Resumo: A partir de finais da década de 1960, o fado e sua principal intérprete, Amália Rodrigues, foram identificados com o atraso político, econômico e cultural do Estado Novo português. Por um lado, o gênero musical era convidativo à resignação e ao conformismo; por outro, Amália era vista como adepta e colaboradora da ditadura de Oliveira Salazar e Marcello Caetano. Em substituição ao fado, uma nova canção, conhecida como “canto de intervenção”, ganhava crescente simpatia, sobretudo entre as juventudes universitárias e os segmentos de oposição. O presente artigo tem por objetivo analisar, por um lado, o gradual isolamento do fado e de Amália Rodrigues entre a crise do regime autoritário português e o processo revolucionário que se seguiu ao golpe de 25 de Abril de 1974; por outro, o papel do “canto de intervenção” como resultado de uma nova estética adequada aos valores do Estado revolucionário.
Palavras-chave: Amália Rodrigues, fado, canto de intervenção.
Abstract: Since the end of the 1960s, fado and its main interpreter, Amália Rodrigues, have been identified with the political, economic, and cultural backwardness of the Portuguese Estado Novo. On the one hand, the musical genre invited resignation and conformity; on the other, Amália was seen as a supporter and collaborator of the dictatorship of Oliveira Salazar and Marcello Caetano. Replacing fado, a new type of music, known as “intervention song” (canto de intervenção), gained increasing popularity, especially among university youth and opposition segments. This article aims to analyze, on the one hand, the gradual isolation of fado and Amália Rodrigues between the crisis of the Portuguese authoritarian regime and the revolutionary process that followed the coup of 25 April 1974; on the other, the role of “intervention song” as a result of a new aesthetic suited to the values of the revolutionary state.
Keywords: Amália Rodrigues, fado, intervention song.
Dossiê
O “velho” e o “novo” na canção portuguesa Amália Rodrigues, o fado e o canto de intervenção na Revolução dos Cravos
The “Old” and the “New” in Portuguese Music Amália Rodrigues, Fado, and Canto de Intervenção in the Carnation Revolution
Recepção: 28 Fevereiro 2023
Revised document received: 13 Agosto 2023
Aprovação: 14 Agosto 2023
A Revolução dos Cravos, iniciada a 25 de abril de 1974, marca o fim de quase meio século de ditadura em Portugal. 1 Num tempo de Guerra Fria e ditaduras à esquerda e à direita, a queda do Estado Novo português abalou corações e mentes em todo o mundo. Dado o seu caráter de ruptura, foi, entre os processos de transição à democracia no sul da Europa, incluindo Grécia e Espanha, o que mais chamou a atenção da comunidade internacional ( PINTO, 2013). Exemplos não faltam para demonstrar o interesse por aquele Portugal convulsionado: ao serviço da revista Alternativa, de Bogotá, Gabriel García Márquez ( 2006) se dirigiu à capital lusitana a fim de cobrir aquela revolução tão acalentada quanto inesperada; exilado na Europa, Glauber Rocha também esteve em Portugal, ocasião em que participou da produção do documentário As armas e o povo; 2 o mesmo fez Sebastião Salgado, que em 1974 fotografou a revolução portuguesa para a agência Gamma; à distância, Chico Buarque ( 2006, p. 222) compôs Tanto mar, canção encantada com o Portugal revolucionário e desesperançada com o Brasil conservador: “Lá faz primavera, pá / Cá estou doente”, dizia a letra.
A curiosidade de parte de elites intelectuais frente ao que ocorria na ocidental praia da Europa é compreensível. As revoluções costumam evocar, por um lado, a ruptura com o passado, julgado e condenado com adjetivos que vão do “careta” ao “reacionário”; por outro, externam o compromisso com um futuro tanto novo como alvissareiro. Promessas míticas, quase religiosas: novo tempo, novas estéticas, novas mentalidades.
O presente artigo objetiva analisar, por um lado, em que medida o fado português e sua principal intérprete, Amália Rodrigues, foram modelados como a mais bem acabada expressão de um passado que se impunha negar e superar. Tratava-se de um gênero e de uma artista que expressavam a resignação e o conformismo condizentes com a cultura política do regime salazarista. 3 Por outro lado, devia-se impor uma canção tanto nova como didática. Essa “nova canção”, que possui diversas designações, será aqui referida privilegiadamente como “canto de intervenção, pois, à revelia do ritmo ou da melodia que se utilizava, trata-se, antes, de”uma postura (...) em que o canto assume um papel [e] tornou-se um veículo, um agente, uma arma lúdica (...) contra o regime, transmitindo mensagens de contestação e resistência” ( RAPOSO, 2007, p. 21). Mais que a definição do gênero ou da melodia, eram as letras, com suas “mensagens”, que importavam.
