Editorial
Em 2024, a Varia Historia passou a adotar a publicação contínua em um volume único anual, atendendo, assim, à novidade editorial proposta pela SciELO (2019). Mesmo não tendo mais uma publicação impressa desde 2016, a revista continuou a reunir os artigos recebidos em três números durante o ano, cada um com uma “identidade” própria. Um periódico on-line não necessita, diferente do impresso, agrupar todo material em um conjunto para publicação. Os artigos podem ser editados e produzidos individualmente, estando disponíveis para acesso assim que finalizados. Dentro da produção em fluxo contínuo, há a possibilidade de continuar dividindo o volume em números separados, que podem ser alimentados sequencialmente ou simultaneamente. Contudo, nossa opção foi acompanhar a recomendação do SciELO (2019, p. 3) e adotar um volume anual único. Isso gerou vários desafios práticos para o cotidiano editorial e tem implicações mais amplas nas formas e na função da revista. Cabe aqui apresentar e avaliar os resultados dessa novidade.
Em um contexto mais amplo e longo, aglutinar a publicação em números favorecia a formação de redes de sociabilidade intelectual em torno de revistas, especialmente quando eram impressas. Lembro-me da primeira vez que fui editor de uma revista científica: ainda era possível transformar um número em um verdadeiro manifesto sobre uma concepção de História e um projeto coletivo de produção historiográfica (Brancher; Carvalho, 2005). Todavia, dentro de um processo mais amplo de transformação, como Silveira (2023, p. 2) chamou a atenção, “os periódicos acadêmicos tendem hoje a funcionar menos como expressões de projetos intelectuais e mais como instâncias de chancela a artigos tomados como unidades individuais.”
Tal mudança de funcionamento é reforçada, também, pelas políticas de combate a endogamia na publicação, as quais têm como efeito colateral a redução das relações pessoais entre os envolvidos no processo de publicação. Tal burocratização, por um lado, gera vários efeitos benéficos, como o combate aos privilégios das relações pessoais; por outro lado, os artigos são cada vez mais numerosos. Quando fui editor pela última vez de um periódico, há quase vinte anos, durante o processo de edição e produção eu identificava cada artigo pelo nome. Hoje, cada vez mais refiro-me aos artigos pelo seu número de identificação (ID) e menos pelo nome dos autores ou pelos títulos, devido ao grande volume de material e às várias fases e atores envolvidos no processo editorial.
Buscando oferecer uma visão de conjunto para as pesquisas publicadas no volume 40 de revista, indicando suas conexões abstratas e também as relações das quais emergem projetos na revista, cabe identificar aqui os autores e as pesquisas que compõem o volume de 2024 da revista:
Paulo Henrique Martinez, no artigo intitulado Recursos Hídricos e Ditadura Militar no Brasil: Saneamento Básico, Poluição e Tecnologia no Estado de São Paulo (1973-1979), analisa as políticas públicas de gestão de recursos hídricos durante o governo de Paulo Egydio Martins, em um contexto marcado pelas crises do petróleo. O autor destaca a busca por legitimação política dos governos militares e as relações sociais que sustentaram a modernização econômica pautada em uma razão técnica.
João Júlio Gomes dos Santos Júnior, no artigo Explorando Caminhos Alternativos: Críticas e Possibilidades na Construção da História Global do Jiu-Jitsu no Instagram, analisa o perfil do Instagram @muito_antes_do_mma como fonte histórica. O autor destaca a importância do perfil na divulgação da história do Jiu-Jitsu, mas levanta questionamentos sobre a narrativa heroica empregada, que pode simplificar a complexidade histórica da arte marcial.
Linderval Augusto Monteiro, no artigo Informalidades e reação popular em uma periferia fluminense: O estranho caso do “astrólogo racista”, analisa o assassinato de um homem branco por seus vizinhos negros em uma periferia fluminense nos anos 1970. O autor argumenta que o crime foi resultado de um acúmulo de tensões raciais e sociais, desencadeado pelo comportamento agressivo e racista do homem branco em relação à comunidade local. A análise do caso revela a complexidade das relações sociais na periferia, a construção de identidades e a resolução de conflitos.
João Roriz e Felipe Loureiro, em Devolva ao remetente: Geisel, Carter e o confronto diplomático entre Brasil e Estados Unidos sobre direitos humanos, analisam as relações tensas entre Brasil e Estados Unidos durante os governos de Geisel e Carter, com foco nas disputas sobre direitos humanos. Através da análise de documentos desclassificados, os autores demonstram que, apesar da retórica pública de defesa dos direitos humanos por parte dos Estados Unidos, na “diplomacia privada” o cenário foi mais matizado e complexo.
