Resumo: No limiar do século XIX, a vila de Ilhéus experimentou mudanças em seu perfil econômico, movendo-se gradativamente de uma economia voltada ao abastecimento interno a uma economia de exportação. A nova feição regional estava inserida no contexto da recuperação econômica baiana experimentada entre o final do século XVIII e o início do século XIX, momento no qual Ilhéus passa a investir em açúcar, café e cacau. O projeto de dinamização econômica destinado a Ilhéus dependia, entretanto, da construção de caminhos que conectassem a vila com diferentes regiões, assim como do controle e do uso do trabalho indígena. Nesse contexto, a estrada Ilhéus-Vitória e o aldeamento de Ferradas, localizados no eixo sudoeste desta região, impuseram-se como estabelecimentos centrais ao sucesso dos projetos públicos e privados direcionados a Ilhéus. Analiso, neste texto, os mecanismos utilizados por alguns agentes públicos coloniais a fim de realizar o projeto de dinamização econômica destinado a Ilhéus no início do oitocentos, bem como a conciliação elaborada por eles entre os interesses do Estado e suas próprias perspectivas de ganhos naquela situação histórica.
Palavras-chave: Agentes públicos, dinamização econômica, Ilhéus.
Abstract: the threshold of the 19th century, the village of Ilhéus experienced changes in its economic profile, gradually moving from an economy focused on domestic supply to an export economy. This new regional character was part of a context of economic recovery in Bahia, which happened between the end of the 18th the beginning of the 19th century, when Ilhéus began to invest in sugar, coffee, and cocoa. The project for Ilhéus’ economic dynamization depended, however, on the construction of paths connecting the village to different regions, as well as on the control and use of indigenous labor. In this context, the Ilhéus-Vitória road and the village of Ferradas, located on the southwest axis of this region, imposed themselves as central establishments to the success of public and private projects directed to Ilhéus. This text analyzes the mechanisms used by some colonial public agents in order to carry out the project of economic dynamism destined to Ilhéus in the beginning of the 19th century, likewise, the conciliation elaborated by them between the interests of the State and their own economic interests in that historical situation.
Keywords: Public agents, economic dynamization, Ilhéus.
ARTIGOS
Lícitos planos, insólitos interesses Agentes públicos coloniais e o projeto de dinamização econômica em Ilhéus no início do século XIX
Legal Plans, Unusual Interests Colonial Public Agents and the Project for the Dynamization of Ilhéus’ Economy in the Early 19th Century
Recepção: 06 Dezembro 2021
Revised document received: 02 Maio 2022
Aprovação: 07 Junho 2022
A vila de São Jorge de Ilhéus historicamente ocupou o lugar de vila-sede, desempenhando o papel de centro político-administrativo da capitania de Ilhéus, uma das doze capitanias hereditárias criadas entre 1534 e 1536 pela coroa portuguesa. A capitania consistiu em uma doação de Dom João III ao escrivão Jorge Figueiredo, em 1534 (DIAS, 2007, p. 9), e permaneceu como uma donataria hereditária até o ano de 1761. Nesta ocasião, foi incorporada à coroa após sub-rogação feita a seu último donatário e elevada, no mesmo ato, à condição de comarca (CAMPOS, 2006, p. 249). A sua área de abrangência compreendia uma extensão de cinquenta léguas, cujos limites principais se davam ao norte, com a comarca da Bahia; e, ao sul, com a comarca de Porto Seguro (ADAN, 2009, p. 62).

Mesmo que a vila de São Jorge de Ilhéus desempenhasse indiscutível importância política e administrativa na Comarca, do ponto de vista econômico, as autoridades públicas consideravam seu dinamismo inferior ao das vilas de Camamu, Cairú, Maraú e Valença. Essas vilas, por estarem estrategicamente mais bem localizadas em referência a Salvador, conseguiam movimentar mais facilmente a sua economia, pois funcionavam como centros de abastecimento dos mercados consumidores de Salvador e do Recôncavo.
A vila de São Jorge também não compartilhava do perfil das demais vilas, que se caracterizavam por concentrar comércios especializados. Cairú e Valença, por exemplo, tinham como principal fonte de renda o corte de madeira e tabuados. Já Camamu e Maraú concentravam a sua renda em mandioca, café e cana para a fabricação de aguardente. Apesar de ter sido considerada menos dinâmica em relação às demais vilas da comarca, a vila de Ilhéus não deixou de ser avaliada por autoridades coloniais, como o ouvidor Baltasar da Silva Lisboa, como “zona estratégica para a expansão da produção de alimentos” (DIAS, 2007, p. 361).
Em 1799, o então ouvidor e juiz conservador das matas da comarca de Ilhéus, Baltasar da Silva Lisboa, informou aos seus superiores que a população da vila somava não mais que duas mil “almas”. Além disso, o ouvidor destacou as condições de vida dos moradores de Ilhéus como de extrema pobreza. Segundo a sua avaliação, a condição de carestia da vila era resultado da produção agrícola insuficiente, em razão da “falta de braços para as lavouras”. A análise negativa que o ouvidor atribuía ao desenvolvimento da vila tinha como tela de fundo a sua aposta no potencial das terras de Ilhéus para a agricultura, destacando a qualidade das extensões às margens do rio Itaípe, “que alagavam e fecundavam as planícies contíguas” (DIAS, 2007, p. 366).
Duas décadas depois, a feição de Ilhéus não havia mudado muito. Em passagem pela localidade durante a expedição científica ao Brasil que realizou entre 1817 e 1820 em parceria com Johann Baptist von Spix, o naturalista e etnólogo alemão Carl Friedrich von Martius avaliou São Jorge como uma vila pobre e pouco populosa, “cuja povoação não apresentava uma só casa sólida” (CAMPOS, 2006, p. 315).
A avaliação compartilhada entre o ouvidor Silva Lisboa e o viajante naturalista desnudava o lento avanço da fronteira da ocupação colonial naquela porção sul da comarca de Ilhéus. Isso exigia das autoridades da Bahia atenção privilegiada, pois esse território era intensamente habitado por povos indígenas que viviam independentes (ou relativamente independentes) da administração colonial. Tais povos eram considerados pelas autoridades e pelos colonos como os principais obstáculos a serem superados para o avanço da ocupação, a expansão da fronteira agrícola e o desenvolvimento comercial da região. Portanto, qualquer plano de desenvolvimento destinado à vila de Ilhéus exigia, intrinsecamente, o controle indígena. Para atingir os objetivos planejados, foram colocadas em prática no limiar do século XIX diferentes alternativas, marcadas por interesses públicos e privados que por vezes se confundiam.1
No contexto da virada do século, Ilhéus experimentou um processo de mudança em seu perfil econômico. De uma economia de extração, criação de víveres e cultivo de produtos alimentícios, voltados ao abastecimento do mercado interno, a vila migrou gradativamente para culturas de exportação, tais como açúcar, café e especialmente cacau.
O novo perfil econômico da vila se consolidou entre os anos 1830 e 1860, ocasião na qual algumas famílias abastadas de Salvador e de Minas Gerais, que haviam sido atraídas à região, constituem-se numa elite ilheense que concentrou em torno de si grande importância econômica e político-social. Essa mesma elite exerceu papel essencial na criação da fronteira agrícola e na posterior economia do cacau (MAHONY, 1996, p. 241-242). Esse produto se consolidou como monocultura de exportação na segunda metade do século XIX, experimentando um crescimento extraordinário entre o fim do XIX e o início do XX, o que possibilitou ao sul da Bahia concentrar mais da metade da receita do estado (FALCÓN, 2010).