José Afonso (citado por RAPOSO, 2007, p. 54), compositor fundamental do canto de intervenção, afirma que designou suas “primeiras canções por baladas, não porque soubesse exatamente o significado deste termo, mas para as distinguir do fado de Coimbra, que comecei por cantar e que (...) atingira uma fase de saturação”. Ou seja, havia de tudo um pouco. Talvez até fado, embora não se pudesse assim o denominar. O que estava em questão era “a necessidade de romper com o passadismo e a inércia” que então predominavam na canção popular portuguesa, em particular no fado ( LETRIA, 1999, pp. 31-32). Aos poucos, consolida-se um movimento artístico que impacta a produção musical portuguesa dos anos 1960 e 1970. Entre discos de autor ou confeccionados por importantes gravadoras, Hugo Castro ( 2015, pp. 24-27) elenca um total de 143 produções.
Aliás, mudavam não apenas a música, mas a sociedade portuguesa como um todo. Durante a chamada “longa década de 1960” ( BRITO; SANTOS, 2020), assistiu-se em Portugal à chegada de novos protagonistas num país que até então apenas pretendia, como argumentou Salazar (citado por LÉONARD, 2017, p. 182), “viver habitualmente”. Em um tempo de modernização relativamente acelerada, uma nova classe média, por exemplo, começava a se afastar daquele modelo de organização quase que fechado sobre si mesmo. Novos interesses, ligados à Europa, afastavam parte das elites portuguesas da tríade Espanha, África e Brasil ( CABRAL, 2020). Exemplo notório desse processo mudancista foi o aumento, entre 1961 e 1970, de aproximadamente 20 mil para 44 mil estudantes matriculados no ensino superior. A chamada “crise acadêmica de 1962” foi um primeiro passo que não mais retrocedeu, tornando-se o movimento estudantil um foco permanente de recrutamento de opositores da ditadura, vinculados ou não a partidos políticos ( GRILLO, 2020; ACCORNERO, 2013). E foi exatamente desse meio acadêmico que surgiu um grupo heterogêneo de jovens inconformados não apenas com a política, mas igualmente com as estéticas atribuídas ao Estado Novo.
Naquele Portugal em mudança, a viver uma “experiência de modernidade” ( BERMAN, 1986), Amália Rodrigues e fado, aos poucos e ao menos entre parte das elites letradas, mais urbanizadas e com formação universitária, foram sendo identificados com o “fascismo” do Estado Novo. Uma identificação que é, portanto, anterior ao 25 de Abril. Para a revista brasileira Manchete, em matéria de 1971, Amália expressava seu descontentamento frente a tão “infundadas” acusações. 4 Também em entrevista concedida ao escritor Manuel da Fonseca ( 2020), em 1973, Amália em diversas passagens se defende do estigma de “colaboracionista” a ela atribuído. Publicado em junho de 1974, mas confeccionado antes, o livro do jornalista António Osório, A mitologia fadista, é demonstrativo do crescimento de uma cultura avessa ao gênero. Logo no prefácio, o autor é taxativo:
Em qualquer parte, na revista, nos cabarés, nos seus “retiros”, a encenação do fado é igual. Olhos semicerrados, a cara crispada numa espécie de transe, um luto carregado e, como se não bastasse, o pesadume dum longo chaile negro: os acessórios da desgraça são poucos, mas bem elucidativos. A voz da Cantareira vem gemebunda, quebrada na laringe, cheia de artifícios que realçam a aflição intolerável dessa médium do infortúnio ( OSÓRIO, 1974, p. 9).
Trata-se de um livro com um juízo de valor prévia e claramente definido. Afirma Osório ( 1974, p. 13): “o que se pretende é submeter o fado ao juízo da consciência crítica, a fim de que se possa compreender melhor o que ele comporta de nulo e envenenante, de grotesco e servil”. Assim sendo, a tal “consciência crítica” nada mais é que o repositório de uma verdade pré-definida. Para o autor, aliás, o fado é triste, fatalista, mas esperto, obrigando a todos os seus detratores a permanecerem em alerta:
não nos iludamos, o fado nem tem já os dias contados, nem se devotará a si próprio. Sempre soube adaptar-se às circunstâncias – e é o que está agora a fazer – e o seu melhor triunfo, o mais perturbável, encontra-se no fundo das nossas limitações ( OSÓRIO, 1974, p. 119).
Isso, apesar da forte militância contra o fado e o igualmente forte empenho em favor do canto de intervenção. E o ato de derrube da ditadura terá sido determinante para seu especial e singular processo valorativo.
