RESUMO: Este artigo trata das disputas diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos sobre direitos humanos no final dos anos 1970. Trabalhos recentes vêm enfatizando o quanto o governo Carter teria colocado o tema de direitos humanos no primeiro plano em suas relações com a América Latina, tendo obtido resultados significativos. Nós defendemos uma perspectiva mais nuançada. A partir do uso de documentos oficiais confidenciais de arquivos brasileiros e estadunidenses recentemente liberados para pesquisa, focamos em encontros diplomáticos cruciais que se deram entre os governos Geisel e Carter entre 1977 e 1978. Esses encontros revelam a ascensão e queda das pressões acerca de direitos humanos por parte de Washington sobre o Brasil por meio de diplomacia privada, mesmo que a diplomacia pública de Washington continuasse a enfatizar a importância dos direitos humanos para a política externa dos EUA. Nós também mostramos como, apesar das pressões públicas e privadas dos Estados Unidos, vê-se a resistência da política externa da ditadura brasileira no âmbito de direitos humanos, o que, na prática, significou a limitação ou a completa obstrução de averiguação internacional sobre direitos no Brasil.
Palavras chave: Direitos humanos, Ernesto Geisel, Jimmy Carter.
ABSTRACT: This article delves into the US-Brazil diplomatic sparring over human rights in the late 1970s. While recent literature highlights the significant results of the Carter administration’s placement of human rights at the forefront of its relations with Latin America, we adopt a more nuanced approach. Drawing from confidential official documents recently released by US and Brazilian archives, we focus on key US-Brazilian diplomatic summits held during the Geisel and Carter administrations between 1977 and 1978. These summits reveal the rise and fall of human rights pressures exerted by Washington on Brazil through private diplomacy, even as Washington’s public diplomacy continued to emphasize the importance of human rights in US foreign policy. Additionally, we demonstrate that despite these public and private pressures from the United States, the Brazilian dictatorship’s foreign policy regarding human rights endured, which, in practice, resulted in limitations or total obstruction of foreign oversight concerning rights in Brazil.
Keywords: Human Rights, Ernesto Geisel, Jimmy Carter.
ARTIGO
Devolva ao remetente: Geisel, Carter e o confronto diplomático entre Brasil e Estados Unidos sobre direitos humanos
Return to Sender: Geisel, Carter, and the US-Brazil Diplomatic Confrontation over Human Rights
Received: 15 April 2023
Revised: 20 November 2024
Accepted: 27 August 2023
No período pós-guerra, o papel dos Estados Unidos no apoio a golpes militares e as relações estreitas que o país manteve com ditaduras na América Latina representaram uma forte contradição com a retórica de Washington durante a Guerra Fria, que situava o país como defensor da liberdade e da democracia em todo o mundo. Essa contradição, juntamente com as duras consequências da Guerra do Vietnã e os escândalos que culminaram com a queda do presidente Richard Nixon em agosto de 1974, foram o cerne da reação social e política que permitiu que o governador da Geórgia, Jimmy Carter, fosse eleito presidente dos EUA em 1976. A ascensão política de Carter prometia uma mudança significativa na forma como Washington lidava com os regimes militares latino-americanos, enfatizando o respeito e a promoção dos direitos humanos, bem como a defesa da restauração das liberdades civis e políticas na região (Alter, 2020).
Estudos recentes concluíram que Carter cumpriu sua promessa e implementou uma mudança significativa na política externa dos EUA em relação à América Latina. Um desses trabalhos argumentou, por exemplo, que a abordagem de Carter buscou “integrar os direitos humanos à tessitura de sua política externa [para a América Latina]”, inserindo-os “em todas as áreas-chave, da segurança ao desenvolvimento econômico e à programação cultural e educacional”.1 Estudos sobre os exemplos mais notórios de violações de direitos humanos na região reforçaram essas percepções, desde a extensa análise de William Schmidli (2013, p. 134) sobre a política externa de Carter em relação à Argentina autoritária durante o governo do general Jorge Rafael Videla (1976-1981) – um “momento marcante na evolução da política de direitos humanos dos EUA”2 – até a investigação de Jason Colby (2010, p. 583) sobre o caso da Guatemala, cujos impactos perduraram além de Carter e impediram “Reagan de apoiar o regime assassino da Guatemala”.3 É verdade que a hesitação e a ambivalência de Washington em relação à Nicarágua de Anastacio “Tachito” Somoza (1967-1972; 1974-1979), ou as próprias inconsistências da política externa dos EUA em El Salvador, são lembradas como exemplos de como a política de direitos humanos de Carter também apresentava limitações significativas, embora os mesmos estudiosos afirmem que é preciso considerar o próprio impacto do declínio da détente no final da década de 1970 (Leogrande, 1998, p. 52-71; p. 104-124; Schmidli, 2012).
O entendimento acadêmico segue o mesmo padrão quando se trata da abordagem de Carter em relação ao Brasil autoritário. Mesmo que haja diferenças significativas entre o governo de Ernesto Geisel (1974-1979) e a Argentina de Videla, a Nicarágua de Somoza ou o Chile de Augusto Pinochet (1973-1990), o Brasil também apresentou violações significativas dos direitos humanos na época, e o desrespeito aos direitos civis e políticos fundamentais persistiu (Motta, 2021, p. 246-273; Napolitano, 2014, p. 244-262). Além disso, apesar da retórica de Geisel sobre um retorno gradual ao regime democrático (o chamado processo de “abertura lenta, gradual e segura”), o Brasil continuou a ser uma das mais longas ditaduras militares da América Latina. Quando Carter assumiu o cargo em janeiro de 1977, o país contava com 13 anos de governo militar contínuo. Os estudos existentes enfatizam que o governo Carter também procurou colocar os direitos humanos – bem como a não proliferação nuclear – no centro dos assuntos EUA-Brasil, levando as relações bilaterais a seu ponto mais baixo em décadas.4
Visitas de autoridades estadunidenses de alto escalão ao Brasil são tipicamente vistas como evidências cruciais de como o governo Carter pressionou Brasília a seguir uma linha política voltada para o respeito aos direitos humanos fundamentais. Uma das razões pelas quais as visitas oficiais se tornaram tão importantes foi que um instrumento-chave empregado pelo governo Carter para seduzir os regimes militares latino-americanos a mudar seu comportamento – a redução ou mesmo a obstrução temporária da ajuda militar e econômica bilateral – não pôde ser empregado com o Brasil. Brasília tomou a iniciativa, no início da presidência Carter, de rejeitar a ajuda econômica e retirar-se de um acordo militar com os Estados Unidos, depois que o Congresso estadunidense determinou que os beneficiários de auxílios do país fossem submetidos a inspeções anuais na área dos direitos humanos (Losito, 2013, p. 100). Por isso, os canais diplomáticos, como visitas e reuniões de alto escalão, tornaram-se uma ferramenta fundamental para Washington pressionar o Brasil a melhorar suas políticas em relação aos direitos humanos. Os estudos destacam duas visitas em particular: a primeira, feita por Rosalyn Carter em junho de 1977, como parte de uma turnê sul-americana de sete países; e a segunda, e ainda mais crucial, feita pelo próprio presidente Carter, em março de 1978. Em ambas as visitas, geralmente se enfatizam não as interações diplomáticas a portas fechadas entre autoridades americanas e brasileiras, mas as reuniões públicas em que Rosalyn e Jimmy Carter participaram com ex-prisioneiros americanos no Brasil, bem como com ativistas da sociedade civil brasileira.5 De fato, foram acontecimentos importantes, mas questionamos aqui até que ponto essas iniciativas ousadas foram reproduzidas, ou mesmo reforçadas, por meio de interações bilaterais a portas fechadas.