A análise ora apresentada recairá sobre os mecanismos e os agentes públicos coloniais e demais atores sociais envolvidos em um projeto de dinamização econômica destinado à região sul da Bahia. Nesse projeto, o controle e o uso do trabalho indígena se impuseram como elementos centrais. O presente texto coloca em destaque os interesses privados que se sobressaíam nos exercícios funcionais dos agentes a serviço da coroa em Ilhéus.
Os estudos no campo da história econômica têm-se ocupado em pensar a complexidade da economia brasileira no século XIX. As análises voltadas às especificidades regionais desvelam um diversificado mercado interno que, nas palavras de João Antônio de Paula (2012, p. 182), “contraria a imagem que ainda tem ampla difusão, de uma economia exclusivamente escravista, de monocultura e voltada para a exportação”. Apesar disso, o Brasil, de fato, constituía um centro periférico agroexportador no XIX e se consolidou como tal ao longo desse século.
No caso da Bahia, a capitania, e posterior comarca, de Ilhéus desempenhou importante papel na dinâmica do mercado interno durante o período colonial, enquanto o centro aglutinador de exportação era o Recôncavo, cujo açúcar se manteve como o principal produto de exportação da Bahia até os anos 1850. Em meados do setecentos, o comércio do açúcar baiano havia entrado em estagnação devido à ascensão do açúcar produzido nas colônias caribenhas. A sua recuperação envolveu uma série de fatores internos e externos.
A partir da segunda metade do XVIII, houve em Portugal um esforço reformador através das políticas do futuro Marquês de Pombal, voltadas ao fomento econômico na metrópole e além-mar. Além disso, as guerras e revoluções experimentadas na Europa foram fenômenos que favoreceram a recuperação da economia externa baiana e brasileira na virada de séculos, impactando diretamente a própria economia portuguesa. Aspecto que, segundo Bert Barickman (2003, p. 152), demonstrava a dependência de Portugal da América portuguesa, já que, “entre 1796 e 1811, os produtos brasileiros correspondiam a 60% das transações portuguesas na Europa”.
Outro fator de favorecimento da recuperação econômica brasileira e baiana consistiu na abertura dos portos brasileiros no contexto da invasão napoleônica a Portugal e na subsequente transferência da corte portuguesa à colônia, em 1808. Houve, nesse processo, uma abertura de novos mercados aos produtos exportados do Brasil, produtos esses que também passaram a se diversificar. Apesar das alterações no comércio de exportação, o grosso das transações internacionais baianas, no início do XIX, ainda eram os produtos tradicionais do Recôncavo: o açúcar e o fumo. Já havia, porém, uma abertura ao café e ao cacau. Ambos os produtos foram crescendo no mercado baiano ao longo da primeira metade do oitocentos (BARICKMAN, 2003, p. 53-55).
Por um lado, a recuperação do comércio açucareiro baiano estimulou a expansão da lavoura de cana na Bahia no início do XIX. Esse produto experimentou, no entanto, as flutuações ao sabor das demandas do mercado mundial, até que caísse em estagnação e irreversível declínio, em fins dos anos 1850. Por outro lado, a diversificação do comércio externo favoreceu a ascensão do café e do cacau na Bahia, atraindo a atenção dos tradicionais comerciantes do açúcar e também de novos interessados em investir em tais produtos.
Aos poucos, a porção sul da Bahia se tornaria a menina dos olhos dos agentes do Estado e dos particulares, especialmente pelo crescente interesse pelo cacau, que ficou demonstrado no estudo sobre o cultivo dessa fruta que Miguel Calmon apresentou à Sociedade de Agricultura da Bahia em 1838 (MAHONY, 1996, p. 203). Para promover, porém, a dinamização econômica ao sul, dois elementos interconectados eram preponderantes: a construção de caminhos que facilitassem a comunicação e a colonização regional; a pacificação dos indígenas, que incluía o interesse em os tornar força de trabalho disponível.
Em fins do século XVIII, José de Sá e Bittencourt Câmara Accioli, membro de uma família de importante envergadura na Bahia e em Minas Gerais, ao retornar de Coimbra, onde, como qualquer membro da nata da aristocracia luso-brasileira, havia concluído os seus estudos, estabeleceu-se em Ilhéus e se colocou à disposição da coroa, a fim de dinamizar a situação econômica na região. O foco de José Sá estava concentrado na abertura de estradas, pois considerava a falta delas um dos empecilhos à comunicação de Ilhéus com Salvador e outras localidades (MAHONY, 1996, p. 100-101).
José Sá concentrou sua atenção em abrir uma estrada voltada a conectar o litoral sul, o Sertão da Ressaca2 e o norte de Minas Gerais. Esse trecho não foi traçado ao acaso: estava voltado a facilitar o escoamento do minério extraído por sua família em Minas Gerais ao porto da vila de Camamu, onde parte da família estava estabelecida desde meados do século XVIII (MAHONY, 1996, p. 105).3 Essa estrada compreendia uma das vias da chamada “estrada real do sertão” ou “estrada geral”, na qual foram empenhados esforços públicos e privados durante todo o século XVIII (NOVAIS, 2008, p. 81-82).
Além da estrada na qual José Sá estava empenhando esforços, outra via foi iniciada naquela malha terrestre em inícios do XIX. Estou-me referindo à estrada Ilhéus-Vitória (atual BR-415), destinada a ligar o interior de Minas ao porto da vila de Ilhéus e outras localidades. A estrada levava esse nome porque ela conectava as vilas baianas de Ilhéus e Vitória (a atual cidade de Vitória da Conquista). A estrada margeava o rio Cachoeira, e a preocupação em mantê-la em uso também esteve relacionada à ocupação dessa zona pela cacauicultura - tanto que a quase totalidade das fazendas e roças desse eixo registradas no livro da paróquia em fins dos anos 1850 estava ocupada com plantações de cacau.4
A responsabilidade concernente à construção da estrada Ilhéus-Vitória foi conferida inicialmente ao oficial do exército Felisberto Caldeira Brant Pontes - futuro marquês de Barbacena, também conhecido pelo seu papel de diplomacia desempenhado junto à coroa portuguesa e ao Império brasileiro. Em 1810, após avaliar a região e estudar a viabilidade do empreendimento, Brant Pontes deu início à construção da estrada partindo da altura em que o rio Cachoeira confluía com o rio Salgado, uma zona mais ao interior, território de domínio indígena. Na ocasião, assim como Sá, Brant Pontes destacou a intensa presença dos botocudos no perímetro de construção da estrada como uma dificuldade imposta ao trabalho de abertura da via (FREITAS; PARAÍSO, 2001, p. 52).