Na madrugada de 24 para 25 de abril, a canção Grândola, Vila Morena, do já referido José Afonso, 5 serviu de senha para que o golpe contra a ditadura do Estado Novo seguisse em frente. Grândola fora composta em 1964, e é curioso que apenas às vésperas do 25 de Abril ela tenha chamado a atenção das autoridades portuguesas. Num concerto da “canção nova” realizado no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, os censores se aperceberam do potencial subversivo dos seus versos:
José Afonso também cantou. Mas primeiro todos os artistas deram os braços, e oscilavam o corpo da esquerda para a direita, no que foram logo imitados pelo público. Interpretou “Grândola Vila Morena” e “Milho Verde” e nova mente (sic) “Grândola”, acompanhado pelo público, que berrava, cremos que intencionalmente, a estrofe “o povo é quem mais ordena”. 6
Também militares ligados ao Movimento das Forças Armadas (MFA), responsável pela conspiração contra a ditadura, compareceram ao evento e escolheram a composição de José Afonso como senha para o golpe em curso ( LETRIA, 1999, pp. 75-76; SARDO, 2014, pp. 72-73). Os versos de Grândola não deixam dúvidas quanto aos seus propósitos:
Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade 7
Eventos como aquele em que se destacou a música de José Afonso cresciam em Portugal acompanhando o definhar do regime. Havia um crescente espaço para jovens artistas com “novas” canções. As reproduções de baladas aumentavam nas emissoras de rádio e eram executadas nos “giradiscos” das residências portuguesas. Também um programa televisivo, o Zip-Zip , surgido em 1969 com a apresentação de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz, foi determinante para a propagação desses “novos artistas” em escala nacional ( LETRIA, 1999, pp. 59-64). Mas a presença do canto de intervenção no “ato inaugural” da queda do Estado Novo terá, muito provavelmente, contribuído para um tipo de engajamento artístico inédito na maior parte das transições políticas à época.
Assim, logo a 6 de maio de 1974, foi realizado, no Porto, o I Encontro Livre da Canção Portuguesa – que, apesar do nome, não contou com a presença de fadistas e muito menos de Amália. 8 Foi nesta ocasião que se criou o Colectivo de Acção Cultural (CAC), que, por sua vez, divulgou um manifesto no qual fazia referência aos graves problemas vividos pelo país e ao papel dos “trabalhadores culturais” naquela conjuntura. O manifesto, em seu terceiro parágrafo, conclamava:
o Colectivo orienta a sua actividade para o campo da música e da canção populares, fazendo um apelo a todos os trabalhadores culturais anti-fascistas, anti-colonialistas e anti-imperialistas consequentes que estejam interessados em pôr a sua actividade musical (...) no sentido de unificar e multiplicar a nossa participação organizada e activa no movimento democrático e popular (citado por CÔRTE-REAL, 1996, p. 159).
Essa participação tinha uma função ao mesmo tempo didática e formadora. Não sendo um fenômeno exclusivo da música popular, ela caminhava pari passu com os demais segmentos ligados à cultura. Outro manifesto, desta feita redigido por escritores comunistas de Lisboa e publicado no jornal Avante!, órgão oficial do Partido Comunista Português (PCP), deixa bem claro o que seus autores consideravam como “papel formador da cultura”, bem como o método de sua implantação:
Os escritores comunistas da organização de Lisboa pensam que as tarefas prioritárias na conjuntura actual são:
a) Actuação dos escritores no trabalho teórico directamente relacionado com a prática muito intensa da luta ideológica (...);
b) Comparticipação dos escritores no trabalho de enquadramento cultural e esclarecimento das classes trabalhadoras das camadas estudantis e, em geral, dos estratos sociais verdadeiramente interessados na gestão colectiva;
c) Papel de denúncia e desmistificação das várias formas de alienação da consciência social a formulação de conceitos, imagens e ideais que contribuam para a libertação da pessoa humana (...). 9
Havia entre as gentes das artes e das letras, portanto, uma vontade formadora de enquadramento, no sentido proposto por Henry Rousso ( 1985, p. 73), ou seja, de estabilização de uma verdade; o que resultava, necessariamente, num combate ideológico a formas de manifestação não comprometidas com o “edifício cultural” que pretendiam construir.
É verdade que esse cerceamento ideológico não se dirigia apenas ao fado. O chamado “nacional-cançonetismo”, estilo musical que talvez chamássemos no Brasil de “brega”, também era um mal a ser eliminado. 10 Não se tratava, aqui, da resignação ou da ode à pobreza, tão caras à ditadura. Tratava-se, sim, de um tipo de canção apelativa, sobretudo no que toca aos costumes. As letras eram, ademais, consideradas vulgares e de imediata compreensão. Tal qual ocorria com parte (e apenas parte, é justo dizer) das baladas de intervenção. É fato que certo “sectarismo baladeiro” grassava entre alguns compositores da “nova canção portuguesa”. O excerto abaixo, tirado de uma canção de José Mário Branco (citado por SARDO et al., 2016, pp. 147-148), expressa bem tanto o grau de engajamento quanto de empobrecimento poético de algumas daquelas canções:
Os fascistas cá do Porto
Fazem Bairros Camarários
Escondem nossa miséria
Nas costas dos seus palácios
(...)
