não evoluiu para uma guerra de defesa e prescrição da verdade de uma forma particular do sagrado.53
É no universo de uma guerra concebida como ato cerimonial que a série de imagens com a cabeça decepada de Teumman ganha pleno sentido: não se trata apenas de um ciclo temático que privilegia as cenas rituais no âmbito da própria guerra (oferendas e sacrifícios, procissões, queima de incenso, libações, provavelmente leituras divinatórias das entranhas de animais);54 trata-se propriamente de um conjunto de artefatos litúrgicos, vetores semânticos e agentes da violência sacrificial implicada no conflito bélico. A cena do banquete só é compreensível como momento culminante de uma sequência de eventos de uma guerra sagrada, de que a imagem é partícipe, situando a consumação e o deleite do banquete em seu contexto propriamente ritual.
Este artigo é resultado parcial de pesquisa financiada por Bolsa de Produtividade do CNPq (triênio 2016-2019).