A despeito das dificuldades, o potencial daquele corredor de ligação entre a vila de Ilhéus, a de Vitória e o norte de Minas Gerais para a dinamização comercial da região sul alimentava grande entusiasmo no ouvidor Baltasar da Silva Lisboa, que considerava incalculáveis os seus benefícios. De fato, uma vez principiada, a estrada seguiu merecendo atenção privilegiada da administração pública, a ponto de muitas décadas depois se encontrar inserida nas despesas orçamentárias provinciais, conforme observou um frade capuchinho em 1872: “Os sábios representantes da província, já convencidos das vantagens desta estrada, desde o ano de 1858, em várias sessões marcaram na lei do orçamento a quantia de 10 contos de réis, unicamente para ser aplicada a limpeza da dita estrada”.5
Durante todo o século XIX, contudo, o sucesso da estrada e o consequente dinamismo econômico regional iriam depender do controle sobre os povos indígenas habitantes da região. Os próprios indígenas aldeados ou de contato intermitente participariam da empreitada de pacificação perante os indígenas não aldeados e resistentes ao avanço dos empreendimentos coloniais sobre os seus territórios. É nesse contexto que acompanharemos o desenrolar dos acontecimentos em torno da criação do aldeamento São Pedro de Alcântara, ou simplesmente Ferradas, em 1814.
De forma generalizada, os indígenas que impuseram resistência aos colonos no processo de avanço sobre os seus territórios na capitania, e posterior comarca, de Ilhéus foram denominados de aimorés, gueréns e gréns (DIAS, 2007; MARCIS, 2013). Essas denominações coloniais - em determinados contextos apropriadas pelos próprios indígenas - foram amalgamadas na denominação de botocudo no século XIX. Sob o guarda-chuva genérico de botocudo, autoridades e colonos dissolviam diversos e distintos grupos étnicos (MATTOS, 2004). O mapa que compreende o recorte espacial de análise deste artigo (ver Figura 1) traz amplas referências aos termos “gentios” e “gentios mongoyós”. Segundo Maria Hilda Paraíso (2014, p. 188), os mongoiós correspondiam a uma variação dos camacãs.
Aos aimorés, gréns ou gueréns (entre outras variações), eram atribuídos os mais depreciativos adjetivos, como bárbaros e gentios. À resistência dos aimorés, a historiografia atribuiu um suposto atraso ao desenvolvimento da capitania de Ilhéus, definindo-os como o seu principal obstáculo, como observou Marcelo Dias (2007, p. 188-189).
O Diretório dos Índios6 instituído pelo Marquês de Pombal - no bojo das reformas pombalinas - em 1758, criou freguesias e vilas indígenas nas antigas aldeias jesuíticas. Nessa oportunidade, foi aprovada a transformação do Aldeamento dos Índios Gréns, no rio Itaípe, em vila de Almada; da missão de Nossa Senhora da Conceição, por seu turno, em freguesia. A instituição da vila não foi efetivada, apenas a da freguesia, que entre 1777 e 1797 teve como pároco Francisco dos Santos Solledade (MARCIS, 2013, p. 226; p. 237).
Em 1796, pleiteando assumir uma vaga na vila de Camamu, o padre Solledade requereu ao secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e de Guerra a sua remoção da freguesia de Nossa Senhora dos Índios Gréns, assim como sugeriu a supressão desta. Como justificativa, o padre escreveu que a localidade não era uma vila organizada e que os indígenas eram desobedientes, de impossível catequização, além de abandonarem com frequência a freguesia e se embrenharem nos sertões, deixando-o sozinho, à mercê de possíveis ataques dos pataxós. Por fim, o padre sugeriu que, uma vez extinta aquela freguesia, os vinte casais cristãos ali residentes fossem distribuídos nas vilas e freguesias das cercanias (MARCIS, 2013, p. 243-244).
A solicitação de remoção de Solledade foi atendida. A freguesia, entretanto, foi objeto de averiguação da sua condição por parte das autoridades coloniais, ocasião na qual se solicitou ao arcebispo da Bahia manifestar-se sobre a questão. Este, por sua vez, remeteu a solicitação ao próprio padre Solledade e também a Baltasar da Silva Lisboa. O ouvidor se manifestou à Mesa da Consciência e Ordem favorável ao parecer do requerente padre, para, pouco depois, mudar de ideia e se manifestar contrário à extinção da freguesia indígena. No parecer retificado que enviou ao arcebispo, o ouvidor negou a existência de apenas vinte casais residentes. Para sustentar o seu parecer, argumentou sobre a importância dos aldeados à segurança dos colonos ali estabelecidos. Ao fim e ao cabo, após uma controversa atuação do ouvidor Lisboa, manteve-se a decisão da não extinção da freguesia indígena (MARCIS, 2013, p. 244-246).
Pouco tempo depois dessas turbulências, entretanto, partiu do próprio Baltasar Lisboa a iniciativa de extinguir o aldeamento e transferir as famílias gréns ali residentes para um novo aldeamento que ele havia acabado de criar às margens do rio Cachoeira e da estrada Ilhéus-Vitória, em uma zona afastada da parcela mais povoada da vila de Ilhéus. O objetivo era impulsionar a colonização no rio Cachoeira e empregar a mão de obra indígena aldeada na estrada Ilhéus-Vitória, cujos trabalhos estavam a cargo do oficial do Exército Felisberto Caldeira Brant Pontes. Esse empreendimento contava com especial entusiasmo e interesse do ouvidor, pelas possíveis razões que esmiuçaremos adiante.
Em 24 de maio de 1814, o desembargador Silva Lisboa escreveu ao ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, Antônio de Azevedo de Araújo, comunicando a transferência da povoação à nova localidade:
Tenho a honra de participar a V. Exa. haver-se realizado a mudança da povoação d’Aldeia d’Almada sita na Cachoeira do rio Itaype dos Ilhéus para o Rio Salgado, que desemboca no Rio Cachoeira da mesma Vila dos Ilhéus, na margem [ilegível] fronteiriça a estrada que se está abrindo para as Aldeias, e que até o Espírito Santo ficará concluída, segundo a carta [junta] que acabo de receber do Capitão-mor da Conquista [Antônio] Dias de Miranda.7
Até o ano de 1808, Baltasar considerava o aldeamento dos índios gréns vital à segurança dos colonos e dos seus negócios na zona de Almada, em razão dos ataques dos índios que viviam independentes da administração colonial (DIAS, 2007, p. 382). No contexto da decisão do ouvidor de extinguir o aldeamento, entretanto, estava em marcha um lento, mas contínuo, avanço da ocupação de terras no rio Cachoeira. Ao longo das décadas seguintes, os sujeitos responsáveis por esse processo concentrariam esforços no cultivo do cacau, como demonstram os registros de terra da freguesia de Ilhéus. Avanço fronteiriço que esbarrava na intensa presença dos camacãs, botocudos, pataxós, entre outros povos que habitavam entre os rios Cachoeira e Pardo.
Conforme vimos anteriormente, a economia baiana estava em franca recuperação nesse momento - em fase de expansão bem como de diversificação dos produtos de exportação -, dinâmica impulsionada ainda mais pela abertura dos portos brasileiros, em 1808. Essa nova dinâmica certamente interferiu na decisão do ouvidor, quando ele desmantelou o aldeamento dos gréns e transferiu os indígenas ao rio Cachoeira. De históricos entraves à colonização na capitania, os gréns foram alçados, portanto, ao lugar de atores estratégicos à ocupação não indígena em Ilhéus.