Neste artigo, tentamos preencher essa lacuna propondo uma análise aprofundada sobre a disputa diplomática entre Brasil e EUA em relação aos direitos humanos no final da década de 1970. Para isso, vamos além das ferramentas da diplomacia pública estadunidense, enfatizando as interações privadas entre autoridades de Washington e Brasília pelas lentes de fontes oficiais confidenciais recentemente divulgadas por arquivos dos dois países. Nossos principais objetivos são duplos. Em primeiro lugar, queremos compreender melhor a batalha argumentativa entre os Estados Unidos e o Brasil em relação aos direitos humanos que ocorreu no final da década de 1970. A rica historiografia dos direitos humanos produzida no Norte Global está principalmente circunscrita aos arquivos dos países ricos.6 Acreditamos que o uso de dados empíricos do Sul leva a uma narrativa mais matizada que pode iluminar não apenas o passado, mas também as discussões presentes sobre direitos.
Em segundo lugar, entendemos que a política externa da ditadura cumpriu um papel significativo no bloqueio da circulação de ideias sobre direitos humanos no Brasil. Se avaliarmos a política externa de Geisel a partir de sua capacidade de resistir à pressão de Washington, a diplomacia da ditadura foi bem-sucedida, pelo menos de acordo com a percepção de altos funcionários brasileiros. Jimmy Carter criticou publicamente a ditadura brasileira e sua esposa pressionou o país em conversas privadas durante seu primeiro ano de mandato, como será mostrado na segunda parte do artigo. No entanto, o presidente Ernesto Geisel e o chanceler Azeredo da Silveira se mantiveram firmes e resistiram sistematicamente à pressão dos EUA. Com o tempo, as reuniões bilaterais entre autoridades estadunidenses e brasileiras deixam entrever um arrefecimento do tema, pelo menos na agenda bilateral privada. Em consequência, diferentemente de outras ditaduras na América do Sul, o Brasil pressionou com sucesso contra visitas in loco de organizações internacionais e ONGs, não ratificou a maioria dos tratados de direitos humanos durante as décadas da ditadura,7 repeliu novas instituições de direitos humanos como o Alto Comissariado (Roriz; Hernandez, 2021), e a maioria dos casos contra o país na Organização das Nações Unidas (ONU) (Roriz, 2021) e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) foram encerrados (Bernardi, 2018). O desenrolar do chamado processo de abertura no Brasil do final dos anos 1970, permitindo a lenta transição do governo autoritário para o democrático em meados dos anos 1980, poderia muito bem ter decorrido parcialmente da diplomacia pública estadunidense em favor dos direitos humanos – uma questão complexa que foge ao escopo deste artigo e não será abordada aqui –, mas certamente não de uma resposta às pressões privadas dos EUA, já que estas desapareceram de reuniões a portas fechadas entre autoridades estadunidenses e brasileiras nos mesmos anos.
Muito se tem escrito sobre as relações Brasil-EUA durante a ditadura brasileira, inclusive sobre as políticas externas de Carter e Geisel.8 Washington não só teve papel fundamental na desestabilização da presidência de João Goulart (1961-1964) no Brasil, como também auxiliou o golpe de Estado de 1964 por meio da chamada Operação Brother Sam, que incluiu uma força-tarefa naval que não precisou ser usada porque não houve resistência armada contra o golpe militar (Fico, 2008, p. 67-123; Loureiro, 2020). As estreitas relações Brasil-EUA dos primeiros anos da ditadura começaram a enfraquecer-se após episódios de discordância sobre questões econômicas (Bandeira, 1989; Loureiro, 2021) e quando as violações de direitos humanos chegaram às manchetes dos noticiários estadunidenses, particularmente em decorrência do Ato Institucional número 5 (AI-5), em dezembro de 1968 (Fico, 2008, p. 187-230; Green, 2010, p. 55-113).
Apesar de alguns atritos, as relações melhoraram consideravelmente durante o governo Nixon (1969-1974), devido à sua perspectiva de manter relações estreitas e privilegiadas com potências regionais, como o Brasil, independentemente do autoritarismo presente nesses países (Spektor, 2007). Interesses geopolíticos compartilhados também fortaleceram a parceria, como bem demonstrou a campanha de desestabilização feita pelos EUA e pelo Brasil contra o Chile de Salvador Allende (Rabe, 2020, p. 84-117; Simon, 2021). Com Gerald Ford (1974-1977) a cooperação bilateral deu um passo adiante, apesar da crescente supervisão do Congresso em questões relacionadas às relações dos EUA com países que apresentavam históricos problemáticos em relação aos direitos humanos (Spektor, 2007, p. 179). Em 1976, o secretário de Estado de Ford, Henry Kissinger, e o ministro das Relações Exteriores de Ernesto Geisel, Azeredo da Silveira, concluíram um memorando de entendimento estabelecendo a consulta mútua entre os dois países, símbolo do reconhecimento pelos EUA da emergência do Brasil nos assuntos mundiais (Spektor, 2007, p. 130-140). No entanto, o ano seguinte testaria tal arranjo e marcaria um novo ponto baixo nas relações bilaterais.
Além do projeto nuclear brasileiro, que produziu tensões bilaterais significativas devido à posição dos EUA sobre a não proliferação nuclear (Patti, 2021, p. 81-108), um elemento contextual fundamental foi o processo de abertura de Geisel. Ao lado de seu chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, Geisel declarou, ao assumir o cargo em 1974, que pretendia permitir o retorno ao regime democrático civil no Brasil de forma lenta e controlada.9 Geisel oscilou entre medidas de apaziguamento e repressão. Por um lado, o governo revogou parcialmente a censura à imprensa e realizou eleições federais em novembro de 1974. De outro, depois que o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) conquistou a maioria das cadeiras do Congresso e passou a contar com mais apoio público do que a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), Geisel fechou temporariamente o Legislativo e impôs reformas antiliberais – o chamado Pacote de Abril de 1977 –, com o objetivo de garantir que os políticos pró-militares mantivessem sua hegemonia sobre as instituições. Em termos de graves violações de direitos humanos, além da manutenção de prisões arbitrárias e da repressão violenta a opositores não armados, os casos de tortura continuaram em níveis elevados sob Geisel – superiores, por exemplo, aos casos anuais registrados durante os governos de Castello Branco (1964-1967) e Costa e Silva (1967 -1969). Segundo a Comissão Nacional da Verdade, os dois anos com maior número de desaparecidos no Brasil foram 1973 (54 vítimas) e 1974 (53 vítimas) – o segundo deles (a partir de março) foi o primeiro ano de mandato de Geisel (Brasil, 2014, p. 502).
