Resenhas
Errância e opacidade em Poética da Relação
Wandering and Opacity in Poetics of Relation
Errância e opacidade em Poética da Relação
Varia Historia, vol. 38, núm. 78, pp. 1013-1020, 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais
| GLISSANT Édouard. Poética da Relação. 2021. Rio de Janeiro. Bazar do tempo |
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Recepção: 19 Agosto 2022
Aprovação: 23 Setembro 2022
O escritor, poeta e filósofo martinicano Édouard Glissant fez seus estudos na Sorbonne e no Musée de l’Homme, ambos em Paris, tendo rápida consagração na França e na Europa, entre os anos de 1940 e 1960. Escreveu para a revista literária francesa Les lettres nouvelles, fazendo parte, também, de seu comitê diretor a partir de 1956, e colaborou regularmente para a Présence africaine. Em 1958, recebeu o prêmio Renaudot por seu primeiro romance, La lézarde (GLISSANT, 1958). Como outros intelectuais franceses e antilhanos, teve uma atuação constante em favor das lutas de descolonização e da autonomia dos povos. Entre 1982 e 1988, foi diretor de redação do Correio da Unesco, veículo oficial dessa instituição. Em 2011, ano de sua morte, a revista publicou um texto de Ernest Pépin (2011, p. 50-51) em sua homenagem, que afirmava que a obra do escritor contribuíra intensamente para forjar a noção de “diversidade cultural” defendida pela organização.
Mesmo que os estudos de Glissant abordem temas concernentes a experiências comuns dos países do Sul Global, sua recepção ainda é lenta no Brasil – quadro que vem mudando. Até a publicação de Poética da Relação, havia apenas três traduções brasileiras de seu trabalho: o romance O quarto século, traduzido por Cleone Augusto Rodrigues e lançado em 1986 pela Editora Guanabara, do Rio de Janeiro; os ensaios reunidos em Introdução a uma poética da diversidade, de tradução da professora Enilce do Carmo Albergaria Rocha, do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora, publicado em 2005 pela Editora UFJF, e O pensamento do tremor, publicado pela mesma editora, em 2014, desta vez com tradução conjunta de Enilce Albergaria e da também professora Lucy Magalhães.1
Ao longo de sua trajetória, Glissant desenvolveu conceitos como “pensamento arquipelágico”, “identidade-rizoma”, “Relação”,2 “crioulização”, entre outros. Inicialmente lidos na chave do multiculturalismo (considerando, por exemplo, a citação de Ernest Pépin, acima), estes conceitos têm sido retomados nas últimas décadas (de modo mais preciso, a meu ver), em sua aproximação com uma filosofia da diferença, nos moldes de Derrida e Deleuze – ambos amigos próximos do escritor e com quem ele traçou diálogos constantes. Ainda está por ser feita uma análise sistemática da fortuna crítica de Glissant nas Américas. O que pude perceber, ao longo dos últimos anos de leitura de sua obra e de seus comentadores, foi uma ênfase dos estudiosos nas ideias de “identidade” e “diversidade” até os primeiros anos do século XXI e, mais atualmente, no lastro dos debates decoloniais, uma concentração na ideia de “Relação” e nos questionamentos do autor concernentes à ontologia ocidental. Além de Derrida, Deleuze, Sartre, Leiris,3 entre outros, a obra de Glissant dialoga (ora aproximando-se, ora distanciando-se) com nomes importantes da intelectualidade caribenha, como Aimé Césaire (e outros teóricos da Négritude), e Frantz Fanon.
A própria rede conceitual de Glissant foi formulada a partir da história caribenha. As metáforas e conceitos que compõem sua poética, e que visam a incitar a imaginação de um mundo futuro, têm como fundamento a paisagem local, os traumas históricos do tráfico e da escravização de pessoas e a reelaboração desses traumas ao longo do tempo. Essas linhas mestras de sua obra aparecem no livro ora analisado. Glissant sempre reivindicou o caráter utópico de seu trabalho – não uma utopia como telos, mas como imaginação em funcionamento, palavra aberta, imprevisibilidade: uma dialética sem síntese. Em suas palavras: “A utopia para nós, hoje, é acumular, sem nenhuma exceção, todas as belezas, todas as tristezas e todos os valores do mundo. A utopia será um sentido agudo de uma poética da Relação, enquanto, no sentido tradicional, a utopia é uma poética da excelência e da normalidade” (GLISSANT, 2010, p. 75-76). Sendo assim, as propostas de Glissant são fundamentais para pensarmos tanto nos impasses atuais da disciplina histórica, quanto em nossos problemas coletivos, resultantes da nova temporalidade neoliberal. Elas incitam à ampliação de nossa imaginação histórica, urgente neste momento de crise tanto da disciplina – que, aos poucos, é alijada de seus meios de reprodução e de seus espaços de autonomia (ÁVILA, 2021) – quanto de uma sociedade em que, muitas vezes, imaginar um futuro diferente nos parece impossível.