Na mesma carta de maio de 1814, o desembargador Silva Lisboa evidencia a função precípua do novo aldeamento: ele era estratégico ao avanço da construção da estrada destinada a dinamizar a comunicação e o comércio entre o litoral sul e Minas Gerais. O desembargador enfatizava, assim, a importância daquela via terrestre à “riqueza pública”:
é o mais belo reconhecimento de glória para SAR [Sua Alteza Real] fazer comunicável a Província das Minas com os povos que habitam nas costas do mar; com poucos dias a indústria nacional crescerá incalculavelmente, com ela todos os ramos da riqueza pública.8
Além disso, Silva Lisboa não deixou de salientar o envolvimento do capitão-mor Dias de Miranda nas tratativas acerca da estrada. Dias de Miranda pertencia à família de João Gonçalves da Costa, principal pecuarista da região localizada entre o arraial e posterior vila da Vitória e o Sertão da Ressaca, graças às terras e ao trabalho indígena, obtidos por meio das bandeiras que ele empreendeu a serviço da coroa em inícios do XIX. A família, portanto, era das mais interessadas em conectar o interior ao litoral (SOUZA, 2007, p. 51-55).
Ao novo aldeamento, o ouvidor pretendia atrair os indígenas camacãs que habitavam a região, pois, possivelmente, considerava-os mais receptivos ao contato do que os pataxós e botocudos também habitantes da extensão territorial de abrangência da estrada e dos rios Cachoeira e Pardo. Os botocudos e pataxós historicamente assumiram uma posição de enfrentamento físico com os colonizadores, utilizando-se da guerra indígena como afirmação da autonomia no território (SILVA, 2021a). Ademais, aquela região se caracterizava como uma zona de extremo conflito. Ela havia sido palco da reedição da guerra justa imposta aos botocudos imediatamente após a chegada da família real ao Brasil, em 1808, contexto no qual muitos grupos procuravam os aldeamentos a fim de manter a sua sobrevivência (PARAÍSO, 1992, p. 417).
Na ocasião, Baltasar informou aos seus superiores que os “povos nômades errantes nos Bosques” haviam pedido o batismo e que seriam aldeados no mês de agosto. Ele explicou a escolha da data: a “nova povoação” seria inaugurada na ocasião do aniversário do príncipe regente da Coroa e, em sua homenagem, o estabelecimento recebeu o nome de São Pedro de Alcântara. Para o seu funcionamento, Silva Lisboa havia mandado fazer “roçarias de mandioca e mais legumes, e rancharias cobertas de ouricana para os novos povoadores”. Além dessas instalações, o ouvidor mandou erguer “uma Capela de taipa”.9 Para tanto, ele fez uso do trabalho dos gréns transferidos do antigo aldeamento e freguesia indígena. O aldeamento de Ferradas foi documentado em um dos desenhos do pintor e desenhista austríaco Joseph Selleny, durante sua participação na expedição naturalista do arquiduque Maximiliano de Habsburgo ao Brasil, como mostra a Figura 2.

A “nova povoação” de Ferradas encaixava-se no que uma estudiosa denominou de “aldeamento tardio” (ALMEIDA, 2013, p. 102; p. 241). Tratava-se de estabelecimentos criados em fins da administração colonial. Muito embora os novos tempos demandassem mudanças quanto à integração indígena à situação colonial, tais espaços continuavam voltados a suprir os colonos de mão de obra indígena, bem como a oferecer segurança aos seus negócios.
O Diretório Pombalino, extinto oficialmente em fins do século XVIII, continuou a inspirar experiências indigenistas nos interiores do território pelo menos até a Independência. Esse aspecto talvez explique a aparente confusão na definição religioso-administrativa acerca de São Pedro de Alcântara, que aparece na documentação alternadamente como “aldeia”, “freguesia”, “vila”, “missão”, “lugar”, “povoação”, entre outras terminologias. A indefinição quanto a sua estrutura religiosa e administrativa pode decorrer de imprecisões nos registros documentais, mas pode, igualmente, ser exemplar das diferentes experiências indigenistas em prática entre o final do XVIII e as primeiras décadas do XIX, sob os auspícios das traduções do Diretório Pombalino, nas fronteiras de colonização do território brasileiro.
A redefinição das freguesias nos moldes da legislação pombalina, visando à laicização sobre os índios, não significou a obliteração do poder espiritual da Igreja. O que as reformas pretenderam foi a subordinação da Igreja aos poderes régios (SANTOS, 2014, p. 25). As freguesias (paróquias) indígenas eram espaços com funções de natureza religiosa e político-administrativa (CANCELA, 2021, p. 329). Levando em conta a dimensão histórica do Diretório, as suas recepção e adaptação variavam muito nas diferentes regiões. Desse modo, as práticas indigenistas sob a égide do Diretório eram bastante elásticas. A estrutura aparentemente confusa de São Pedro de Alcântara guardava as complexidades da experiência indigenista no sul da Bahia em início do oitocentos. Vale destacar que Baltasar da Silva Lisboa fez uso das prerrogativas do seu cargo - até 1832, eram os ouvidores das comarcas os responsáveis por administrar os bens dos índios (CUNHA, 1992, p. 148) - a fim de desmontar o aldeamento de Nossa Senhora dos Índios Gréns e transferir os indígenas ao novo aldeamento de São Pedro de Alcântara.
Certamente, as manobras operadas por Silva Lisboa no controle do trabalho indígena aldeado estavam relacionadas ao projeto do Estado de colonização da zona interiorana de Ilhéus, com o objetivo de conectar o litoral sul a Minas Gerais e dinamizar a economia naquela porção da comarca. Projeto este afinado às novas demandas da economia baiana, de perfil preponderantemente agroexportador. Tais planos podiam, no entanto, ser igualmente convenientes aos interesses particulares de Silva Lisboa e de outros agentes coloniais que atuavam em Ilhéus, desejosos de auferir alguma vantagem sobre a nova dinâmica econômica da região.
A esse respeito, observemos que, em paralelo à criação da nova povoação no rio Cachoeira, o ouvidor adquiriu, por meio de compra, um pedaço de terras naquela mesma localidade - segundo ele, para alguém da corte, instalada no Rio de Janeiro. Em 8 de maio de 1814, o tabelião e escrivão João Dias Pereira Guimarães lavrou escritura de uma sorte de terra que Baltasar Lisboa comprou do padre Inácio Luís Gonzaga de Eça, no rio Cachoeira, em Ilhéus:
Saibam quantos este público instrumento de escritura de venda de uma sorte de terras que, no ano de nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e quatorze, aos oito dias do mês de maio do dito ano, nesta vila de São Jorge, Cabeça da comarca dos Ilhéus, na casa de residência do Doutor Desembargador Ouvidor desta Comarca, Balthazar da Silva Lisboa (...). Aí estava de uma parte, como vendedor, Francisco Soares, e da outra, Balthazar da Silva Lisboa (...), e logo pelo dito vendedor Francisco Soares de Araújo foi dito perante as testemunhas adiante nomeadas e abaixo assinadas, que, ele, pelo poder especial que tenha de procuração passada pelo seu irmão, o Reverendo Ignácio Luiz Gonzaga de Eça vendia, como de fato vendido tenha de hoje para todo o sempre, uma sorte de terras sitas no Rio Cachoeira de Itabuna, que possui o dito, ao Senhor Doutor Balthazar da Silva Lisboa, pelo preço e quantia de quatrocentos mil réis, cuja sorte de terra, disse ele, comprador, as comprava para Excelentíssimo Antônio de Araújo de Azevedo, morador na Corte do Rio de Janeiro (...).10
A julgar pelo entusiasmo que Lisboa expressava sobre a potencialidade econômica regional proporcionada pela abertura da estrada Ilhéus-Vitória, possivelmente a situação paradoxal que envolveu a dissolução do Aldeamento dos Índios Gréns e a instalação do novo aldeamento incluía o interesse do ouvidor no beneficiamento das terras que adquiriu. Antônio de Araújo de Azevedo, para quem o ouvidor, em tese, comprou tais terras, se não se tratasse de um homônimo, era ninguém menos que o então ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramar. Situação que tornava viciosas as decisões de Baltasar sob a competência do cargo público que ocupava, na medida em que ele manobrava o papel de destaque do cargo de ouvidor sobre a administração dos índios aldeados em favor próprio.