Nesse contexto, grupos de oposição, do MDB à extrema esquerda, pressionaram por um retorno mais rápido à democracia, anistia para presos políticos e punição para membros do regime responsáveis por violações de direitos humanos. Ao contrário, militares da linha dura, como o ministro do Exército de Geisel, Sylvio Frota, e outros na extrema direita, defenderam a manutenção e até o fortalecimento do regime autoritário, e questionaram aqueles que ousaram confrontar a ditadura. Apesar dessas pressões, não se deve perder de vista que a abertura foi um projeto institucional conduzido pelo governo Geisel em prol do regime militar, permitindo que a transição para o regime civil ocorresse apenas em seus termos. Os direitos humanos estiveram no meio dessa batalha, fornecendo um vocabulário capaz de inflamar as críticas internas e externas.
O clamor público pela agenda de direitos humanos era cada vez mais poderoso nos EUA. Alguns congressistas vinham defendendo uma política externa de direitos humanos consistente desde o final da década de 1960, e receberam apoio mais amplo ao longo dos anos 1970 (Keys, 2014). Em 1976, o Congresso dos EUA aprovou a Seção 502B da Foreign Assistance Act [Lei de Assistência Externa], que estabeleceu o fim da assistência de segurança a regimes que perpetraram violações de direitos humanos. No entanto, até Carter assumir o poder, as iniciativas do Congresso nesse sentido foram contornadas, contidas ou mesmo ignoradas (Keys, 2010, p. 825). Kissinger deu entrevistas e fez discursos públicos com palavras calculadas de valorização dos direitos humanos, mas em conversas privadas com ditadores concordou com a repressão contra os opositores do regime.10 Como oito dos doze países sul-americanos eram ditaduras anticomunistas em meados da década de 1970, e como o comunismo era considerado por Kissinger como a maior ameaça à segurança nacional dos EUA, a cúpula do o Departamento de Estado dos EUA sentiu que não havia necessidade de pressionar uma região aliada com o tema de direitos humanos (Rabe, 2020, p. 84-117).
Apesar da leniência de Kissinger com as ditaduras sul-americanas, a pressão transnacional aumentava, e casos relacionados a violações de direitos humanos no Brasil começaram a aparecer em organizações internacionais.11 De fato, a incidência da tortura contra presos políticos no Brasil no início dos anos 1970 tornou-se fundamental para atores transnacionais – de membros progressistas da Igreja Católica à Anistia Internacional – empenhados em moldar um vocabulário ligado aos direitos humanos e implementar estratégias para a defesa de direitos (Kelly, 2018, p. 21-60). A política externa de Geisel desenhou um esquema estruturado para lidar com os direitos humanos. No âmbito do Itamaraty, criou-se, em meados da década de 1970, um grupo interministerial para refletir estrategicamente sobre o assunto. Esse grupo sugeriu uma política para responder a certos questionamentos e disseminar informações sobre o Brasil, bem como uma atenção “prioritária e permanente” aos direitos humanos na ONU e na Organização dos Estados Americanos (OEA).12 O governo brasileiro não foi, portanto, pego de surpresa em 1977, quando a Anistia Internacional ganhou o Prêmio Nobel da Paz e Jimmy Carter se tornou presidente dos EUA.
Carter posicionou tanto a não proliferação nuclear quanto os direitos humanos no centro de sua campanha eleitoral e, assim, o Brasil se tornou um alvo (Schoultz, 2000). Um episódio em particular se tornaria um marco nas relações bilaterais a esse respeito. Dois meses após a posse de Carter, em 4 de março de 1977, um diplomata estadunidense entregou um documento ao Itamaraty, em Brasília. Tratava-se de um relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, elaborado durante o governo Ford, sob instruções do Congresso, em resposta à Seção 502B da Foreign Assistance Act. O conteúdo foi equilibrado: reconheceu melhorias em termos de direitos humanos no país e que a “liberalização [política tinha] sido real, mas gradual”13 sob Geisel. O relatório citou documentos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da ONG Anistia Internacional e do Comitê Internacional de Juristas, embora não tivesse adotado declarações dessas entidades na íntegra (Power, 1986, p. 95-96).
Tendo interpretado o relatório estadunidense como uma grave interferência na soberania brasileira, o governo Geisel reagiu com raiva e rapidez: no dia seguinte, Brasília informou a Washington que estava denunciando o acordo militar de 1952 com os Estados Unidos.14 Ambos os serviços diplomáticos levaram a batalha à imprensa e divulgaram notas reforçando suas narrativas. O embaixador dos EUA, John Crimmins, destacou que ficou surpreso com a reação brasileira. Os representantes brasileiros, por sua vez, afirmaram que o relatório estadunidense era uma “violação ao princípio da não interferência” – um oficial de alto escalão chegou a afirmar que o documento não era “digno de figurar nos arquivos do governo brasileiro”.15
Mas, na prática, o que significou o acordo militar Brasil-EUA de 1952? Ele facilitou principalmente a compra de armas estadunidenses pelo Brasil por meio de ajuda militar e permitiu o treinamento de tropas brasileiras em escolas militares dos EUA. Geisel afirmou mais tarde que a qualidade das armas fornecidas pelos EUA era questionável, e que as missões americanas no Brasil serviam principalmente para coleta de informações (D’Araújo; Castro, 1997, p. 301). De fato, confirmando de alguma maneira as observações de Geisel, a percepção que os militares estadunidenses tinham na época era de que o acordo era essencial para a segurança nacional dos EUA, especialmente porque mantinha os militares estadunidenses em contato próximo com seus homólogos brasileiros.16 Embora Geisel tenha apresentado o acordo como algo não essencial para o Brasil (assunto que ainda carece de mais estudos e está fora do escopo deste artigo), a forma como ele foi denunciado foi bastante significativa. O movimento sinalizou para Washington o nível de descontentamento brasileiro com a política externa de Carter. Além disso, tendo em vista o quanto os direitos humanos foram um assunto sensível ao longo do processo de abertura, a abordagem dura de Geisel em relação aos Estados Unidos também poderia ser interpretada como uma forma de contornar a questão ao despertar sentimentos nacionalistas internos. O episódio foi celebrado por nacionalistas de direita e por membros da esquerda como uma reação ao imperialismo estadunidense, e ambos os partidos políticos aplaudiram o movimento diplomático.17
Foi nesse contexto conturbado que Carter decidiu inserir o Brasil em uma turnê latino-americana de sete países feita pela primeira-dama em junho de 1977. Mesmo que essa viagem devesse incluir apenas países que respeitavam os direitos humanos ou que tivessem demonstrado melhorias recentes significativas a esse respeito (razão pela qual a Argentina e o Chile ficaram de fora), o Brasil foi contemplado. A questão é se Rosalynn Carter traria os direitos humanos nas discussões bilaterais, algo que poderia agravar ainda mais as tensões entre os dois países após o relatório dos EUA sobre o Brasil e a denúncia do acordo Brasil-EUA de 1952.