Arnaldo José Zangelmi, Fabrício Roberto Costa Oliveira e Izabella Fátima Oliveira de Sales, no artigo A FETAEMG em seus primeiros anos (1968-1974): Tensões, vigilância, repressão e a prudência como parâmetro vital, analisam a atuação da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg) durante a ditadura militar. O estudo demonstra como a Fetaemg, embora criada em um contexto de repressão, buscou conciliar a defesa dos direitos dos trabalhadores rurais com a necessidade de manter relações com o Estado, o que resultou em uma atuação marcada pela “prudência”.
Flávio Weinstein Teixeira, em O anódino e o impróprio: Álvaro Lins e a crítica literária no Brasil (1940-60), aborda a trajetória de Álvaro Lins no contexto da crítica literária brasileira, destacando seu protagonismo nos anos 1940 e as disputas que marcaram sua carreira. Por meio dessa trajetória, é possível pensar reconfigurações do campo intelectual brasileiro.
Jonas Brito, no artigo intitulado Chico Projeto: Reforma urbana e protesto social (Salvador, 1928-1930), escrutina as reformas urbanas implementadas em Salvador entre 1928 e 1930 e como estas contribuíram para o descontentamento popular que culminou no “Quebra-Bondes” de 1930. O autor demonstra que as reformas, embora propostas como solução para os problemas urbanos, na prática agravaram a situação da população, gerando um aumento nos custos de vida e uma deterioração dos serviços públicos, o que, combinado com a crise econômica mundial, desencadeou um forte protesto contra a companhia de serviços públicos e o governo.
Anita Correia Lima de Almeida, em A ilha desaparecida: Vulcanismo nas páginas dos jornais fluminenses, explora o surgimento e desaparecimento da ilha vulcânica Ferdinandea em 1831, no Mediterrâneo. A autora analisa como o evento foi tratado pela imprensa do Rio de Janeiro, destacando a circulação global de informações científicas no século XIX. Além disso, aborda as disputas geopolíticas e a transformação do fenômeno em espetáculo midiático.
Ânderson Marcelo Schmitt, em Legislação militar na guerra de Independência do Brasil Província de Santa Catarina (1821-1824), interpreta como a legislação militar recém-criada pelo Império do Brasil foi adaptada e aplicada na província de Santa Catarina durante o período da independência. O autor demonstra que as autoridades locais interpretaram e adaptaram as leis de acordo com suas necessidades e realidades, evidenciando a autonomia das províncias no processo de construção do Estado brasileiro.
Romulo Valle Salvino, no artigo Um correio “o mais breve e econômico que for possível”: A implantação das redes postais na América Portuguesa (1796-1807), analisa o processo de implantação das primeiras linhas postais regulares na América Portuguesa. O autor demonstra os desafios enfrentados na criação dessa rede, como a adaptação às realidades locais, a dificuldade de rentabilização e a falta de conexão entre algumas regiões.
Tomás Cornejo, no artigo Pistas del espacio musical latinoamericano: Presencia y circulación de estilos y géneros, 1880-1930, analisa a circulação de estilos e gêneros musicais na América Latina entre 1880 e 1920. Através da análise de cancioneiros populares, o autor mapeia a presença e a difusão de diferentes estilos musicais em três países, revelando um espaço musical transnacional em um período marcado por tensões entre o nacional e o cosmopolita.
Rodrigo Goyena Soares, em A Guerra de Sessenta Anos: A região-mundo platina e as causas do conflito de 1864, analisa as causas da Guerra do Paraguai, propondo uma nova perspectiva: a da região-mundo platina. Em vez de focar em indivíduos ou estados isolados, o autor argumenta que o conflito foi resultado de um longo processo histórico de interações complexas entre as diferentes partes da região, marcadas por disputas territoriais, econômicas e políticas. Essa abordagem permite entender a guerra como um ponto culminante de um conflito mais amplo, enraizado nas dinâmicas da região-mundo platina em uma temporalidade mais longa.
Israel Vivar García, em El Nacional argentino: Discursos para construir el liderazgo de Urquiza (1853-1854), aborda como o jornal oficialista da Confederação Argentina, durante o governo de Urquiza, construiu uma narrativa nacional. O autor demonstra como o jornal utilizou a figura de Urquiza para unificar o país e legitimar o novo regime político, vinculando-o à ideia de liberdade e progresso, em oposição ao período anterior.
Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, em A unidade do escravismo atlântico por sua cultura jurídica-mundo, analisa como um conjunto de normas e práticas jurídicas comuns uniu o sistema escravista em diferentes regiões do Atlântico. Apesar das diversas particularidades locais, o autor argumenta que a existência de uma cultura jurídica compartilhada, com raízes no Mediterrâneo, conferiu uma unidade ao sistema escravista.
Angelo de Oliveira Segrillo, no artigo A Questão da Religião Ortodoxa na Rússia e na Ucrânia: Disputas religiosas e políticas de um ponto de vista histórico, analisa as disputas religiosas entre as igrejas ortodoxas da Ucrânia e da Rússia, conectando-as na relação entre Igreja e Estado. O autor traça um panorama desde a cristianização da região até a atualidade, utilizando fontes primárias e destacando a importância das teorias específicas ortodoxas na compreensão das tensões entre as duas igrejas e países.