Retomando a carta de 24 de maio de 1814, em que o ouvidor comunicou a Antônio de Araújo de Azevedo a fundação do aldeamento de Ferradas, notemos que havia um projeto de colonização bem estruturado em marcha. Nesse projeto, a imbricação das funções públicas dos agentes coloniais e dos seus projetos privados saltava à vista. Silva Lisboa salientou que
no mês de Outubro seguinte ficarão igualmente aí estabelecidos os espanhóis, que o Inspetor Felisberto Caldeira Brant de Pontes, por bem nobre patriotismo conduziu à suas custas para Ilhéus, e que desde aquele pouso do Rio Salgado até os Ilhéus se constituirão povoações adequadas a fazer aquela estrada comunicável.11
Era um projeto que envolvia, ao mesmo tempo, a criação de uma povoação indígena aldeada e outra de imigrantes estrangeiros, com alguns quilômetros de distância entre si. Fica bastante evidente o esforço em fazer avançar a fronteira de ocupação não indígena no perímetro da estrada. Tal esforço atendia à nova dinâmica econômica baiana, mas também aos interesses particulares dos agentes coloniais envolvidos naquela empreitada. Tanto isso é verdade que o brigadeiro e então inspetor geral das tropas da Bahia, Felisberto Caldeira Brant Pontes, que desde 1810 incumbia-se dos trabalhos na estrada Ilhéus-Vitória, estava em 1814 introduzindo imigrantes europeus na Bahia, com recursos próprios, para assentá-los no rio Salgado - afluente do rio Cachoeira.
Em abril de 1814, Felisberto Caldeira Brant Pontes compareceu ao tabelionato de Ilhéus levando consigo algumas famílias de espanhóis mais alguns agregados solteiros, ocasião na qual ele firmou um contrato com parte daquele grupo. O objetivo de Brant Pontes era assentar tais famílias de espanhóis nas imediações do rio Salgado, uma zona interiorana do rio Cachoeira até então unicamente habitada pelos indígenas.12 A escritura de contrato entre Brant Pontes e os imigrantes espanhóis foi lavrada pelo tabelião João Dias Pereira Guimarães, como segue:
A favor dos ditos colonos que ele o dito Brigadeiro [ilegível] se obriga a sustentar por um ano a começar do dia dez do corrente, em que se vem ao tabelião, nesta vila, da mesma sorte se obriga a fazer custeios e dar a cada um dos chefes de família uma casa para sua habitação no rio Salgado. Assim como subministrar as ferramentas e sementes necessárias para as plantações do primeiro ano e que a bem disto se obrigava a pedir a sua Alteza Real uma légua de terra a borda da estrada, que ele Brigadeiro tem aberto a sua custa, para cada uma das morigeradas famílias (...), logo os mencionados europeus habitarem por tempo de dez anos o lugar mencionado do rio Salgado, porquanto seu único fim neste contrato [ilegível] concorrente promover a segurança da estrada, sua cultura e futuro engrandecimento da vila dos Ilhéus.13
Os referidos espanhóis pareciam não ter ciência de que haviam viajado para ocupar uma região desabitada por não indígenas, e de que seu trabalho consistiria, justamente, em construir as condições necessárias à entrada de novos colonos. Por isso, mostraram-se apreensivos ao se depararem com os “bosques” de Ilhéus. Insatisfeitos com a realidade que encontraram desde logo, trataram de negociar algumas condições com o contratante, para que pudessem permanecer na localidade. Entre essas condições, os imigrantes solicitaram que Brant Pontes providenciasse a edificação de um “povoado com Igreja”.14

As reivindicações dos espanhóis foram parcialmente atendidas. O número total era de sete famílias, mais dois homens solteiros (agregados). Das famílias imigradas, porém, somente três e um dos homens solteiros quiseram permanecer na área onde o contratante os desejava estabelecer - os nomes dos patriarcas e das matriarcas e também do homem solteiro que aceitaram continuar na região estão apresentados em destaque no quadro acima. Ainda assim, os estrangeiros impuseram como condição a possibilidade de transferência para a povoação da vila, caso não se adaptassem ao “povoado” criado para eles nas matas do Salgado. As outras pessoas, entretanto, solicitaram a Brant Pontes regressarem e trabalharem para ele em suas terras em Salvador.
À época, o inspetor geral das tropas da Bahia era um dos mais bem-sucedidos comerciantes de Salvador. Além disso, desde 1810, Felisberto Caldeira Brant Pontes acumulava o posto de proprietário do mais importante engenho de açúcar de Ilhéus: o Engenho Santana. Propriedade que Brant Pontes transformou na fazenda Santa Maria, “tornando-a uma das mais importantes da Bahia, chegando a possuir três centenas de escravos e a produção anual de dez mil arrobas de açúcar” (RIBEIRO, 2001, p. 49).
Em 1814, portanto, Brant Pontes parecia querer incrementar os seus negócios na promissora vila de Ilhéus, enquanto comandava os trabalhos na estrada Ilhéus-Vitória. O uso do trabalho daqueles estrangeiros pobres não se daria de forma muito diferente do trabalho compulsório indígena praticado na região. Uma vez fixados na localidade, Brant Pontes se comprometia em lhes sustentar, assim como fornecer ferramentas e sementes pelo período de um ano. Já à posse dos lotes de terras solicitados ao governo, eles só teriam direito após dez anos de trabalho e residência na localidade.
Os mundos do trabalho na Ilhéus oitocentista não diferiam das demais regiões do Brasil, onde o trabalho escravizado e o livre dividiam espaço com outras modalidades, tais como trabalho compulsório ou mal remunerado, nas quais os indígenas eram recorrentemente empregados. Patrícia Melo (2021) versou recentemente sobre as experiências comuns de índios e africanos livres no que dizia respeito ao compartilhamento da sua “liberdade precária” no universo laboral da Manaus do século XIX. A Ilhéus desse período também se configurou como espaço da elaboração das relações precárias de trabalho envolvendo os indígenas e outros trabalhadores livres pobres.
A esse respeito, pouco tempo depois que o aldeamento dos gréns em Almada foi extinto, e parte dos indígenas transferida para o novo aldeamento de Ferradas, o holandês Peter Weyll, recém-chegado da Europa, adquiriu parte das terras do antigo aldeamento e fundou nela uma fazenda. Nesta, Weyll investiu em açúcar, café, cacau e no corte de madeira. (WIED-NEUWIED, 1940, p. 330-331). Nos anos 1840, o francês Hipólito Perret (1846, p. 190-194) escreveu algumas matérias sobre uma viagem que empreendeu a Ilhéus, para um jornal de Salvador. Em uma dessas matérias, ficou testemunhada a presença dos indígenas de Ferradas na já bem estabelecida fazenda de Peter Weyll.