O consenso interno temporário no Brasil após o cancelamento do acordo militar Brasil-EUA a confirmou a o presidente Geisel e ao chanceler Azeredo da Silveira o acerto do tom confrontacional frente aos Estados Unidos, associando fala sobre direitos humanos de Washington a uma ameaça à soberania do país.18 Rosalynn Carter foi recebida no Brasil de forma protocolar e fria. No aeroporto de Brasília, segundo a imprensa, ela foi acolhida por Silveira com uma única frase (Power, 1986, p. 114). Ela se encontrou com Silveira no dia 6 de junho e com o presidente brasileiro no dia seguinte. Tanto Geisel quanto a primeira-dama lembram a tensão durante as conversas (Carter, 1994, p. 215-216; D’Araújo; Castro, 1997, p. 351). Segundo Elio Gaspari (2004, p. 392), que teve acesso privilegiado aos arquivos pessoais de Geisel, o presidente se sentia particularmente desconfortável em discutir assuntos de Estado com uma mulher, fato caracterizado por Silveira como uma incompreensão psicológica da visão de mundo militar (Spektor, 2010, p. 164-165). Em suas memórias, Rosalynn Carter (1994, p. 215) escreveu que sua viagem ao Brasil “foi a mais difícil de todas”, pois o “regime militar não estava feliz com [seu] marido”.19
O conteúdo das conversas sobre direitos de Rosalynn Carter com Silveira e Geisel foi semelhante. Por um lado, ela ressaltou a importância da América Latina na política externa de seu marido e a necessidade de fortalecer o Memorando de Entendimento de 1976 com o Brasil. De outro, seguindo as instruções que recebera, Rosalynn Carter procurou colocar os direitos humanos no centro da política externa dos EUA – uma mensagem recebida como acusação por seu público brasileiro.20 Um “profundo compromisso com os direitos humanos” era o primeiro princípio que guiava a nova administração, disse ela.21 Segundo a primeira-dama, a diplomacia estadunidense havia mudado: “no passado, o temor excessivo do comunismo levara os Estados Unidos a apoiarem qualquer ditador”, apontou Rosalynn a Silveira, mas “haveria agora um maior otimismo de que ‘a História está do lado da liberdade’”, e um ponto fundamental a ser observado era “o apego aos direitos humanos em todas as partes do mundo”.22 O conteúdo da mensagem de Rosalynn Carter é notavelmente semelhante nos relatos estadunidense e brasileiros de seu encontro com Geisel e Silveira. Com um tom cauteloso, mas ousado, ela colocou os direitos humanos e a proliferação nuclear no topo de suas prioridades. Foi uma virada significativa na política externa dos EUA, com particular significado para as ditaduras latino-americanas.
Durante as conversas, Silveira e Geisel puseram em prática a estratégia da ditadura brasileira para lidar com o tema dos direitos humanos. Em primeiro lugar, não se opuseram aos direitos em si e nem minimizaram sua importância. Ao contrário, Silveira considerava o tema “essencial”, e Geisel considerava que os direitos humanos eram de “importância extraordinária” para o Brasil; na verdade, disse o presidente, ambos os países partilhavam “uma coincidência de opiniões essencial [sic] e fundamental” sobre o assunto.23 Ao não denunciar o tema por completo, a diplomacia brasileira esperava continuar seu engajamento com ele e apresentar seu entendimento sobre o que significavam esses direitos. Além disso, reconhecer a importância dos direitos não significava uma confissão do regime sobre o que estava acontecendo no Brasil. Como Médici antes deles, tanto Silveira quanto Geisel negaram a prática de tortura e outros crimes hediondos, embora relatos de tortura, mortes e desaparecimentos continuassem aparecendo. Silveira chegou a dizer à primeira-dama que não era apenas “absurdo” falar em tortura e assassinatos políticos no Brasil, mas que também se deveria observar a “ampla liberdade de opinião” na imprensa e no Congresso, bem como a tolerância que o governo estava tendo com as mobilizações estudantis.24 Mais uma vez, isso estava muito longe da realidade, tendo em vista não apenas a reforma autoritária que o governo Geisel havia imposto à sociedade meses antes, mas também a manutenção de formas específicas de censura à imprensa (particularmente nos meios de comunicação televisivos) e repressão contra as forças de oposição, particularmente os estudantes.25
Em segundo lugar, a política externa brasileira associou direitos a aspirações de desenvolvimento, políticas de redução da pobreza e contenção da ameaça comunista. Como Geisel disse a Rosalynn Carter, o governo brasileiro “se esforçou para defender os direitos humanos por muitos meios, como avanços básicos nos campos econômico e social”. Geisel citou avanços em moradia, alimentação, educação e saúde, além de uma população crescente que exigia o “direito ao emprego”.26 Destacar o abismo entre ricos e pobres implicava que não se deviam utilizar os mesmos critérios para medir realidades diferentes. O argumento implícito de Geisel de que promessas universais de direitos deveriam ser consideradas dentro das realidades locais era uma justificativa contra a interferência estrangeira.
Geisel e Silveira também lembraram a Rosalynn Carter a luta contra o comunismo. Eles ressaltaram os então recentes discursos em que Carter minimizou a ameaça comunista e apresentou a intenção de buscar melhores relações com Moscou. Jimmy Carter poderia estar certo sobre o medo excessivo do comunismo nos EUA, alegou Geisel, mas a situação no Brasil era diferente. Ao contrário dos EUA, onde a sólida base socioeconômica tornava o país imune à subversão, a pobreza no Brasil poderia ser terreno fértil para ideias comunistas, disse o presidente brasileiro. Mesmo quando pressionado por Rosalynn Carter, que alegou que “as democracias desenvolvidas não são livres porque são econômica e socialmente fortes, mas são econômica e socialmente fortes porque são livres”, Geisel insistiu que “o Brasil tem que lidar com infiltrações internas e enfrenta as fragilidades internas que os EUA não enfrentam”.27 O discurso da ameaça comunista continuou a ser empregado pela alta cúpula militar no Brasil, mesmo durante o chamado processo de abertura (Gaspari, 2002, p. 396-397; p. 462-464).
