Editorial
Os novos tempos das revistas
New Times for Academic Journals
Os últimos dois anos à frente de Varia Historia me fizeram pensar intensamente sobre as complexas temporalidades das revistas. De definição fugidia, situadas em um meio caminho incerto entre a efemeridade intrínseca aos jornais e a aspiração à duração dos livros ( LEYMARIE, 2002, p. 11), elas vêm funcionando – ao menos desde que algumas publicações precursoras circularam em meados do século XVII 1 – como suportes centrais de debates não apenas eruditos, mas também políticos e artísticos. No âmbito das ciências, esse tipo de publicação seriada se consolida ao longo do século XIX como “um lugar estratégico, ponto de encontro entre acadêmicos tanto quanto meio para convencer, e sobretudo ampliar, um leitorado em um contexto institucional ainda instável” 2 ( TESNIÈRE, 2021, pp. 11-12). Justamente por não se revestirem da solenidade do volume monográfico, mas tampouco estarem fadadas a se desfazer no ar com tanta facilidade quanto as frágeis páginas dos diários, as publicações de periodicidade mais espaçada e paginação (ao menos relativamente) robusta serviram incansáveis vezes como instâncias de experimentação, lugares onde era possível arriscar ideias, espaços de construção de projetos coletivos, convites para o debate e – por que não? – para a polêmica.
No século XX, a velocidade na publicação seria crescentemente vista como uma marca da seriedade e da relevância desses impressos, como observou Raul Lanari ( 2018) ao analisar a Revista do SPHAN, peça crucial das políticas voltadas ao patrimônio durante a ditadura do Estado Novo. A preocupação com a pontualidade levou a publicação do SPHAN a momentos paradoxais de “falsificação da temporalidade”, em construções de “pontualidades artificiais” quando fatores os mais diversos atrasavam a fabricação do periódico – situações que também observei em minhas pesquisas sobre revistas jurídicas editadas nas mesmas décadas de 1930 e 1940, particularmente naquelas de caráter institucional, sem interesse comercial direto, que não raro traziam marcas gráficas que denunciavam a publicação efetiva em datas posteriores àquela que constava da capa.
Mesmo com a dificuldade em cumprir cronogramas e a instabilidade dos formatos, particularmente notáveis em revistas culturais associadas a vanguardas artísticas, um traço se manteve relativamente inabalado até as primeiras décadas do século XXI: as revistas em regra se apresentavam ao público com certa unidade de capa a capa, como um todo relativamente coeso, o produto de determinadas orientações editoriais. Transformados que foram de uma ponta à outra pelos meios digitais, os periódicos acadêmicos tendem hoje a funcionar menos como expressões de projetos intelectuais e mais como instâncias de chancela a artigos tomados como unidades individuais.
Em 2024, atendendo às demandas do SciELO e procurando acompanhar os novos ritmos da comunicação científica, Varia Historia passará ao formato de publicação contínua, em volume anual único. Será um momento de profunda experimentação, cujos resultados não podemos prever, mas esperamos que eles incluam a dinamização da comunicação com leitoras e leitores e o fomento de diálogos entre pares. Além de um novo formato para os dossiês, pensado para atender a um ritmo de publicação que não pressupõe a apresentação ao público de um grupo fechado de trabalhos, editaremos três, e não dois, conjuntos de artigos voltados a temáticas específicas. 3
Refletindo sobre a longeva relação entre intelectuais e revistas, Beatriz Sarlo ( 1992, p. 10) afirmou: “Surgida da conjuntura, a sintaxe de uma revista informa, de um modo que jamais poderiam fazê-lo seus textos considerados individualmente, sobre a problemática que definiu aquele presente” 4. No atual cenário de encurtamento dos lapsos temporais entre a pesquisa e sua comunicação pública ( ARAUJO, 2021, p. 7) e de artigos que cada vez mais ganham vidas próprias, fica em aberto o questionamento sobre em que medida as revistas poderão seguir desempenhando – para nossas disputas cotidianas e para historiadoras e historiadores do futuro – suas importantes funções de conjunto, seu caráter de construção compartilhada.
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Pela primeira vez em suas quase quatro décadas de existência, Varia Historia vem a público com todos os artigos editados nos idiomas em que foram originalmente escritos (português e espanhol) e em traduções ao inglês 5. Sinal dos tempos, certamente: no momento em que a então Revista do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais foi lançada, nos anos 1980, o inglês ainda não havia alcançado um estatuto tão inconteste de lingua franca acadêmica. Marca, também, da sólida internacionalização que alcançamos e consolidamos ao longo dos últimos anos. Talvez seja interessante lembrar que a primeira publicação em língua estrangeira em Varia Historia somente ocorreria no número 19, já na virada do século XX ao XXI, quando a revista se aproximava de uma década e meia em circulação 6. Contrariando narrativas ainda bastante arraigadas sobre a ignorância recíproca entre o Brasil e a América Hispânica, tratou-se de um trabalho de um pesquisador vinculado à Universidad Nacional de Rosario ( BARRIERA, 1998) – uma possível inspiração para vias de trânsito transfronteiriço ainda por aprofundar, inclusive pelo potencial (frequentemente subvalorizado no Brasil) do espanhol como idioma internacional.