Na mesma ocasião, Perret mencionou o uso do trabalho dos índios de Ferradas também na fazenda Esperança, de propriedade da família Lavigne. Ambas as propriedades localizadas em Almada se converteriam em algumas das maiores fazendas de cacau de Ilhéus. Isso se fez, portanto, com o uso do trabalho escravizado e indígena, além da força de trabalho de estrangeiros pobres que se lançavam naquela fronteira de expansão agrícola. Para ilustrar a precariedade do trabalho indígena nessas paragens, tomemos como testemunho a afirmação de Perret (1846, p. 190), que não deixou de salientar que, em Almada, “a cachaça [era] a moeda corrente”.
Como apontamos em seção anterior, entre fins do século XVIII e inícios do XIX, houve uma recuperação da economia, bem como uma diversificação do comércio de exportação na Bahia. Nessa esteira, Ilhéus, pouco a pouco, inseriu-se no comércio agroexportador baiano, atraindo para a região aventureiros e investidores ávidos por participar do comércio regional, especialmente o incipiente comércio do cacau. Nesse processo, além da tentativa de colonização espanhola empreendida por Caldeira Brant, o já citado holandês Peter Weyll iniciou, em 1818, o assentamento de colonos alemães, na localidade denominada Cachoeira de Itabuna, no rio Cachoeira (CAMPOS, 2006, p. 323-324). Tais experiências desnudam um esforço por parte de agentes públicos e particulares no estabelecimento de núcleos coloniais estrangeiros na região. Diferentemente da zona escolhida por Brant Pontes em 1814, a localidade escolhida por Weyll já estava em processo inicial de ocupação fundiária, conforme fica demonstrado nos livros de escrituras de compra e venda de terras de Ilhéus.15
Independentemente de tais experiências terem sido bem-sucedidas (ou não), fica nítida certa insistência em estabelecer imigrantes estrangeiros em Ilhéus no início do XIX. Apesar da posterior opção preferencial pela colonização nacional, em razão da avaliação de que o clima do sul da Bahia favorecia a incidência da febre-amarela entre os estrangeiros, insistiu-se na introdução de imigrantes europeus na Bahia em diferentes momentos daquele século. O motivo de tal insistência fica bem explicitado na fala do presidente da província Antônio da Costa Pinto, em 1861:
Cada colono europeu, inteligente, laborioso e moralizado, que introduzimos na província é além de uma força produtiva em relação à agricultura, um elemento também de civilização para o país, que ainda com algum sacrifício deve aproveitar o concurso de todos esses homens, filhos de uma civilização mais apurada, e, portanto, capazes de ensinar, pelo exemplo, a nossa população do interior, ainda em atraso.16
O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied (1940, p. 326-327), ao visitar Almada (entre 1816 e 1817), concluiu que aquela população mestiçada vivia sem ambição. Todos os moradores tinham à beira-rio armadilhas para capturar peixes, contentavam-se com pouco e não se importavam em melhorar as condições de cultivo da terra. Iguais avaliações Silva Lisboa e Martius fizeram acerca da vila de Ilhéus: pobre e atrasada. A proposta de Costa Pinto de inserir estrangeiros europeus para “civilizar” os habitantes da província pela via do exemplo tinha, portanto, a sua matriz nas experiências realizadas no sul da Bahia, no início do oitocentos.
A política de colonização estrangeira praticada no Brasil no início do XIX não tinha como princípio o discurso e a doutrina da hierarquização racial da segunda metade do século. Apesar disso, como bem salientou Giralda Seyferth (2002, p. 119), “a noção hierárquica de civilização”, empregada para designar os europeus, trazia subjacentemente um demarcador racial, mesmo “na ausência de um discurso explicitamente racista”. Ainda segundo a autora, as primeiras experiências de colônias estrangeiras no Brasil tinham por princípio povoar regiões consideradas vazias e pontos regionais estratégicos. Nesse sentido, as primeiras colônias implantadas no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, nos anos 1820, estavam voltadas a povoar pontos dos “caminhos de cargueiros” que ligavam o sul a São Paulo. De igual maneira, as experiências praticadas no sul da Bahia, entre 1814 e 1818, foram projetadas para povoar pontos da estrada Ilhéus-Vitória.
Dito isso, o esforço e o investimento do inspetor do Exército Caldeira Brant para estabelecer as famílias de colonos espanhóis no rio Salgado não surtiu o retorno esperado. Isso porque, como era previsível, dada a pouca predisposição que mostraram em se assentarem em Salgado, as famílias não permaneceram na localidade. Tal situação ficou testemunhada nos relatos da passagem do príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied por aquela região, poucos anos depois.
Entre o final de 1816 e o início de 1817, no transcurso da sua viagem naturalista, Maximiliano passou por São Pedro de Alcântara e, ao elaborar uma avaliação do que ele chamou de estado de “decadência” da aldeia/vila e da estrada, não deixou de mencionar que,
mais adiante [de Ferradas], a alguns dias de viagem, no ponto em que a nova estrada atinge o “sertão” do Rio Salgado, construiu-se também uma igrejinha onde se celebrava missa, e havia plantações para os viajantes; esse pequeno estabelecimento, porém, caiu em ruínas, o lugar se tornou um deserto, ficando inúteis todas essas despesas, pois a estrada não foi mais utilizada e, dentro de pouco tempo, não se poderá mais reconhece-la (WIED-NEUWIED, 1940, p. 342, grifos da autora).
Os espanhóis, de fato, pareciam não se ter adaptado aos “bosques” de Ilhéus, pois a permanência no lugar não durou mais de dois anos, intervalo de tempo entre a chegada dos colonos e o registro do abandono do lugar, durante a passagem de Maximiliano pela região. Já o aldeamento e a estrada não cairiam em decadência, como previu o viajante. Para tanto, Baltasar destinara especial atenção àquele estabelecimento, como fica manifestado na correspondência que ele trocara com o frade capuchinho missionário de São Pedro de Alcântara, mesmo já tendo sido destituído do posto de ouvidor da comarca de Ilhéus - cargo público que ele ocupou concomitantemente ao de juiz conservador das matas da comarca, de 1797 a 1818.17
O missionário e diretor de São Pedro de Alcântara ou Ferradas, o frade italiano Ludovico de Livorno da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, havia sido designado para São Pedro de Alcântara por volta de 1818. Essa informação ficou explicitada em documento de Ambrósio de Rocca, prefeito do Hospício da Piedade (convento dos capuchinhos em Salvador), datado de 1824, no qual o superior de Ludovico salientou que ele estava “trabalhando há já 6 anos” em São Pedro de Alcântara.18 Baltasar da Silva Lisboa, por seu turno, continuou acompanhando de perto o estabelecimento que ele havia criado, como demonstra a correspondência trocada entre ele e Ludovico após a chegada do capuchinho à localidade.
Foi o próprio Baltasar quem publicou algumas das cartas de Ludovico endereçadas a ele, no sexto volume da obra que o antigo ouvidor produziu, intitulada Annaes do Rio de Janeiro (1835). O universo das cartas está reduzido ao total de cinco exemplares, que datam de 1819 a 1831. Certamente, elas foram selecionadas, a fim de não expor questões de foro estritamente privado. Ainda assim, as cartas evidenciam o particular interesse que Baltasar continuou dedicando a São Pedro de Alcântara, mesmo afastado das funções públicas que havia ocupado em Ilhéus. Para além de desnudarem a comunicação entre o antigo ouvidor e Ludovico acerca de São Pedro, essas missivas possibilitam nuançar questões da vida do aldeamento que as fontes administrativas permitem alcançar muito pouco, a exemplo das relações travadas e dos limites estabelecidos na convivência cotidiana entre o missionário e os indígenas. Desnuda, ainda, a vulnerabilidade dos camacãs de recente contato, no aldeamento, expostos às doenças; como também a reação deles em face de tal realidade.
