EDITORIAL
Editorial Sobre dossiês
Editorial About Special Issues
Mas nós não podemos fazer tudo de uma vez; é uma sequência. Um processo desdobrado. Nós podemos somente controlar o fim fazendo uma escolha a cada passo.1 (DICK, 2011, p. 260)
Dossiês apresentam facetas múltiplas: ponto de convergência de trabalhos afins, celebração de efemérides, tributo a pesquisadores, tranquilidade ou pesadelo para editores. Para os autores e organizadores, o dossiê sinaliza um espaço de diálogo e construção plural do conhecimento, sobretudo na preparação que antecede a submissão dos artigos e permite que seus organizadores forneçam uma identidade própria ao volume. Para os leitores, o dossiê representa uma reunião de pesquisas em tema de interesse que, estima-se, traga a atualidade da produção na área e forneça pistas sobre caminhos de pesquisa a seguir. Entre organizadores, autores, pareceristas e leitores, o editor exerce um papel de mediador, já salientado por Caldeira (2018, p. 684), que aponta essa figura como “um ponto de convergência e também de tensão”. Sem perder de vista os interesses específicos de cada dossiê, ao editor cabe atentar aos interesses mais amplos da publicação e seu público leitor, maiores do que a soma das individualidades que formam uma edição especial. Sobretudo, cabe-lhe zelar pelas boas práticas acadêmicas que constroem a reputação de um periódico e sua classificação. Nesse sentido, um dossiê requer cuidados redobrados, na medida em que, a partir de uma proposta fechada, as expectativas dos autores reunidos é, compreensivelmente, pela aceitação de seus textos - aceitação que, não raro, é confundida com a aceitação de si mesmo.
Entre a proposta de um dossiê e sua publicação, as diferentes etapas do processo editorial aplicáveis aos artigos livres se repetem: uma varredura que garanta um texto sem plágio ou autoplágio; uma avaliação duplo-cego que privilegie a leitura de especialistas na temática, permitindo que o dossiê transcenda a reunião de trabalhos de um mesmo grupo que se lê e aplaude os seus repetidamente; uma revisão rigorosa do texto pelo conselho editorial, que não está sujeito ao renome deste ou daquele autor, mas aos interesses da revista; a revisão por autores e autoras, seja ela minor ou major, quando solicitado.
O momento da revisão, uma experiência que, sabemos, algumas vezes apresenta frustrações e desencontros, tem o propósito primordial de melhorar o texto, e frequentemente atende a esse objetivo com a indicação de leituras e discussões que passaram despercebidas pelos autores. Todo texto revisto, em alguma instância é um texto melhorado. Pelo crivo dos pareceristas anônimos passam todos os artigos submetidos a uma revista de alto extrato, que não deve privilegiar determinados manuscritos unicamente por se apresentarem dentro de um dossiê. Por mais lisonjeira que a participação de determinado autor possa ser, a avaliação em Varia Historia tem focado naquilo que é seu objetivo: levar textos de qualidade a seus leitores, textos que dialoguem com a historiografia estabelecida, sejam originais e inovadores. Uma avaliação às cegas permanece, assim, no cerne da avaliação de todo e qualquer artigo que venha a ser publicado, e um dossiê de sucesso deve conjugar autores que acatem as normas da revista e que estejam dispostos a ser avaliados. Naturalmente, a devida reflexão sobre o sentido de auto-importância tão presente na academia faz parte desse processo.
Dossiês também têm o potencial de contribuir para a internacionalização dos periódicos. Mas até que ponto esse potencial se traduz atualmente na circulação no exterior, fator essencial já apontado por Horta (2016, p. 9), e não apenas na muito bem-vinda assinatura de pesquisadores estrangeiros nos artigos publicados? As métricas objetivas que nos impelem à internacionalização também ditam a transparência empregada no processo de submissão e avaliação dos textos, características incontornáveis para os indexadores, às quais se acrescenta uma declaração de boas práticas acadêmicas ou código ético2. Para que um bom artigo seja um artigo lido, os dossiês demandam o triplo esforço de autores, organizadores e editores para que a revista mantenha seu padrão de qualidade e sua visibilidade, no Brasil e no exterior, pois os indexadores dizem respeito não apenas à qualidade, mas também ao alcance. Ao circular por novas paragens, os dossiês têm o potencial de se tornarem vitrines do periódico, ao mesmo tempo em que ele é sua razão de existir. Essa parceria deve, portanto, ser conduzida de forma respeitosa e transparente.