A opressão tem mil caras
Tudo rouba e nada dá
Em Portugal libertado
Tudo isso acabará.
Alguns autores, entretanto, manifestaram-se em favor desse modelo de composição. Por exemplo, José Barata Moura ( 1999, p. 22) compositor e professor de filosofia da Universidade de Lisboa, afirma que o chamado “panfletarismo” deve ser entendido como um “reflexo artístico (...) dos interesses da classe operária e dos seus aliados, formulados numa linguagem e num contexto que (...) lhe permite reforçar a sua dimensão de instrumento ideológico”. Dependendo da circunstância, portanto, a música, ou a arte em geral, pode e deve expressar o interesse das classes exploradas, à revelia da qualidade de sua manifestação. Afirma ainda que muitos dos críticos do canto de intervenção, o fazem “em convergência (...) com amplos sectores reacionários”. 11 Neste caso, Barata Moura reproduz a concepção segundo a qual a classe possui, ou deve possuir, uma consciência previamente definida, inclusive do ponto de vista estético. Resta, entretanto, indagar: quem define ou formata essa “consciência verdadeira”? Quem determina quais são e quais não são os tais “interesses” dos explorados? 12
Vejamos, então, como essa “vontade doutrinadora” se manifestava no campo artístico. Não é de nosso interesse aprofundar a discussão sobre as diversas formas de articulação política das classes artísticas à época, mas vale a menção de que, após o CAC, várias outras associações e organizações culturais foram criadas em Portugal. 13 Defendendo a intervenção política através da arte, essas organizações tiveram uma existência, entretanto, efêmera ( CÔRTE-REAL, 1996, pp. 158-159). O que nos parece importante destacar, contudo, são os objetivos expressos em seus programas. Eles seriam, basicamente, três: 1. a preservação e a divulgação da música tradicional portuguesa de proveniência rural; 2. a mudança no fado de Lisboa; 3. a modernização da música urbana (p. 161).
Como disseram Susana Sardo e José Mário Branco ( 2016, p. 139), estamos a falar de canções que “atua[va]m como dispositivos de militância ideológica”, ou seja, com um compromisso político explícito. Para os autores, ele “reside na intenção específica do cantor de ‘construir valor político’ transformando a canção numa arma de militância ideológica e, por consequência, de conscientização” (p. 145). Para aqueles que se associaram ao CAC ou agrupamentos similares, assim, era imperiosa “a publicação e divulgação de mensagens (...) ‘político-culturais’, utilizando a música e as canções como instrumentos de militância” (p. 146).
Quanto ao espaço rural, ele seria preservado como se fosse um “lugar da pureza” que, de certa forma, combinava-se com o discurso salazarista. Dizia-se, nos anos 1960, que o Estado Novo era mantido por três “efes”: Fátima, fado e futebol. Sardo ( 2014, p. 65), no entanto, inclui um “quarto efe”, que seria o folclore, conjunto de manifestações que expressariam a “autenticidade” de uma cultura intocável, de evidente pendor rural. O campo seria o ambiente não contaminado pelos “malefícios da urbanidade” ( SARDO, 2014, p. 65). Apesar dos discursos que o procuram naturalizar, quase que biologicamente, o folclore não é um fato em si, meta-histórico e estruturado como pedra; ele é um constructo, resultado de um leque de ações do Estado visando definir um modelo cultural vinculado quase que organicamente com a “forma de ser” do português; com seu espírito ruralista e agrícola, inclusive em função de um imperativo moral. É o que Salwa El-Shawan Castelo-Branco e Jorge Freitas Branco ( 2003) denominam de “folclorismo”, forjado no contexto da “política do espírito” de António Ferro. 14 É de salientar que o “folclorismo” aqui referido vai além das manifestações festivas e/ou do calendário religioso; dele também faz parte um viver cotidiano que acasala família e trabalho.
Na toada dessa cultura, Salazar ( 1967, p. 372), em meados dos anos 1960, afirmava que a “faina agrícola, sujeita à torreira do sol ou à impertinência das chuvas, é acima de tudo uma vocação de pobreza; mas o seu orgulho vem de que só ela alimenta o homem e lhe permite viver”. Os argumentos do ditador reproduzem, como disse Fernando Rosas ( 2001, p. 1035), dois dos grandes “mitos ideológicos” do discurso salazarista: o mito da ruralidade e o mito pobreza honrada. Esse avatar ruralista e tradicionalista, no entanto, foi de certa forma reivindicado também pelos adeptos da “nova canção”. O objetivo dos revolucionários de abril era a preservação “do rigor e da autenticidade no tratamento da música tradicional portuguesa” ( CÔRTE-REAL, 1996, pp. 161-162). Variava, pois, a forma de manipulação, permanecendo a manipulação. Ou, ao menos, o desejo de manipular.