Geralmente, Ludovico iniciava tais cartas externando a sua honra pelo recebimento da missiva do “venerado amigo”, a quem ele atendia como criado fiel. Nessa condição, respondia às informações a ele solicitadas sobre o andamento de São Pedro de Alcântara. O pequeno conjunto de cartas explicita que era Baltasar quem escrevia ao missionário, solicitando deste informações sobre o estabelecimento - o que nos faz supor que o interesse em manter a comunicação fosse maior por parte do seu remetente, Silva Lisboa.
Em 12 de agosto de 1819, por exemplo, o missionário escreveu ao antigo ouvidor o seguinte: “Em correlação das informações que V. S. me pede, digo-lhe primeiro, que esta Vila, a qual custou tantos suores a V. S. e perigo da sua vida, está já permanentemente estabelecida” (citado por LISBOA, 1835, p. 207-209). Essa informação contrariava as previsões do príncipe Maximiliano sobre a sua inevitável decadência. A estabilidade a que Ludovico se referia dizia respeito ao aspecto agrícola, pois, além da mandioca e de outros legumes e frutas já cultivados, ele certificava a Baltasar que São Pedro de Alcântara estava indo bem no cultivo de café e algodão.
Nas décadas seguintes, o aldeamento estaria totalmente inserido na nova dinâmica da econômica regional. Em início dos anos 1850, o presidente Maurício Wanderley destacou que São Pedro de Alcântara era o mais importante aldeamento da província e que na localidade os camacãs estavam cultivando “mais de vinte mil pés de café e vinte mil pés de cacau”.19
Do ponto de vista demográfico, contudo, as notícias eram menos animadoras. Ao contrário dos gréns, que estavam bem adaptados à localidade e gozavam de boa saúde, os camacãs recém-aldeados adoeciam e morriam aos montes. O frade não deixa claras quais eram as causas das mortes, mas a febre-amarela era bastante incidente naquela zona de Mata Atlântica à época. Entre o último “natal e páscoa morreram quarenta e quatro” (citado por LISBOA, 1835, p. 208) camacãs, escreveu Ludovico a Baltasar. Situação que, segundo ele, fazia com que os indígenas evadissem da localidade.
No ano seguinte, o frade informou a Baltasar ter conseguido vencer “os falsos sentimentos” dos camacãs de que eles haviam sido “convidados” a São Pedro para serem cativos e sucumbirem a doenças (citado por LISBOA, 1835, p. 210). Nesse ponto da fala de Ludovico, aparece uma das nuances do uso do trabalho indígena em voga, isso é, embora fosse proibida, a escravização indígena ainda era uma realidade no sul da Bahia. Realidade esta aparentemente duradoura, como mostra o testemunho do presidente da província da Bahia, em relatório de 1869. Na ocasião, o presidente barão de São Lourenço sublinhou que, informado pelo juiz municipal acerca do aprisionamento de um grupo indígena no termo da vila de Ilhéus, ele alertou o juiz para a necessidade de instituir a curadoria sobre os índios adultos e a tutela sobre a criança que fazia parte daquele grupo, a fim de que eles “não fossem reduzidos a uma servidão ilegal, nem maltratados”.20
Além da possibilidade de escravização, os aldeados de Ferradas eram empregados nas propriedades dos colonos, muitas vezes, em troca de roupas ou cachaça. Logo, compartilhavam com os escravizados as relações precárias de trabalho nas fazendas da região. Aqui, abro um parêntese para tecer algumas considerações sobre a escravização africana na lavoura do cacau, já que tratamos do contexto de emergência da lavoura que converteria o sul da Bahia em um dos mais importantes circuitos de exportação de tal fruto do mundo.
Em inícios do século XX, quando o cacau já era o produto de exportação mais importante da Bahia, uma elite de “novos ricos” construiu uma narrativa que lhes diferenciava da antiga aristocracia ilheense, fundada no discurso de que a lavoura do cacau não havia contado com mão de obra africana escravizada, ao contrário, a fortuna dos “novos ricos” havia sido construída com o suor do seu próprio trabalho. Mary Mahony (2007) demonstrou, por meio de adensada pesquisa, as evidências e a importância do trabalho africano escravizado na lavoura do cacau em Ilhéus durante o século XIX. Quando a lavoura do cacau foi implantada, a região se caracterizava por um contínuo de médias e pequenas propriedades. A presença dos grandes latifúndios não era uma realidade marcante na formação da cacauicultura. Essas propriedades menores detinham poucos escravizados, o que não quer dizer, contudo, que eles não existissem.
Mahony (2001, p. 99-100) analisou os registros de batismo para mensurar a população escravizada de Ilhéus na primeira metade do oitocentos e constatou que aproximadamente uma a cada quatro pessoas era escravizada. Em 1840, o total aproximado era de 700 escravos. A autora salienta, porém, que tais dados coligidos dos registros de batismo não correspondiam à realidade, na medida em que muitos escravizados chegavam a Ilhéus batizados; enquanto outros, nunca o foram por seus senhores. De todo modo, a lavoura do cacau permitiu que Ilhéus ascendesse economicamente sem aumentar substancialmente a sua população escravizada. Isso porque o cacau demandava investimento, infraestrutura e quantitativo de mão de obra em escala muito inferior ao que demandava o açúcar, principal produto de exportação da Bahia até o final da primeira metade do XIX, ou o café do vale do Paraíba, no Rio de Janeiro (MAHONY, 2001, p. 106).
Fechado esse parêntese, retornemos à carta que Ludovico remeteu a Baltasar em 1820. Nela, o frade evidenciou que a fixação dos camacãs ao espaço colonial não se restringia à sede do aldeamento, pois alguns indígenas viviam mais ou menos independentes da autoridade do missionário, em localidade escolhida por eles. Ludovico escreveu que a vila era composta pelos “índios povoadores de Almada”, num total de “treze famílias de boa conduta”, bem como camacãs “quase civilizados” (citado por LISBOA, 1835, p. 209-211). Entretanto, outro grupo havia escolhido aldear-se a alguns quilômetros da sede de Ferradas no intuito de se proteger das doenças que frequentemente acometiam os aldeados.
Notadamente, o grupo Camacã que se mantinha longe de São Pedro a fim de evitar contrair doenças era composto por indígenas de recente contato. Eles escolheram manter-se afastados dos índios de Almada e dos camacãs “quase civilizados”. Exatos nove anos depois, em outubro de 1829, o frade ressaltou que “os índios medrosos” se encontravam assentados fora do perímetro do aldeamento, “porém, todos mansos, e em recíproca correspondência [com ele], e em termos de reuni-los facilmente, quando fosse tempo”, e acrescentou:
Atualmente, me acho aqui com noventa e seis indivíduos, e cinquenta na vizinha aldeia, esperando a resulta das medidas que o Governo tem tomado acerca do novo abrimento da estrada, e das colônias estrangeiras que hão de vir povoá-la; lisonjeando-me que por este modo poderá este lugar tomar tom mais altivo de povoação, ou de vila (citado por LISBOA, 1835, p. 214-217).