Ao longo dos últimos dois anos, após ter sido adotado um sistema de escolha de dossiês a partir de edital, Varia Historia procurou eliminar os últimos traços de endogenia ainda presentes na revista e democratizar o processo de submissão de propostas. Os dossiês se tornaram presentes regularmente em duas das três edições anuais do periódico, com a atuação de pesquisadores os mais diversos possíveis. Selecionados a partir de escrutínio da equipe editorial que analisa a coerência da proposta, os autores incluídos (o que não implica que textos avulsos não possam ser submetidos) e o reconhecimento acadêmico dos proponentes, os dossiês têm agregado temáticas e experiências plurais. Trata-se de um sistema em aperfeiçoamento, que ofereceu, em alguns casos, parcerias reais e diálogos profícuos entre a equipe editorial, organizadores, autores e avaliadores. Ao final deste período de avaliação, resta-nos concluir que não há uma fórmula ideal para um dossiê em uma revista de alto extrato: sejam frutos de endogenia, de ação de organizadores convidados ou democratizados, edições especiais são formadas por pesquisadores que estão preocupados com suas próprias redes de relacionamentos e publicações, não com o periódico. A transparência do processo editorial é o meio de campo em que as vontades podem se encontrar, permitindo que artigos sejam publicados mais pela qualidade, do que pela filiação de seus autores; mais pela originalidade, do que pelo vínculo entre autor e organizador. Mas essa transparência só funciona quando todos os envolvidos jogam o mesmo jogo.
Neste meu último editorial à frente da Varia Historia, findando um período que começou poucos meses antes do início de uma pandemia e termina com ela ainda atravessando o país e arrastando consigo centenas de milhares de mortos, graças a uma política negacionista e fragorosamente indiferente ao valor da vida humana, agradeço a confiança que me foi depositada pelos colegas do departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Agradeço também aos autores e pareceristas que construíram os últimos números da revista e que possibilitaram trocas que me acompanharão pela minha trajetória. Assumir a editoria-chefe de um periódico da magnitude da Varia Historia, em um contexto marcado por crises financeiras e reformulação da equipe, acarreta em um crescimento pessoal e acadêmico, clichés à parte. Agradeço à equipe da revista que se desdobra cotidianamente na varredura dos artigos, padronização daqueles que são aceitos e difusão das publicações nas mídias sociais. Nathálya Ferreira, Kelly Appelt, Lívia Roberge, Gabrielle Noacco, Ygor Gabriel e Paula Pacheco, vocês são parte essencial da revista. O conselho editorial, sempre prestativo e atento às necessidades de avaliação contínua, especialmente nas figuras de Ana Paula Sampaio Caldeira e Anny Jackeline Torres Silveira, fornece uma base insuperável de apoio. Com ambas fica minha maior dívida. À Mariana Silveira, futura editora-chefe da revista no biênio 2022-2023, meus melhores votos para que os anos vindouros sejam de resiliência.
O número 75 de Varia Historia é composto pelo dossiê “Oceanos como espaços de conhecimento”, organizado por Maria Margaret Lopes, artigos livres e resenhas. Abrindo a seção de artigos livres, Antonio Cesar de Almeida Santos investiga as múltiplas dimensões do decoro no vocabulário político do século XVIII e a destacada influência de Cícero. Pablo Magalhães apresenta sua descoberta de uma tradução inédita de Voltaire feita por José de Santa Rita Durão e submetida à Real Mesa Censória em 1783. Ainda nos domínios portugueses, Hugo Pereira reflete sobre a construção da paisagem do Moçambique colonizado pelas lentes do fotógrafo Romão Pereira. Retomando o tema do oceano que abre este número, Daniel Faria relaciona as experiências de três autores com o mar - mar que é trânsito, ameaça e evasão -, e o extravasamento poético. Ainda pelos caminhos literários, Cleber Vinicius do Amaral Felipe analisa experiências marítimas relacionadas ao topos “depois da tempestade, a calmaria” em Primo Levi e em autores que atravessam sua obra. Nossa seção de resenhas fecha o número com análises de livro de Francis Manzoni, por Philippe Alvaro dos Reis, e de obra editada por Andrea Andujar e Ernesto Bohoslavsky, por Ivia Minelli. Varia Historia é uma revista de acesso aberto e gratuito, para seus autores e leitores.