Silvio Marcus de Souza Correa e Naiara Krachenski, no artigo Kolonie und Heimat: Imagens da África e economia visual à época dos impérios coloniais, interpretam a produção e circulação de imagens da África na imprensa ilustrada alemã do início do século XX. Os autores demonstram como essas imagens, ao serem transformadas em mercadorias de uma economia visual, contribuíram para a construção de uma visão estereotipada do continente africano e reforçaram o discurso colonialista.
Carlos André Silva de Moura, em A formação do laicismo em Portugal: Afonso Costa e o anticlericalismo no início da República (1890-1914), aborda o processo de laicização em Portugal no início da República, com destaque para o papel fundamental do Ministro d Justiça Afonso Costa.
Rodrigo Diéguez Pousa, no artigo La jurisdicción ordinaria en el reino de Toledo: Audiencias, señorío y realengo, en Cuenca en el siglo XVIII, analisa a complexidade da divisão jurisdicional da província de Cuenca durante o século XVIII. O autor explora como a justiça, além de sua função tradicional, era um elemento fundamental da administração local e um mecanismo de controle estatal. Através da análise do Censo de Floridablanca, o artigo apresenta um panorama detalhado das audiências de justiça, seus oficiais e o peso dos senhorios na província, revelando uma estrutura jurisdicional fragmentada e desigual, resultado de um longo processo histórico de mercês e vendas de terras.
Thiago Ribeiro da Silva, em A corrupção nos tribunais carolíngios a partir do Contra Iudices de Teodulfo de Orleães, analisa o poema de Teodulfo de Orleães para identificar as práticas corruptas denunciadas, o vocabulário utilizado e os motivos que levaram o bispo a escrever sobre o tema. O autor argumenta que a corrupção nos tribunais carolíngios não era apenas uma questão moral, mas também tinha dimensões políticas e econômicas.
Este volume é composto por cinco resenhas. O aumento o número de resenhas é fruto de esforço e da competência de nossa editora auxiliar, Nathália Sanglard de Almeida Nogueira. Dentre elas, quero destacar a resenha da nova edição da obra clássica de Erich Auerbach, Dante como poeta do mundo terreno, pois esta dialoga lindamente com o dossiê presente no volume.
Começamos a publicar nesse volume o dossiê Formas textuais, imaginação e historicidade, organizado por Patrícia da Silva Reis Marques, André Jobim Martins e Clarissa Mattos. Este reuniu um volume grande e profícuo de textos. Compõem o dossiê: o artigo Desromantizando a História da Escravidão nos Estados Unidos: O modo trágico em Scenes of Subjection de Saidiya Hartman, de Allan Kardec da Silva Pereira, que analisa a obra de Saidiya Hartman, questionando as narrativas romantizadas sobre a escravidão nos EUA, em uma crítica as “narrativas de superação”, focando na persistência da sujeição; a resenha escrita por Clarissa Paranhos sobre o livro Compreender outros, do historiador estadunidense Dominick LaCapra; e uma entrevista que LaCapra concedeu aos organizadores do dossiê, na qual faz uma didática e instigante reflexão sobre sua larga e influente produção acadêmica. Os outros 10 artigos originais que compõem o dossiê serão publicados no volume 41, de 2025, da revista.
O volume 41, de 2025, contará com outros dois dossiês em fase de produção, para sair nos primeiros meses do ano. E outros três dossiês em fase de organização, previstos para o segundo semestre do ano. Dessa forma, mais que avaliar artigos individuais, queremos conectar e construir debates e diálogos.
Por fim, preciso registrar que, no primeiro semestre de 2024, passei por um momento grave de adoecimento, o que prejudicou o andamento normal da revista, pois deixou a revista quase sem seu editor-chefe. Foram meses difíceis até retornar à normalidade. Agradeço imensamente a editora auxiliar e ex-editora-chefe, Mariana de Moraes Silveira, por seu apoio nesses momentos desafiadores. Estendo meus agradecimentos aos estagiários e aos demais editores pelo profissionalismo da equipe. Também devo registar o agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo suporte financeiro ofertado à revista.
REFERÊNCIAS
BRANCHER, Ana Lice; CARVALHO, Ely Bergo de. Apresentação (Dossiê: História Ambiental). Esboços. v. 13. p. 7-8, 2005. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/283. Acesso em: 15 abr. 2020.
SciELO. Guia para Publicação Contínua de artigos em periódicos indexados no SciELO [online]. SciELO, 2019. Disponível em: https://wp.scielo.org/wp-content/uploads/guia_pc.pdf. Acesso em: 3 mar. 2024
SILVEIRA, Mariana de Moraes. Os novos tempos das revistas. Varia Historia, v. 39, n. 81, p. e23301, set./dez. 2023. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0104-87752023000300001. Acesso em: 14 nov. 2024.