Uma terceira estratégia de política externa do governo brasileiro para resistir à pressão estadunidense foi situar os direitos humanos como um tema a ser tratado apenas em um espírito de cooperação estatal, e não como uma ferramenta a ser usada por um Estado contra outro, como os EUA vinham fazendo – pelo menos segundo a visão das autoridades brasileiras. Em relação a esse assunto, Rosalynn Carter elogiou os esforços internos de Geisel em direção a um maior liberalismo político e ponderou que o Brasil, “como potência emergente”, deveria ter um papel de destaque na defesa do “novo espírito no mundo em relação aos direitos humanos”. Em seguida, perguntou se o governo brasileiro teria condições de assinar a Convenção Americana de Direitos Humanos – gesto que “sinalizaria ao mundo inteiro” a adesão do Brasil a esse “novo espírito”. Novamente, seguindo rigorosamente as instruções que recebera, esse foi o pedido mais explícito sobre direitos feito durante a visita da primeira-dama.28
A resposta de Geisel é reveladora. Primeiro, o presidente lembrou o compromisso do Brasil com os direitos humanos nas Nações Unidas. Ele mencionou especificamente a eleição do Brasil para a Comissão de Direitos Humanos da ONU (na véspera, Silveira sustentou que isso constituía um exemplo da concordância da comunidade internacional com a abordagem do país).29 Os direitos deveriam ser tratados em um contexto global, não hemisférico, sugeriu Geisel. Aliás, a diplomacia brasileira preferia enfrentar o tema na ONU e não na OEA, dada a influência estadunidense sobre esta última. Sobre a Convenção Americana, Geisel não deixou margem para dúvidas: seu governo não a assinaria. “Era uma questão de soberania, enfatizou ele [Geisel]”.30 Colocar os direitos como prerrogativa absoluta dos Estados nacionais foi crucial para evitar a interferência estrangeira nas políticas da ditadura brasileira. Essa estratégia, porém, não era nova. Pelo contrário, já havia sido empregada antes para blindar a ditadura de acusações externas (Green, 2010, p. 143-175).
Por fim, a diplomacia brasileira utilizou a carta da “democracia racial”, mudando o foco da questão, e fazendo do acusador o acusado. Como ressaltou Geisel a Rosalynn Carter, a melhor característica do compromisso do Brasil com os direitos humanos é “a ausência de discriminação racial e religiosa” no país. O Brasil seria “um exemplo para o mundo”, dada a harmonia de sua “sociedade multirracial”. A primeira-dama admitiu que os EUA tinham problemas dessa natureza, apesar dos esforços recentes para tratar deles.
A diplomacia brasileira sustentou fortemente a imagem do Brasil como o país em que existia uma “democracia racial” – uma narrativa que começou durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), mas que se consolidou durante a ditadura militar de 1964 a 1985 (Guimarães, 1999; Dávila, 2010).31 Ao sugerir que o Brasil era um modelo quando se tratava de direitos relacionados à raça – embora a sociedade brasileira fosse e ainda seja uma das mais racistas do mundo –, o governo Geisel buscou desarranjar as alegações estadunidenses sobre direitos humanos. Também sugeriu que o Brasil poderia apontar o dedo aos EUA em relação ao assunto e indiciar o indiciador. Isso mostra que a política externa brasileira não foi exceção em termos de instrumentalização do discurso de raça e direitos – como tem sido feito em outras esferas da política interna (Guimarães, 1999, p. 66) – a fim de defender as práticas de tortura e repressão política do regime ditatorial.
Se nos voltarmos à diplomacia pública de Rosalynn Carter durante sua visita ao Brasil, sua iniciativa pode ser vista como mais bem-sucedida do que as difíceis interações bilaterais que teve com Geisel e Silveira. O Brasil passava por um período turbulento, com grandes manifestações estudantis contra o regime (Napolitano, 2014, p. 255-279). Durante a estadia de Carter, ativistas conseguiram entregar secretamente à sua equipe uma carta em nome dos alunos da Universidade de Brasília (UnB), cujo campus havia sido fechado por ordem do reitor. Therezinha Zerbini (1979 p. 15), fundadora do Movimento Feminino pela Anistia, também entregou uma carta a Rosalynn elogiando a postura do governo Carter em relação aos direitos humanos. Após sua breve estadia em Brasília, a primeira-dama viajou para o Recife e aceitou receber dois missionários estadunidenses que haviam sido presos e torturados pela polícia. O governo brasileiro não foi avisado previamente dessa reunião, que seria veiculada nos telejornais estadunidenses, e uma foto do grupo apareceu na primeira página do New York Times e do Washington Post no dia seguinte (Power, 1986, p. 114).
Apesar das dificuldades, Rosalynn Carter escreveu sobre sua visita ao Brasil com otimismo. Em sua avaliação, o processo de abertura era promissor, e a política de direitos humanos dos EUA havia atingido seus objetivos na América Latina (Carter, 1994, p. 217-218; p. 224-225). Em um artigo publicado, o conselheiro de Segurança Nacional de Carter para a América Latina e o Caribe, Robert Pastor (1986), também considerou a viagem um sucesso. Essa foi, igualmente, a posição de Pastor durante o período em que a visita ocorreu, como mostram correspondências confidenciais. Segundo ele, os EUA alcançaram muitos setores da sociedade, incluindo membros da oposição política, estudantes, imprensa, igreja e empresários, e estavam ajudando a promover mudanças.32
A avaliação dos resultados da viagem depende de seus objetivos iniciais. Se a meta principal era reforçar o apoio social à oposição, a presença de Rosalynn colocou os direitos humanos na agenda pública e sinalizou que o apoio de Washington à ditadura militar não era mais incondicional. Ainda que seja extremamente difícil mensurar o quão influente teria sido a visita de Rosalynn em termos do aumento das esperanças e do vigor de grupos locais de oposição, não é descabido supor que ela deixou sua marca em muitos setores da sociedade civil brasileira, apoiando a luta pela democracia e pelos direitos humanos. Por outro lado, se a política externa de Carter pretendia mudar o comportamento do governo brasileiro, ou obter dele algumas concessões, a viagem teve um impacto limitado. De fato, como sugerem os encontros subsequentes, Silveira e Geisel tornaram-se mais ferozes contra as pressões estadunidenses sobre os direitos humanos, e o tema minguou na agenda bilateral privada, mesmo que continuasse a ser o foco da diplomacia pública dos EUA em relação ao Brasil.
Após a visita de Rosalynn Carter, ambas as partes tentaram suavizar as tensões e atualizar o Memorando de Entendimento bilateral de 1976. A correspondência entre Brasília e Washington mostra, contudo, a grande distância entre eles, especialmente nas questões nucleares (Spektor, 2007, p. 260-261). Como a relação bilateral estava desgastada, Carter decidiu enviar seu principal diplomata, Cyrus Vance, a Brasília no final de 1977.