Também em uma perspectiva historiográfica que não se restringe às fronteiras nacionais, as efemérides que se aproximam dos sessenta anos do golpe de 1964, do quinquagésimo aniversário da Revolução dos Cravos e dos quarenta anos das Diretas Já constituem parte central das motivações para o dossiê Democracias, ditaduras e transições: Brasil e Portugal em perspectivas comparadas, organizado por Francisco Palomanes Martinho (Universidade de São Paulo) e António Costa Pinto (Universidade de Lisboa). Na apresentação, Martinho e Pinto ressaltam a importância dos momentos de transição política na reconfiguração das relações entre as diversas margens do Atlântico. Os organizadores reivindicam, ao mesmo tempo, a pertinência do conceito de cultura política e da atenção ao acontecimento no âmbito da história. Os seis artigos que integram o dossiê combinam olhares comparativos (e, ainda que de maneira mais pontual, também transfronteiriços) para as experiências portuguesa e brasileira com estudos centrados em um ou outro desses casos, compondo um panorama abrangente e esclarecedor das vidas ao menos formalmente democráticas dos dois países ao longo das últimas décadas. Um fio transversal a se ressaltar é a persistência como forças políticas vivas das disputas de memória em torno das experiências ditatoriais.
Entre os trabalhos livres, também prepondera o interesse pela política (tão golpeada no âmbito daquela que certamente foi a principal revista acadêmica da área de história ao longo do século XX, associada que foi pela tradição dos Annales a uma curta duração vista como enganosa), quase sempre pensada em suas interfaces com a cultura. Desde os forais do Portugal Medieval até os tortuosos percursos dos serviços de inteligência nos Estados Unidos da Guerra Fria, passando pela recepção da obra do filósofo alemão Wilhelm Dilthey na França do início do século XX e pela vida transatlântica de um pintor forçado ao exílio pela Guerra Civil Espanhola, o conjunto de artigos nos dá mostras da importância de seguir tensionando determinadas concepções que acabam por se consolidar como espécies de sensos comuns historiográficos.
O número se encerra com uma resenha que, embora não tenha sido pensada em relação com o dossiê, dialoga fortemente com as preocupações nele expressas, ao colocar em causa as análises de um dos mais consagrados cientistas políticos da contemporaneidade sobre a atual crise das democracias.
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Além de ser o nosso último número concebido como uma unidade, esta edição marca a minha despedida do cargo de editora-chefe de Varia Historia. Transmito o comando a meu colega Ely Bergo de Carvalho com os votos de muito sucesso e a promessa de permanecer por perto enquanto lhe puder ser útil – afinal, é cada vez mais inviável um único editor dar conta de toda a miríade de tarefas que a fabricação de um periódico acadêmico envolve, e a continuidade de certas práticas é fundamental mesmo em meio a uma transformação tão profunda quanto a passagem ao formato de publicação contínua.
Por outro lado, os dois anos à frente da revista em muito reforçaram a minha convicção de que a vida acadêmica somente faz sentido como projeto coletivo. Não posso me despedir, assim, sem deixar registrados os meus agradecimentos às e aos integrantes de nossos Conselhos Editorial e Consultivo por suas contribuições preciosas ao direcionamento de nossas políticas, bem como às estagiárias e aos estagiários com quem tive o prazer de trabalhar durante esse período, que se ocuparam com maestria e gentileza de inúmeras tarefas editoriais e de divulgação, desde as mais corriqueiras até as absolutamente insólitas. Registro, igualmente, os indispensáveis apoios institucionais e financeiros que recebemos da FAPEMIG, do CNPq e da CAPES, bem como, no âmbito da UFMG, do Programa de Pós-Graduação em História, da Diretoria da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e da Pró-Reitoria de Extensão.
Que sigamos, enfim, sabendo ajustar-nos aos tempos, sem para isso abrir mão de nossas diretrizes editoriais nem de nosso comprometimento com a qualidade – não apenas substancial, mas também formal – dos textos que colocamos em circulação. Certamente a vasta experiência do professor Ely no campo da história ambiental, marca também das longas e profícuas gestões da professora Regina Horta Duarte, poderá ajudar-nos a estar à altura dos dramáticos desafios dos nossos tempos de catástrofes.
marianamsilveira@gmail.com