A relação dos agentes do pós-25 de Abril com o fado foi ambivalente. A começar pelo fato de que, mesmo entre a esquerda, e dentro do PCP, havia adeptos e praticantes do gênero ( CARVALHO, 2020, p. 194). Enfim, como na advertência antes referida de Osório ( 1974, p. 81), a adesão comunista ao fado comprovaria que ele “baralha, quando é preciso, a esquerda e a direta, possui a virtude (...) de pôr ‘tudo em confusão’”. O fado é, pois, ardiloso, esperto. E assim haveria, mesmo que pequena, alguma abertura para o gênero. Por exemplo, José Jorge Letria ( 1999, pp. 89-92), poeta ligado ao PCP e que ocupou o cargo de assistente musical da Emissora Nacional, dedica em seu livro sobre a canção política portuguesa um capítulo inteiro ao guitarrista Carlos Paredes, militante comunista e dos mais destacados instrumentistas do gênero. Também reconhece a existência de “outros fados”, de “resistência” e, à época da ditadura, cantados “em surdina para reduzidas assistências”. O problema era o fado transformado “num instrumento dócil e eficaz da política fascista”. Enfim, durante o Estado Novo, “o fado funcionou como um veículo destinado a semear a inércia, a apatia e o saudosismo” ( LETRIA, 1999, p. 96). Portanto, embora não houvesse uma política deliberada contra ele, é fato que o fado, ainda que por um breve período, manteve-se isolado. Não estava morto, mas combalido.
Parecia evidente, para muitos, que o fado que então se ouvia não combinava com os desígnios da Revolução. Num argumento com fortes doses de pragmatismo, Letria ( 1999, p. 97) detalhou a política do Estado para com o fado:
O derrube da ditadura fascista (...) vem pôr em causa do fado que, durante anos, funcionou como cartão de visita, como postal ilustrado do regime. Nunca se disse, porém, que era necessário acabar com o fado. O que várias vezes se salientou foi dar-lhe um conteúdo progressista, de o colocar abertamente ao serviço dos trabalhadores. Sabia-se que isso era possível. Se havia por todo o país milhares de trabalhadores a cantá-lo, não fazia sentido que ele não estivesse ao lado da Revolução.
Reconhecendo a impossibilidade de o eliminar, restava adestrá-lo, submetê-lo aos projetos e objetivos do Estado revolucionário. Mas o curioso é que mesmo fadistas tradicionais, quando adeptos da Revolução, defendiam alterações em seu conteúdo. Foi o caso, por exemplo, de Carlos do Carmo. Intérprete do fado tradicional – filho de Lucília do Carmo, também ela uma importante fadista –, em entrevista ao magazine português Mulher, modas e bordados, não se constrangeu em afirmar: “Se havia um país novo a construir era preciso ajudar a erguer também um fado novo”. 15 Ainda assim, esse fadista é personagem central de um episódio que, no mínimo, mostra o grau de animosidade para com o gênero. No ano de 1976, o PCP organizou um evento que se tornou tradição no calendário político-cultural português. Trata-se da Festa do Avante!. Desde aquele ano, no mês de setembro, artistas de várias nacionalidades, além de partidos comunistas de todo o mundo, dirigem-se a Portugal para prestigiar o evento. Na programação da primeira festa, há controvérsias em relação à presença do fado. Embora muitos afirmem que, graças a José Manuel Osório, militante do PCP e compositor fadista, o gênero sempre esteve na programação cultural, há depoimentos em contrário. Afirma Carlos do Carmo (citado por CARVALHO, 2020, p. 297), por exemplo, que por pouco não foi impedido de cantar na Festa do Avante!, posto que “não havia sentido aparecer ali um fadista”. Para que pudesse estar presente, contou com a solidariedade de seu amigo, o compositor baladeiro Adriano Correia de Oliveira: “Ou o Carlos canta ou eu não canto”. E assim cantou.
Não são poucas as vezes em que ouvimos ou lemos notícias a respeito de Amália e de sua suposta relação com o regime do Estado Novo. A partir do 25 de Abril, ainda que apenas por um breve tempo, Amália foi estigmatizada e referida como próxima à ditadura. Nesta segunda parte do texto, interessará menos o gênero musical e mais as formas como Amália era tratada durante a crise do Estado Novo e, sobretudo, no processo revolucionário. Para melhor compreensão do que se pretende argumentar, começaremos fazendo uma brevíssima referência ao impacto de seu falecimento e aos depoimentos dados à época por personagens ligadas à política e à cultura.