A considerar que as duas aldeias eram próximas o suficiente para que Ludovico pudesse reunir todos os aldeados em momentos oportunos, pode ser que os camacãs estivessem instalados no rio Salgado, distante alguns quilômetros de Ferradas. Inclusive, aproveitando a estrutura pré-existente e outrora utilizada pelos colonos espanhóis, a exemplo de “uma igreja” - conforme notou Habsburg (2010) - para que o frade rezasse as missas no estabelecimento, que funcionava como uma espécie de extensão de São Pedro de Alcântara. Possivelmente, o estabelecimento indígena do rio Salgado se converteu no aldeamento de Barra do Salgado. Este aparece na documentação administrativa que trata dos aldeamentos da região na segunda metade do XIX.
Dito isso, algumas questões salientes nos excertos acima expostos merecem destaque. O primeiro ponto é o esforço de Baltasar, e continuado por Ludovico, de transformar São Pedro de Alcântara em um centro de povoação bem-sucedido. Não por acaso, Ludovico se referiu aos gréns de Almada como “índios povoadores”, pelo papel desde o princípio estabelecido para aquele aldeamento (vila/povoação), que consistia em promover o povoamento na zona interiorana do rio Cachoeira.
A segunda questão diz respeito ao papel estratégico de São Pedro de Alcântara, tanto para pacificar a região da ação dos indígenas não aldeados, quanto pela oferta de mão de obra aldeada ao trabalho de abertura da estrada. Incumbência que, a partir da presença dos capuchinhos nos aldeamentos localizados entre Ilhéus e Vitória, ficou quase exclusivamente a cargo dos frades que os dirigiram. De fato, foi a mão de obra dos aldeados, especialmente dos aldeados de São Pedro de Alcântara, a força de trabalho motriz para a abertura e a conservação da estrada Ilhéus-Vitória ao longo do século XIX (SILVA, 2018).
Uma terceira questão que sobressai nos fragmentos dessas missivas é a adaptação indigenista que os agentes coloniais eram obrigados a elaborar, a partir das situações específicas emergidas na interação destes com os povos indígenas na região. Portanto, o caso dos camacãs que impuseram o distanciamento do núcleo administrativo do aldeamento como condição a aldear-se é exemplar de que a territorialização não é um processo histórico de mão única, imposto à revelia das escolhas - ou relativas escolhas - dos povos originários, “pois a sua atualização pelos indígenas conduz justamente ao contrário” (OLIVEIRA, 2016, p. 210).
Em 1831, Ludovico escreveu a Baltasar dando-lhe as notícias mais promissoras possíveis sobre aquele “seu estabelecimento” e a estrada Ilhéus-Vitória. Destacou o quanto a estrada estava avançada, a ponto de possibilitar o transporte de boiadas dos sertões para Ilhéus e a circulação de negociantes com os mais diversos tipos de produtos. Na localidade, os viajantes dispunham de uma hospedaria para pousar no decurso das exaustivas viagens, além de poder contar com o abastecimento de alimentos. Também foi providenciado um pasto à beira do rio Cachoeira para o descanso e a alimentação dos animais (citado por LISBOA, 1835, p. 217-219). Desse modo, São Pedro de Alcântara cumpria, com êxito, um dos papéis para o qual foi criado, que consistia em manter a regularidade da utilização da estrada, como caminho de ligação entre o interior e o litoral voltado ao trânsito dos tropeiros e boiadeiros, bem como em proporcionar as condições para o posterior estabelecimento de colonos nessa região.
A ideia de instalar as mencionadas colônias estrangeiras na região mais interiorana da mata atlântica não foi efetivada, haja vista o insucesso da tentativa de Caldeira Brant com os imigrantes espanhóis em 1814, mas demonstra que o projeto da colonização estrangeira permaneceu ocupando os esforços das autoridades baianas.21 Um dos percalços à realização de tal empreendimento posteriormente apontados pelas autoridades provinciais consistia, exatamente, na exposição dos estrangeiros à febre amarela incidente na região sul. Para o aperfeiçoamento do sucesso de São Pedro de Alcântara, entretanto, Ludovico esperava contar com o prestígio gozado por Baltasar na capital: “abrindo o caminho para eu poder ter na Bahia [Salvador] o conhecimento de alguma pessoa de autoridade, a quem possa livremente dirigir-me” (citado por LISBOA, 1835, p. 119). O sucesso do aldeamento e da estrada fez notar que os esforços dos obstinados interlocutores não foram em vão.
A estrada e o aldeamento São Pedro de Alcântara testemunharam e impulsionaram o avanço da fronteira de ocupação, agricultura e pecuária na região. Também foram vitais à dinamização do comércio regional. Foi graças ao aldeamento que parte da região sul se tornou inicialmente acessível à colonização e à implantação da lavoura do cacau. Processo no qual os gréns e camacãs participaram direta e indiretamente, fosse plantando cacau no próprio aldeamento, ou trabalhando nas propriedades dos fazendeiros locais. Também a estrada Ilhéus-Vitória se impôs como um caminho de fundamental importância à circulação de passageiros, mascates, vaqueiros e tropeiros entre o norte de Minas Gerais e o porto de Ilhéus ao longo do século XIX.
O ano de 1814 marcou a elaboração de um conjunto de ações públicas e privadas, conexas entre si, envolvendo os propósitos de colonizar a zona interiorana do rio Cachoeira, na vila de Ilhéus, e de dinamizar o comércio entre o porto de Ilhéus e o interior de Minas Gerais. Ao longo desse processo, a pacificação e o controle do trabalho indígena se convertiam em elementos essenciais, a fim de cumprir os objetivos de viabilizar a introdução de colonos na região e de dispor de mão de obra para a estrada Ilhéus-Vitória e a agricultura. Vale salientar que o impulso econômico experimentado em Ilhéus nesse momento se situava no contexto do melhoramento do comércio brasileiro após a abertura dos portos, bem como de recuperação da economia açucareira e de diversificação da produção de exportação no comércio da Bahia.
Também nesse contexto, os objetivos públicos voltados a Ilhéus convergiam com os interesses privados tanto de proprietários da comarca (como era o caso da família Sá Bittencourt), quanto de agentes coloniais que integravam o aparelho de Estado. Destacam-se, nesse sentido, as ações públicas - com flagrantes interesses pessoais - do inspetor do exército da Bahia, Felisberto Caldeira Brant Pontes, e as do ouvidor e juiz conservador das matas da comarca de Ilhéus, Baltasar da Silva Lisboa. Este último utilizou-se das prerrogativas do seu cargo sobre a administração dos bens dos indígenas aldeados e extinguiu o Aldeamento dos Índios Gréns, criando o Aldeamento São Pedro de Alcântara. Direta ou indiretamente, as decisões de Baltasar beneficiaram as terras que o ouvidor adquiriu na localidade, na mesma ocasião em que concluiu os trâmites de deslocamento dos gréns para o novo estabelecimento colonial.
Dito de outro modo, o sucesso da estrada Ilhéus-Vitória e o relativo controle sobre os indígenas na região sul significavam um passo largo à consolidação do projeto de dinamização econômica daquela parcela da comarca. Processo no qual os interesses do governo se entrelaçavam aos interesses dos agentes públicos que, a serviço do Estado, tiravam proveito dos postos que ocupavam em favor próprio. O trabalho indígena, nesse processo, era fulcral.
Agradeço aos avaliadores deste artigo pelas contribuições dadas ao aperfeiçoamento do texto e a Marcela de Oliveira Santos Silva, pela revisão gentil e cuidadosa. Parte da documentação aqui utilizada corresponde a uma pesquisa de doutorado que contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).