Poética da Relação (Poétique III) faz parte de um conjunto de ensaios que compõem a coleção intitulada Poética, que se configura como um “programa denso e sem retorno”, nos termos de Ana Kiffer e Edimilson de Almeida Pereira (2021, p. 10). Foi publicado originalmente em 1990, depois de Soleil de la conscience (Poétique I), de 1956, e de L’intention poétique (Poétique II), de 1969. É, também, posterior ao Discours antillais, de 1981. Poética da Relação foi seguido de Traité du tout-monde (Poétique IV) (GLISSANT, 1997) e La cohée du Lamentin (Poétique V) (GLISSANT, 2005b).
O livro foi dividido em 5 partes: I – Aproximações: Uma abordagem, mil passagens; II – Elementos: O elementar se recompõe absolutamente; III – Caminhos: Em voz alta, pra marcar o distanciamento; IV – Teorias: A teoria é ausência, obscura e propícia; V – Poética: O sendo, múltiplo infinito em sua substância. Cada uma contém quatro pequenos ensaios que têm relação entre si, mas não de forma totalmente evidente. Nesses textos, Glissant aborda temas e conceitos que serão recorrentes em sua obra. Destaco: a errância, a opacidade, o barroco, o multilinguismo (não como acúmulo de línguas faladas por alguém, mas como presença concomitante de línguas, nenhuma sendo “própria”)4, a crioulização, o caos-mundo, as identidades “raiz” e “rizoma” e, claro, a “Relação”. Outras noções importantes, como “pensamento arquipelágico” (em contraposição ao “pensamento continental”) e “mundialidade” (em contraposição à “mundialização” conquistadora), serão desenvolvidas em seus textos posteriores.
O primeiro ensaio do livro – que, de forma poética, apresenta um caráter programático – já remonta à experiência caribenha, a partir da qual, como dito, Glissant forjou suas metáforas e conceitos: não para rememorar o trauma, mas para projetar um futuro em Relação. Assim, o texto aborda, justamente, a experiência do deslocamento brutal que deu origem ao Caribe atual. Trata-se de uma história que começa na imensidão do mar e é marcada pelo imprevisível característico de uma travessia oceânica sob condições violentas: da ressignificação desse medo e do desconhecido fundadores resultarão novas formas de conhecimento, de estar e agir no mundo. Em A barca aberta,5 portanto, o autor afirma:
Terra do além tornada terra em si. E aquela vela insuspeita (...) é irrigada pelo vento branco do abismo. E assim o desconhecido-absoluto, que era a projeção do abismo (...) no fim tornou-se conhecimento. Não somente conhecimento particular, apetite, sofrimento e gozo de um povo particular, mas o conhecimento do Todo, que aumenta com a frequentação do abismo e que no Todo libera o saber da Relação (GLISSANT, 2021, p. 14-15).
O barco que fundou o Caribe, em meio à dor, à tortura e ao abismo, deve ser retomado e relançado como barco aberto, a ser navegado em conjunto:
Para além de seu precipício, nós jogamos sobre o desconhecido. Tomamos o partido desse jogo do mundo, o das Índias renovadas, o qual interpelamos, o dessa Relação de tempestades e de calmarias profundas onde honramos nossas barcas. (...) Mesmo (...) se concebemos o sobressalto das políticas a serem concertadas, o horror de superar as fomes e as ignorâncias (...) está, à frente da proa doravante comum, esse rumor ainda (...). Nós nos conhecemos na multidão, no desconhecido que não aterroriza. Nós gritamos o grito da poesia. Nossas barcas estão abertas, nós as navegamos em nome de todos (GLISSANT, 2021, p. 29-30).
O Caribe torna-se, assim, ponto de partida e alegoria para um mundo possível. Nos termos de Glissant (2021, p. 59), enquanto o Mediterrâneo, cercado de terras, é um mar que concentra, o Caribe é um mar que difrata: “a realidade arquipelágica, no Caribe ou no Pacífico, ilustra naturalmente o pensamento da Relação, sem que se deva deduzir qualquer vantagem desta situação”.