Amália faleceu no dia 6 de outubro de 1999. No dia seguinte, as manchetes dos jornais portugueses tinham, como era de se esperar, a personagem estampada na capa e em imensas matérias no corpo dos periódicos. Era também de se esperar, e assim foi, que predominassem os elogios à cantora. Aqui e ali alguma referência a seu conservadorismo, mas pouco. Mário Soares, Jorge Sampaio (então presidente da República), António Guterres (então primeiro-ministro), o ex-jogador Eusébio, o líder timorense Xanana Gusmão e personagens do meio artístico falavam de sua importância como cantora e de sua generosidade como figura humana. Predominavam, quando o assunto era a política, referências a seus apoios financeiros, discretos, mas constantes, ao PCP. De Paris, onde receberia uma comenda, José Saramago dizia que bastava dizer “Amália” e se sabia imediatamente de quem se estava a falar; e confirmava as secretas doações da artista aos comunistas. Também a vizinha de infância de Amália e conhecida militante comunista, Alda Nogueira, além de Carlos Carvalhas, então secretário geral do PCP, reforçavam o depoimento do escritor. 16
Como veremos, no entanto, o comportamento predominante entre aqueles comprometidos com a Revolução – alguns, inclusive, que depuseram sobre Amália quando de sua morte – foi completamente distinto nos idos de 1974-1975. O elogioso Saramago, por exemplo, quando era interventor do Diário de Notícias, silenciou a artista. Nas palavras de Cristina Faria ( 2008, p. 170):
Do índice de notícias sobre Amália no Diário de Notícias – que sempre acompanhava a par e passo a vida e a carreira da artista (...) com uma frequência não raras vezes mensal, semanal e até mesmo diária (...) – deixou de constar qualquer informação a partir de Dezembro de 1973, retomando-se os registos sobre ela na página 11 da edição de 5 de Fevereiro de 1976.
Mesmo na literatura até aqui referida, acadêmica ou memorialista, as alusões a Amália são muito discretas. Quando elas aparecem, o papel da artista soa diminuto ou mesmo marginal. Sardo ( 2014, p. 65), ao tratar das proximidades e dos distanciamentos entre fado, folclore e canto de intervenção, afirma ser Amália uma artista ainda hoje considerada um modelo para as fadistas portuguesas , carecendo o advérbio de maiores explicações. Também seu papel na modernização do fado era, para certa literatura, relativo, o que não deixa de ser surpreendente.
Em 1962, Amália gravou um disco intitulado O Busto. Esse álbum representou uma alteração de rumo, tanto do fado como da própria carreira de Amália, por dois motivos: primeiro, dada a sua proximidade com o músico franco-lusitano Alain Oulman, responsável por uma nova linguagem melódica do fado; segundo, por gravar poetas ligados à oposição ao salazarismo, como, entre outros, Manuel Alegre, Alexandre O’Neill, David Mourão-Ferreira e Ary dos Santos. N’ O Busto, Amália interpreta Abandono, também conhecido como Fado Peniche, com letra de Mourão-Ferreira e musicado por Oulman. A letra faz referência à prisão de um opositor da ditadura na Fortaleza de Peniche:
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
(...)
Levaram-te ao meio da noite
A treva tudo cobria
Levaram-te ao meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia 17
Três anos depois, Amália lançava um novo EP, Amália Canta Luís de Camões, 18 mais uma vez abrindo portas para a polêmica. Diziam os mais ortodoxos que Amália agora “canta letras à Picasso” ( NERY, 2012, p. 309). Embora Oulman não tivesse participado de suas gravações, o EP tinha, inequivocamente, a sua marca. Amália e ele, a partir de O Busto, ampliaram as perspectivas até então restritas do gênero. 19 Nas palavras de Vítor Pavão dos Santos ( 2005, p. 266), primeiro biógrafo da fadista:
A música de Alain Oulman, de uma estranha ousadia, de uma fatal diferença, de uma qualidade suprema face a tudo o que Amália até aí cantara, marcaria, a partir deste disco, toda a sua carreira, permitindo-lhe alcançar, em plena liberdade, os poetas que não cabiam no fado clássico, tornando o seu repertório excepcionalmente vasto e abrangente, nele cabendo agora toda a poesia portuguesa ( SANTOS, 2005, p. 266).
O que, entretanto, parece curioso em todo esse processo é a identificação de Amália como passiva, sempre instrumento nas mãos de outrem, e não agente de suas próprias escolhas. Por um lado, era marionete nas mãos do regime quando as músicas por ela interpretadas expressavam aquele “sentimento de partilha, (...) a existência de um ‘lar’ [que] ainda que pobre, deveria representar motivo de orgulho e sinónimo de bom português”( SARDO, 2014, p. 65). Talvez a canção que melhor evidencie a Amália à feição do salazarismo, diversas vezes citada pelos opositores do fado ou da cantora, seja Uma Casa Portuguesa, cuja primeira gravação data de 1953. Sua letra é deveras conhecida:
Numa casa portuguesa fica bem
Pão e vinho sobre a mesa
E se à porta humildemente bate alguém
Senta-se à mesa com a gente
(...)