Antes de vir ao Brasil, o secretário Cyrus Vance encontrou o chanceler Silveira duas vezes. Eles se conheceram em Granada durante uma conferência da OEA em junho e depois se encontraram em Nova York em setembro, na Assembleia Geral da ONU. Na ilha caribenha, falaram principalmente sobre a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. As autoridades estadunidenses queriam fortalecer a organização e estavam pressionando para aumentar seu financiamento (Bernardi, 2018). Silveira repetiu alguns dos mesmos argumentos que já haviam sido apresentados à esposa de Carter. O Brasil não se posicionava abertamente contra uma iniciativa de direitos humanos; apoiava a Comissão, mas acreditava que dar dinheiro a uma seção especializada prejudicaria a organização no seu conjunto.33 Além disso, Silveira argumentou que o Brasil desconfiava da neutralidade da Comissão e questionou especificamente a ONG Anistia Internacional, “que todo mundo teme atacar por medo de perder uma eleição”. O chanceler brasileiro também voltou a evocar o argumento racial e acrescentou que “o Brasil só assinaria a Convenção quando pudesse cumprir suas disposições, ao contrário de alguns países”. Ele concluiu dizendo que, se a CIDH visitasse o Brasil, “veria milhares de coisas boas, mas daria publicidade apenas a uma ou duas outras coisas que viu”.34
Como o Brasil não estava suavizando sua posição em conversas privadas, pode-se questionar se estava enviando sinais positivos pelo menos por meio de discursos públicos. Se essa era a expectativa do governo Carter, a próxima Assembleia Geral da ONU provou que ela estava errada. Em setembro de 1977, Silveira dedicou grande parte de sua aparição na ONU aos direitos humanos. O conteúdo de sua fala foi semelhante a conversas privadas anteriores entre EUA e Brasil. Segundo Silveira (2013, p. 442-443), o tratamento do tema deveria “abranger não apenas aspectos civis e políticos, mas também questões sociais e econômicas, como o direito à alimentação, à educação, à cultura, ao trabalho, a uma vida livre do pauperismo e ao sustento na velhice”. Silveira também argumentou que a “solução dos problemas dos direitos do homem é de responsabilidade do governo de cada país”, e nenhum país deve “gozar do status de juiz de outros países”.35
A mensagem parecia clara. O Brasil não só não dava sinais públicos de desescalada das tensões sobre o tema, como também fazia insinuações contra a diplomacia dos direitos de Carter. Em discussões privadas, no entanto, as percepções dos EUA sobre a posição do Brasil foram diferentes. Semanas antes da visita do secretário de Estado Cyrus Vance ao Brasil, em novembro de 1977, Anthony Lake, diretor da equipe de planejamento de políticas dos EUA, relatou as interações diplomáticas Brasil-EUA ocorridas no início de outubro, sob a égide das consultas previstas no Memorando de Entendimento de 1976. Segundo Lake, a visão do Brasil sobre direitos humanos durante as negociações deixou a delegação americana “agradavelmente surpresa”, já que os brasileiros “evitaram atacar nossas posições firmemente declaradas sobre direitos humanos, exceto para argumentar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos deveria ser normativa, não julgadora”. Lake concluiu que “essa visão mais relaxada sobre os direitos humanos [por parte das autoridades brasileiras] pode refletir os sussurros dos ventos liberalizantes dentro do Brasil, bem como seu desejo de se dissociar da linha dura do Cone Sul”.36
Essa percepção poderia ter feito o secretário Vance acreditar que os brasileiros estariam mais abertos a falar sobre direitos durante sua visita ao país no mês seguinte (22 e 23 de novembro de 1977), mas não foi o caso. De fato, a visita do secretário de Estado dos EUA centrou-se claramente em questões nucleares. Nem Vance nem Geisel mencionaram direitos humanos durante o almoço do primeiro dia.37 Não está claro por que o secretário Vance não abordou o tema com Geisel. Talvez Vance estivesse planejando destacar a questão nuclear com o presidente e guardar o outro tema para o encontro com Silveira.
Uma gafe diplomática pode, entretanto, ter mudado os planos de Vance. Vance deixou suas instruções no Palácio do Planalto – um movimento interpretado como um lapso por Silveira, que as devolveu à embaixada, mas não antes de fazer uma cópia.38 Nas instruções de Vance, fica claro que os dois principais objetivos dos EUA ainda eram a energia nuclear e os direitos humanos, e não apenas a energia nuclear, como se poderia concluir pelo menos com base nos pontos levantados por Vance em seu encontro com Geisel. Em relação aos direitos humanos, tratava-se de trazer para a discussão uma série de questões que certamente teriam gerado sérios atritos com o governo brasileiro. Isso incluía o caso de 15 presos políticos que foram sistematicamente torturados pelo Estado e a atitude do Brasil em dificultar o trabalho de ONGs de direitos humanos como a Anistia Internacional.39 Com exceção do pedido da primeira-dama para que o Brasil assinasse a Convenção Americana de Direitos Humanos, Rosalynn Carter abordou a questão dos direitos humanos com autoridades brasileiras apenas em termos gerais. As instruções de Vance representaram um passo adiante, ao mencionar casos concretos e particulares.
À semelhança do que havia acontecido com o presidente Geisel, no entanto, durante as conversas formais do secretário Vance com Silveira, os direitos humanos surpreendentemente permaneceram um tema marginal, e nenhum ponto específico sobre o assunto foi levantado.40 Quando conversaram de forma privada, porém, Vance voltou a falar sobre direitos humanos, mas de maneira geral. Isso provocou Silveira de tal forma que o ministro brasileiro decidiu resolver a questão apresentando uma resposta extraordinariamente dura ao seu interlocutor estadunidense – algo raro em interações diplomáticas. Silveira declarou que o Brasil não se opunha aos direitos humanos como objetivo, mas aos métodos utilizados pelo governo Carter. Depois de mencionar que nenhum governo estrangeiro poderia ser “juiz” ou “conselheiro político” sobre um assunto tão “íntimo da vida nacional”, o chanceler brasileiro apontou que os EUA estavam dando “um tratamento mais complacente” aos países socialistas que a seus aliados. O ministro brasileiro concluiu dizendo que não poderia mais aceitar “qualquer diálogo que partisse do pressuposto de que o Brasil e os EUA tinham algo a discutir, em termos bilaterais, sobre a questão dos direitos humanos”, e que o secretário de Estado deveria considerar a conversa sobre esse assunto “concluída”.41
O Brasil interpretou sua dura resistência como uma vitória diplomática. Silveira entendeu que a retórica dos direitos estava sendo minimizada após as conversas com Vance. Em comparação com outros temas, disse Silveira, os direitos humanos têm “um tratamento secundário, quase perfunctório” na agenda de Washington. “[A] questão nuclear é a de maior importância substantiva para a administração Carter”, ponderou, e “sempre que necessário, os demais temas, inclusive os direitos humanos, passam ao plano secundário, podendo mesmo se transformar em instrumento político para o encaminhamento das questões nucleares”.42 O encontro com Vance reforçou a avaliação de Silveira de que os direitos humanos estavam sendo usados como “instrumento político” para tratar de outros temas, como a não proliferação. A diplomacia brasileira parecia mais segura em relação às suas estratégias.