O Caribe é, então, abertura ao outro e errância. A barca aberta, assim como a plantação (outro tema importante em sua obra) deixam um lastro, um traço – que é, também, uma forma de pensamento. O pensamento do traço (ou da errância) é dado à opacidade.6 É um pensamento que deixa brecha à adivinhação e à imaginação, finalmente. O pensamento do traço quer imaginar a totalidade, mas não é conquistador, não visa a tudo compreender, nem pretende reduzir o Outro ao Mesmo, o desconhecido ao conhecido – ao contrário da tradição ocidental. É um pensamento do acúmulo de todas as coisas do mundo. Esse pensamento, por sua vez, é afeito a uma subjetividade também aberta. Nesse sentido, as refexões de Glissant propõem um questionamento da ontologia do Ocidente, uma substituição do “Ser” (l’Être) – proprietário de si mesmo, orgulhoso e dominador – pelo “sendo” (l’é t a n t ), o ser em Relação. Desse modo, em Glissant, e no livro em questão, não se trata de uma defesa das identidades, ou de uma pluralidade de “identidades-raiz”, mas da indução à imaginação de uma identidade rizomática (ou submarina) constantemente afetada pelo de-fora (e o afetando), ainda que sem se dissolver num amálgama indefinido: trata-se sempre de soma, nunca de dissolução. Os ensaios contidos em Poética da Relação são perpassados por todas essas noções, narrando-as (já que a Relação é, ainda, aquilo que é relatado, transmitido). Porém, a leitura de seus textos nunca nos esclarece completamente. Não por acaso, Glissant muitas vezes foi considerado um autor de difícil compreensão. Seus escritos não têm o objetivo de deixar tudo transparente (termo muito repetido ao longo de suas páginas e associado ao desejo conquistador da tradição ocidental). Usando uma metáfora de Georges Bataille,7 pode-se dizer que ele escreveu como quem abre “canteiros de obra”, reivindicando uma opacidade e uma errância que forçariam a imaginação e possibilitariam a abertura para o que não é si-mesmo. O direito à opacidade (de si e do outro) é performatizado na linguagem, assim como a própria Relação. Nesse sentido, o trabalho de tradução e organização desta edição foi feliz, tanto por trazer Glissant e dar impulso a uma maior circulação de autores e autoras caribenhos no Brasil (lacuna que persiste), como por não descaracterizar a forma descontínua dos ensaios, cujos ecos seguimos ouvindo e que sempre nos terão o que dizer.
Referências
ÁVILA, Arthur Lima de. (Re)Politizando a teoria da história em tempos de exceção: Hayden White e a crítica do presente. ArtCultura, v. 20, n. 37, p. 21-35, jul./dez. 2018.
BATAILLE, Georges. Téorie de la religion. Paris: Gallimard, 1973.
DERRIDA, Jacques. Le monolinguisme de l’autre: Ou la prothèse d’origine. Paris: Galilée, 1996.
GLISSANT, Édouard. Soleil de la conscience. Paris: Seuil, 1956.
GLISSANT, Édouard. La Lézarde. Paris: Seuil, 1958.
GLISSANT, Édouard. L’intention poétique. Paris: Seuil, 1969.
GLISSANT, Édouard. Le discours antillais. Paris: Seuil, 1981.
GLISSANT, Édouard. O quarto século. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
GLISSANT, Édouard. Poétique de la relation. Paris: Gallimard, 1990.
GLISSANT, Édouard. Traité du tout-monde. Paris: Gallimard, 1997.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005a.
GLISSANT, Édouard. La coheé du Lamentin. Paris: Gallimard, 2005b.
GLISSANT, Édouard. Philosophie de la relation: Poésie en étendue. Paris: Gallimard, 2009.
GLISSANT, Édouard. L’Imaginaire des langues: Entretiens avec Lise Gauvin (1991-2009). Paris: Gallimard, 2010.
GLISSANT, Édouard. O Pensamento do tremor: La coheé du Lamentin. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2014.
KIFFER, Ana; PEREIRA, Edimilson de Almeida. Prefácio: Édouard Glissant e o mar sem margens do pensamento. In: GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021, p. 9-22.
MORAES, Eliane Robert. O jardim secreto: Notas sobre Bataille e Foucault. Tempo Social, v. 7, n.1-2, p. 21-29, out. 1995.
PÉPIN, Ernest. Homenagem a Édouard Glissant: Pensar o Tout-monde. O Correio da Unesco, p. 50-51, abr./jun. 2011.
THEOPHILO, Gabriela Mitidieri. Uma poética da relação: A conversa infinita entre Édouard Glissant e Michel Leiris. História da Historiografia, v. 11, n. 27, p. 118-141, maio/ago. 2018.
Notas