A alegria da pobreza
Está nesta grande riqueza
De dar e ficar contente 20
Já nos anos 1960, as alterações de estilo refletiriam os interesses de seus novos “controladores”. A personagem seria, assim, como que um peão que sabia cantar: “Amália foi” – diz Sardo ( 2014, p. 71, grifos do autor) – “agora instrumentalizada de uma outra forma, dando a voz (...) a uma mensagem literária de resistência, e musical de mudança”. Das duas, uma: ou Amália é uma agente salazarista; ou, então, é uma ingênua que sequer percebe estar a ser manipulada.
A seguir ao 25 de Abril, o que chama a atenção é que a palavra contra Amália praticamente inexiste. Pelo menos em sua forma impressa. Tal palavra, possivelmente, estaria “suspirando pelas alcovas”, 21 talvez envergonhada de seu próprio ato. O que é certo é que se escreveu mais sobre a relação entre Amália e o Estado Novo depois do que propriamente durante a conjuntura revolucionária. O que era marcante, o que estava presente, era o silêncio. Ouvia-se a voz calada. Até que ponto esse apagamento de Amália no curso do processo revolucionário era ou não uma política deliberada é uma questão que permanece em aberto. Nas pesquisas até o momento realizadas, tanto em jornais de grande circulação, quanto no Avante! , e mesmo em algumas obras escritas por autores comprometidos com o processo revolucionário, Amália, mais que acusada, é silenciada. Como sugere Michael Pollak ( 1989), porém, o esquecimento é uma escolha, uma política. Parece haver, enfim, intencionalidade no ato de não falar. Mais do que perseguida, portanto, Amália parecia ignorada. Em depoimento também ao Mulher, modas e bordados, quase quatro anos após a Revolução, Amália parecia ter plena consciência do que lhe acontecera. “Depois do 25 de Abril puseram-me imediatamente de lado”. 22
E “colocar de lado” implicava não apenas não a atacar, mas igualmente não a defender – ao contrário do que ocorrera em anos anteriores. O exemplo que segue parece elucidativo. No primeiro semestre de 1958, a artista fora convidada para realizar um concerto comemorativo do cinquentenário do Sporting Clube de Portugal. A comemoração havia sido marcada para o dia 1º de julho, unificando os aniversários do clube desportivo e o da própria Amália. Durante o mês de maio daquele ano, Amália esteve no Rio de Janeiro para uma série de apresentações. Ao regressar a Lisboa, deparou-se com um protesto organizado pela oposição ao regime em virtude da fraude eleitoral ocorrida a 8 de junho, na qual concorrera, pela oposição, o general Humberto Delgado. O pedido para que não comparecesse ao evento, formulado por uma série de artistas, entre eles a atriz Maria Barroso, esposa de Mário Soares, foi aceito por Amália ( FONSECA, 2020, p. 376). Em resposta, o secretário particular de Salazar, José Sollari Allegro (citado por CARVALHO, 2020, p. 110), telefonou para a cantora em tom de ameaça: “Se a senhora assinou um documento há mês e meio a concordar com a sua ida, não vai então tomar uma nítida atitude política”. Contrariada e temerosa, Amália compareceu. E, a seu jeito, protestou: em primeiro lugar, ao contrário do que era de seu costume, apresentou-se despida de qualquer joia; em segundo, escolheu para cantar, entre outras, a composição de Leonel das Neves (citado por CARVALHO, 2020, pp. 109-110 ), Cuidado Coração, cuja letra dizia: “O mal dos pobres / Mesmo em horas de fatura / É sentirem a amargura / Do pão tantas vezes negado”.
Na imprensa, o jornal República, de oposição, publicou um artigo intitulado A bela e o monstro, tão duro quanto solidário:
Estava a bela na sua ira incontida que sacudia o seu corpo magro e nervoso. Sua cabeleira negra e revolta agitava-se, desgrenhada, como batida por um vendaval de insânia. Sua boca larga e vermelha como um cravo andaluz contorcia-se num rictus de dor inenarrável.
(...) As lágrimas correram-lhe em fio pelos belos olhos negros como o luto que lhe ia na alma.