A percepção dos EUA sobre o assunto, no entanto, foi diferente. As autoridades do país ainda queriam continuar pressionando o Brasil em relação aos direitos humanos, mas decidiram mudar o foco para uma perspectiva apenas de diplomacia pública. A visita do presidente Carter ao Brasil, em março de 1978, deixaria clara essa decisão.
Os preparativos para a visita de Carter ao Brasil provocaram debates importantes entre autoridades americanas sobre como Washington deveria lidar com a questão dos direitos humanos com o governo Geisel. Mesmo antes da viagem do secretário Vance, no final de novembro de 1977, a principal questão girava em torno de se Carter deveria se encontrar com os ativistas brasileiros em sua visita no ano seguinte. O diretor de Assuntos Latino-Americanos e Caribenhos do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, Robert Pastor, escreveu ao conselheiro de Segurança Nacional de Carter, Zbigniew Brzezinski, ainda em novembro de 1977, dizendo que o embaixador dos EUA no Brasil, John Crimmins, estava pressionando para que Carter oferecesse apenas uma entrevista coletiva enquanto estivesse no Brasil, pois “uma recepção que inclua várias pessoas conhecidas por falarem abertamente sobre direitos humanos [seria] necessariamente uma afronta ao governo brasileiro”. Pastor, por outro lado, defendeu a realização de uma conferência de imprensa e uma recepção, e interpretou a pressão que Brasília estava exercendo sobre Crimmins como apenas uma forma de os brasileiros enviarem “avisos de que poderiam considerá-la [a recepção] insultuosa apenas para mantê-la moderada”. Além disso, argumentou Pastor, “[havia] demandas fortes e justificáveis” para que Carter se reunisse diretamente com os ativistas brasileiros de direitos humanos, especialmente o arcebispo de São Paulo, cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Pastor anexou ao memorando uma carta assinada por oito acadêmicos estadunidenses especialistas no Brasil exigindo que o presidente dos EUA se encontrasse com o cardeal Arns durante sua visita ao país. De acordo com a carta dos acadêmicos, esse encontro “animaria todos os brasileiros que compartilham de sua fé comum ‘nos direitos humanos fundamentais’”.43
Ao fim e ao cabo, a Casa Branca decidiu que Carter ofereceria tanto uma entrevista coletiva quanto uma recepção aos ativistas brasileiros, incluindo o cardeal Arns. Antes de Carter fazer sua viagem ao Brasil, o conselheiro de Segurança Nacional Brzezinski alertou o presidente dos EUA para que não fizesse observações específicas às autoridades brasileiras sobre o tema. “A fórmula que tem sido usada efetivamente pela Sra. Carter e por Cy [secretário de Estado Cyrus Vance] durante suas viagens é fazer declarações gerais sobre direitos humanos e democratização e evitar comentários específicos sobre os acontecimentos políticos no Brasil”. Brzezinski destacou que o encontro de Carter com o cardeal Arns e a coletiva de imprensa – e não as interações bilaterais com autoridades brasileiras – seriam os melhores locais para Carter “levantar essas questões [sobre direitos humanos] diretamente para o povo brasileiro”.44 O secretário Vance também enviou um memorando a Carter antes de sua viagem, destacando pontos semelhantes. Embora Vance tenha visto as relações Brasil-EUA em uma forma pior do que Brzezinski (as relações melhoraram, disse ele, mas “o Brasil continua desconfiado de nossas intenções básicas” em relação aos direitos humanos), o secretário de Estado dos EUA enfatizou que o encontro de Carter “com o cardeal Arns, mesmo que informal e em um ambiente coletivo difuso, fornece um forte sinal de apoio aos direitos humanos brasileiros e irrita o governo brasileiro”. Nesse sentido, concluiu Vance, Carter deveria abordar “o Brasil com sutileza e discrição, reconhecendo sua hipersensibilidade”.45
De fato, Jimmy Carter e Geisel se encontraram três vezes durante a visita do presidente estadunidense ao Brasil, no final de março de 1978. Os direitos humanos não foram mencionados de forma alguma durante a primeira cúpula presidencial.46 No segundo encontro, um jantar no Palácio da Alvorada, Geisel foi quem os abordou. Lembrando os desafios socioeconômicos do Cerrado, Geisel afirmou que era preciso priorizar direitos básicos como alimentação, assistência médica, educação e moradia. Mais uma vez, o presidente brasileiro indicou que não havia discordância entre os dois países; eles apenas enfrentavam problemas diferentes. Não há registro do que Jimmy Carter respondeu, nem em fontes brasileiras, nem nas estadunidenses. Quando Carter mudou de assunto e perguntou se os países poderiam restabelecer relações militares, Geisel respondeu que o Brasil o faria de bom grado, mas não aceitaria mais críticas do Senado dos EUA, como as que recebera em março de 1977. Era uma “questão de orgulho e de soberania nacional”. Curiosamente, embora a lei estadunidense exigisse que os beneficiários da ajuda militar dos EUA fossem submetidos a inspeções anuais pelo Departamento de Estado, Carter concordou com seu homólogo.47
O encontro final entre os presidentes dos EUA e do Brasil foi bastante produtivo, mas na frente nuclear. Durante as conversas de Carter com Geisel, não houve qualquer pressão sobre questões de direitos – nem mesmo de caráter geral, como havia acontecido durante a visita de Rosalynn Carter no ano anterior. A única breve menção ao assunto ocorreu quando Carter disse que os jornalistas o questionaram sobre isso em uma entrevista coletiva mais cedo naquela manhã.48
A imprensa, porém, contou uma história diferente. O New York Times noticiou que, desde sua chegada, Carter pretendia “falar francamente” aos brasileiros sobre direitos.49 Um funcionário do governo disse a um repórter do Los Angeles Times que, em conversas a portas fechadas com Geisel, foi discutido que o Brasil deveria “permitir que equipes de investigação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos entrassem no Brasil para investigar alegações de violações de direitos humanos”.50 Não há registros de tal pedido, nem nos arquivos brasileiros, nem nos estadunidenses. O tema é mencionado apenas em um comunicado de imprensa conjunto, mas de forma breve e associada exclusivamente à posição de Carter.51
Se as autoridades dos EUA renunciaram a falar sobre direitos em conversas privadas, o mesmo não aconteceu em ambientes públicos. Após sua agenda oficial, a comitiva estadunidense seguiu para a cidade do Rio de Janeiro, onde Carter ofereceu uma recepção a ativistas de direitos, como os cardeais Evaristo Arns e Eugenio Salles, além do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Raymundo Faoro. O cardeal Arns, um dos mais enérgicos ativistas de direitos humanos do Brasil e principal organizador do Brasil: Nunca Mais (Arquidiocese, 1985), chegou a acompanhar o presidente Carter em seu trajeto de uma hora até o aeroporto. Se a possibilidade de um encontro público com o cardeal Arns em meio a outros ativistas de direitos humanos já provocava Brasília, pode-se imaginar a reação do governo brasileiro ao fato de o presidente estadunidense ter aceitado ter uma interação bilateral privada com Arns. Em seu retorno, o cardeal Arns encontrou mais de cinquenta jornalistas, que lhe perguntaram sobre o encontro. Ele revelou que discutiram temas de direitos humanos, como a censura à publicação da arquidiocese e os presos políticos desaparecidos desde 1971, e que também forneceu documentos sobre outras violações de direitos no Brasil.52
A recepção com ativistas de direitos humanos no Rio de Janeiro e o encontro presencial de uma hora com o cardeal Arns, no mesmo momento em que o tema desapareceu das reuniões privadas de Geisel e Carter, representa perfeitamente a mudança de atenção do governo Carter de uma abordagem bilateral para outra de diplomacia pública sobre direitos humanos no Brasil. Apesar de algumas declarações públicas inverídicas a jornalistas feitas por autoridades estadunidenses, após dois encontros bilaterais difíceis (de Rosalynn Carter e Cyrus Vance), Washington decidiu não mais pressionar autoridades brasileiras de forma privada sobre as violações de direitos humanos do país e a posição internacional do Brasil sobre direitos.
Do lado brasileiro, o governo Geisel demonstrou resiliência. As três cúpulas mostraram como os direitos humanos passaram de uma disputa bilateral crucial para uma questão menor, pelo menos em compromissos privados. O deslocamento dos EUA em direção ao escrutínio público, embora não tenha representado uma ruptura completa, tendo em vista que as cúpulas privadas continuaram, não pareceu obstruir as relações diplomáticas EUA-Brasil. O arrefecimento dos direitos humanos como um tema prioritário pode ter constituído um fator importante para o fortalecimento do projeto militar de articular um tipo de transição para o governo civil e a democracia que não levasse à responsabilização dos membros do regime responsáveis por graves violações de direitos humanos.
A política externa brasileira em relação aos direitos humanos durante os 21 anos de ditadura foi estruturada para blindar Brasília contra acusações e interferências estrangeiras. O presidente Geisel e sua equipe responsável pelas decisões de política externa estavam cientes da tortura e de outras atrocidades cometidas no Brasil, mas as negaram.53 Sua resposta às demandas relativas aos direitos humanos foi, contudo, mais sofisticada do que a mera negação: desde seus estágios iniciais, a política externa de Geisel construiu estratégias argumentativas para resistir à linguagem dos direitos. Suas políticas são melhor compreendidas dentro de um contexto mais amplo de interesses, como o desenvolvimento da energia nuclear e o processo de abertura. Acusações de violações de direitos humanos poderiam ter comprometido a estratégia política do governo enquanto orquestrava o lento retorno ao governo civil. Os embates com a política externa de Jimmy Carter analisados neste artigo mostram como se estruturou a resposta da diplomacia ditatorial aos direitos humanos e como ela estava intrinsecamente ligada ao caráter repressivo do regime.
Quando Ronald Reagan – um cético em relação à priorização dos direitos humanos nas relações com as ditaduras latino-americanas – ocupou a presidência dos EUA, as ONGs assumiram a liderança em constranger os governos autoritários da região, mas tinham meios limitados para desempenhar um papel mais significativo na política global. No fim das contas, a abertura no Brasil foi efetivada sem ter os direitos humanos como fator central: quando a Lei de Anistia de 197954 libertou presos políticos e menos casos de violações contra dissidentes foram denunciados, o preço político para a democracia foi uma anistia que incluía os perpetradores; um preço cujas consequências lamentáveis persistem ainda hoje.
Por outro lado, o gosto amargo de como o governo Carter lidou com os direitos no Brasil sob Geisel – mesmo levando em consideração que passou de uma diplomacia público/privada em 1977 para apenas uma diplomacia pública em 1978 – deixou consequências de longo prazo para as relações Brasil-EUA. Seis anos após o fim da presidência de Geisel, quando o Brasil tinha seu primeiro presidente civil em 21 anos (o ex-presidente da ARENA José Sarney), as autoridades estadunidenses ainda lembravam ao presidente Reagan que os brasileiros (leia-se os oficiais militares do Brasil) não tinham se esquecido de Carter e de sua agenda de direitos humanos. O representante de Comércio dos EUA, embaixador Claytton Yeuter, confirmando um ponto que acabara de ser levantado por Casper Weinberger, secretário de Defesa de Reagan, afirmou que “as implicações da política de direitos humanos [de Carter] [...] [aparecem] com frequência em nossas discussões [com brasileiros] durante as negociações. Eles nunca a esqueceram. Ela permeia todas as nossas relações com eles”.55
Nesse sentido, mesmo que não se possa afirmar que a abordagem Carter dos direitos humanos no Brasil determinou o ritmo e a natureza do processo de abertura – apesar de provavelmente ter proporcionado esperança e resiliência aos defensores dos direitos humanos do país –, ela certamente deixou uma cicatriz profunda nas interações bilaterais. Em suas estratégias para lidar com Carter, o presidente Geisel e o ministro Silveira comumente deixaram subentendido que a carta de direitos humanos deveria ser devolvida ao remetente por vários motivos – desde questões de soberania nacional até a falta de adequação do fórum de discussão, da necessidade de incluir os direitos sociais e econômicos na discussão de direitos às violações que os EUA infligiram à sua própria população, particularmente cidadãos negros. As cicatrizes de longo prazo mostraram que a carta foi devolvida, pelo menos durante as discussões privadas entre os presidentes Geisel e Carter a partir de 1978, mas as autoridades militares brasileiras prontamente tomaram nota do endereço do remetente e não o esqueceram facilmente.
A pesquisa que sustenta este trabalho foi viabilizada pelas seguintes bolsas de pesquisa: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG, processo nº 201810267001720), Convênio PPGIDH/UFG e SENASP/MJSP (Edital n. 27/2023, processo nº 08020.005439/2023-05), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo nº 2022/07232-3). Agradecemos também aos dois pareceristas anônimos de Varia Historia por seus comentários e sugestões. Possíveis erros remanescentes são de nossa exclusiva responsabilidade.