E foi assim que ela cumpriu seu fado. 23
Também o clandestino Avante! se referiu ao evento. Tanto quanto o periódico republicano, acusou o regime e defendeu a fadista:
Com preços módicos e um cartaz aliciante que tentava utilizar a grande popularidade da grande artista Amália Rodrigues, procuraram os salazaristas quebrar a boicotagem dos espetáculos. A certa altura, porém, tiveram de vender os bilhetes abaixo do preço marcado e, por fim, distribuíram-nos de graça pelos organismos corporativos. 24
Outros indícios de que não havia exatamente um combate formal contra Amália são duas importantes correspondências em sua defesa enviadas a jornais de grande circulação naquela conjuntura “quente” de 1975. A primeira é de Francisco Mata, jornalista de O Século, que afirmava: “Amália foi vítima das invejas mesquinhas de muitos colegas que nunca conseguiram comer as uvas da fábula”. 25 A segunda é de Alain Oulman, que, de Paris, enviara ao República um depoimento sobre os seus anos de convívio com Amália:
A campanha de calúnias contra Amália obriga-me a esclarecer certas afirmações, porque ninguém, que eu saiba, o fez até à data com conhecimento de causa, e Amália certamente não o fará. (...) Nunca vi, ouvi, soube, durante tantos anos de amizade, de qualquer colaboração com o antigo regime, a não ser quando convidada para cantar em festas oficiais, como qualquer artista profissional e como, aliás, muitos artistas o fizeram. 26
Tanto Francisco Mata quanto Alain Oulman defendem Amália sem que, entretanto, o nome do algoz fosse referido. Parece que, de fato, era verdade, como disse Alberto Franco ( 2019, p. 191), que: “Nenhuma instância oficial assume uma posição contra o fado, mas este foi praticamente banido da rádio e da televisão”. De qualquer modo, o silêncio do pós-25 de Abril, deliberado ou não, soa como uma necessidade. Se a revolução tinha heróis, haveria também de ter vilões. Sobre os quais (ou sobre a qual) era melhor calar.
O “canto de intervenção” surgiu como alternativa a uma “velha” canção portuguesa, resignada e pobre. Suas letras eram um convite às ruas, às manifestações, à contestação. A Revolução, no entanto, murchava aos poucos, como também murcharam os olhares sobre Lisboa. Para muitos, o que não deixa de ser curioso, a consolidação da democracia parecia frustrante frente às possibilidades abertas pelo imponderável. Para o fado, a estabilização democrática o recolocou no lugar de principal gênero da canção portuguesa, assim como Amália retornou à condição – se é que alguma vez saiu dela – de sua principal intérprete. Para a artista, permaneceu, entretanto, a dolorosa memória daqueles anos em que a alcunha de conservadora era até um elogio frente a outros adjetivos à farta verbalizados, ainda que talvez envergonhados: fascista, reacionária, colaboradora, etc. Persistiu, igualmente, a necessidade de se explicar a cada entrevista, ano após ano, em jornais, magazines e programas televisivos.
No caso da literatura sobre a canção popular portuguesa, é evidente, em alguns estudos, a permanência de certa nostalgia de um “tempo heroico”. De um tempo em que as águas se haviam separado. Sardo ( 2014, p. 67, grifos do autor), em sua análise sobre a crescente importância dos “Sons de Abril”, afirma que “na década de 1960 começa a emergir uma viragem neste modelo de comprometimento da música em relação ao Estado”. Refere-se a autora aqui ao comprometimento com o Estado Novo e suas letras “alienantes”. Talvez se tenha esquecido de mencionar que muitos daqueles agentes da “nova música” se encantaram com o mesmo comprometimento frente ao Estado, desta feita com outras “mensagens” e os mesmos objetivos de controle. Enfim, as águas, neste caso, de uma forma ou de outra, encontravam-se. Segundo Letria ( 1999, pp. 79-80), após o 25 de Abril, quando “restauraram-se as liberdades democráticas [as] listas negras (...) deixaram de funcionar. Os cantores e compositores começaram a circular livremente por todo o País”. Em parte, não deixa de ser verdade, ainda que novas “listas”, com maior ou menor eficiência, mais ou menos formais ou informais, tenham substituído as anteriores.
Devemos considerar, evidentemente, dois aspectos que talvez relativizem as ações dos sujeitos comprometidos com o processo revolucionário. Em primeiro lugar, nenhuma ação que tenha constrangido o fado ou Amália Rodrigues se compara com o grau de perseguições e constrangimentos durante o regime do Estado Novo, inclusive no que toca à censura. 27 Em segundo lugar, a Revolução dos Cravos conduziu o país à democracia; mesmo havendo segmentos mais ou menos autoritários, é fato inquestionável que o campo democrático saiu vitorioso. O que não obsta o sectarismo aqui referido.
Os adeptos do “novo tempo” costumam desconsiderar que, como disse o professor Leôncio Martins Rodrigues (citado por SANTANA, 1999, p. 133), “a palavra novo encanta”, na mesma medida em que semeia ilusões. Negando o passado, não perceberam que forçosamente o reproduziam, mesmo que em obediência a outros códigos. Provavelmente desconsideravam o fato de que passado, presente e futuro são circunstâncias, e não valores. Não são poucas as vezes em que o julgamento apressado do passado dissimula a sua reprodução no presente. Isso, aliás, não é necessariamente um problema. Dependerá sempre da consciência desse ato. Olhar para trás pode e deve servir para fazermos escolhas; para elegermos aqueles vestígios de ontem que gostaríamos de trazer ao presente ( RICOEUR, 2010, pp. 197-198). Estamos, enfim, sempre a buscar o velho, o supostamente ultrapassado, carcomido e careta. Ainda bem! Como disse Caetano Veloso, “gotas de leite bom na minha cara, chuva do mesmo bom sobre os caretas”. 28
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