ARTIGO
Received: 8 November 2023
Revised: 14 May 2024
Accepted: 9 August 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/0104-87752024v40e24022
RESUMO: Este artigo analisa a legislação militar do nascente Império do Brasil e como ela foi aplicada na província meridional de Santa Catarina entre 1821 e 1824, período que abarca os primeiros anos de estruturação do estado que surgia da crise colonial. O argumento defendido é que, enquanto ocorriam disputas armadas naquele período – que podem ser chamadas de guerra de independência –, ocorria, concomitantemente, a montagem de uma legislação militar que desse conta das necessidades bélicas frente a tropas fiéis a Portugal. A conclusão a que se chega é a de que as autoridades articularam e manejaram as decisões para adequá-las às suas próprias realidades, inserindo a província na estrutura estatal brasileira a seu próprio modo. As fontes utilizadas e que, em conjunto, permitiram uma análise a partir dos preceitos da História Militar, são decretos e decisões imperiais, e os ofícios trocados entre as autoridades responsáveis pela atividade militar em âmbito provincial e imperial, constantes nos acervos do Arquivo Nacional/RJ, no Arquivo Histórico do Exército/RJ, e no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC).
Palavras chave: guerra de independência, legislação militar, Santa Catarina.
ABSTRACT: This article analyzes the military legislation of the nascent Empire of Brazil and how it was applied in the southern province of Santa Catarina between 1821 and 1824, a period that covers the first years of structuring of the state that emerged from the colonial crisis. The argument defended is that while armed disputes were taking place in that period – which can be called of war of independence –, there was at the same time the creation of military legislation that would meet the military needs faced by troops loyal to Portugal. The conclusion reached is that the authorities articulated and managed the decisions to adapt them to their own realities, inserting the province into the Brazilian state structure in their own way. The sources used, which together allowed an analysis based on the precepts of Military History, are imperial decrees and decisions, and the letters exchanged between the authorities responsible for military activity at provincial and imperial levels, contained in the collections of the National Archive/RJ, in the Historical Archive of the Army/RJ, and in the Public Archive of the State of Santa Catarina (APESC).
Keywords: war of independence, military legislation, Santa Catarina.
Em 8 de abril de 1823, a Junta Governativa Provisória da província de Santa Catarina alertava o ministério da guerra que os 2 contos de réis que estavam sendo enviados mensalmente do Tesouro Público para a província não eram suficientes para o pagamento nem de metade da folha militar, que havia crescido muito nos últimos meses. A falta de dinheiro resultava na destruição de “quartéis e armazéns, e deixam-se de fazer obras e preparativos precisos, vindo necessariamente a padecer o serviço público, e os que nele se empregam”1. O aumento nos gastos provinciais refletia a defesa relacionada aos conflitos que se seguiram à ruptura das partes do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e que em Santa Catarina causaram o aumento do contingente militar das tropas profissionais e milicianas, tendo em vista o temor em relação à uma possível expansão dos conflitos que ocorriam na Província Cisplatina (Ferreira, 2012; Schmitt, 2022). Em seguida, no mesmo ofício, a Junta expressava ao ministério da guerra, em tom quase alarmante, que
outras Províncias tem no seu comércio e agricultura recursos inexauríveis, nesta em que é quase nenhum o comércio, e de pouco produto a agricultura, porque nunca foi protegida, não pode haver se não pobreza; e sendo inegável que seus habitantes são leais, e amantes do Nosso Amável Soberano, e verdadeiramente aditos à Sagrada Causa Brasiliense, não podem todavia suprir com estas virtudes o que se não pode haver senão com dinheiro: nestas circunstâncias, espera este Governo de Sua Majestade, e solicita de Sua Grandeza providências com que se melhore o deplorável estado desta Província.2
Ao comparar a província de Santa Catarina com outras partes do Império, os representantes da administração catarinense demonstravam compreender que Santa Catarina representava, ainda que alegadamente em posição inferiorizada, uma parte do corpo político que tomava forma na América; por outro lado, ao afirmarem que os habitantes eram leais e amantes da “causa brasiliense”, mas que era necessário dinheiro para cobrir as despesas militares, ficava implícita a ameaça ao projeto unitário do Império. A Junta sabia, por certo, que o tom adotado lembraria a Corte sobre as dificuldades que o projeto centralizador de Dom Pedro estava enfrentando ainda naquele ano de 1823, que iam muito além da Cisplatina e concentravam-se em províncias do norte como Bahia, Maranhão e Grão-Pará, e que, em conjunto, fazem parte da guerra de independência do Brasil (Franchini Neto, 2015; Machado, 2022).3
Essa característica ajuda a pensarmos o nosso objeto neste artigo: a atividade militar durante os anos de 1821 e 1824, e como a legislação correspondente surgida naqueles anos era interpretada pelas autoridades provinciais na articulação entre a Corte e as províncias. O argumento defendido é o de que ocorreu uma dinâmica de articulação entre os espaços que passavam a formar o Império brasileiro e que, no contexto da guerra de independência do Brasil, as autoridades provinciais e imperiais foram estruturando a legislação militar em uma via de mão dupla, em que as determinações da Corte eram importantes, mas sem deixarem de ser interpretadas e operadas por atores políticos e sociais provinciais. Dessa forma, as idiossincrasias provinciais e locais eram importantes variáveis no momento de se colocar em prática a arregimentação. Assim, este artigo analisa a maneira como a legislação militar dos primeiros anos no Brasil independente era operacionalizada pelos canais de representação e de decisão provinciais, e como isso informa sobre o caráter do estado que começava a se estruturar na década de 1820. Essa experiência foi balizada pelas necessidades que eram adjacentes aos conflitos que ocorriam em diferentes províncias e que, por vezes, extrapolavam a simples lealdade ao Rio de Janeiro ou a Portugal (Machado, 2006; Mello, 2004).
O cenário principal que serve de ponto de partida para as considerações realizadas neste artigo, a província de Santa Catarina, era formado por quatro vilas em 1822. A vila de Lages encontrava-se no planalto, dividido do litoral pela serra geral e com grandes problemas de ligação com a capital. As três vilas litorâneas - São Francisco do Sul, Laguna e a capital Nossa Senhora do Desterro – tiveram os seus estabelecimentos nos séculos anteriores diretamente ligados às atividades de apresamento que levaram à expansão dos paulistas em direção ao Sul (Cardoso, 2013), e serviram de ponto de apoio para as expedições que passavam, de forma oficial ou não, pelos portos estabelecidos na costa. Além de um Corpo de Artilharia e um Batalhão de Caçadores de 1ª linha, no início da década de 1820 a província possuía inúmeras unidades de Milícias e Ordenanças distribuídas por suas vilas e freguesias (Pinheiro, 1978, p. 239; Boiteux, 2016, p. 309), de acordo com a estrutura herdada da antiga capitania subalterna.
Parte-se do princípio, para este estudo, que o viés militar representou uma das faces de estruturação do estado imperial brasileiro (Izecksohn, 1997; Ribeiro, 2013; Souza, 2008). O ano de 1822 foi importante no processo de readequação de poderes, agora delineado pelo constitucionalismo monárquico e pela construção de um aparato estatal que desse conta dessa administração (Silva, 2013; Slemian, 2006; Souza, 1999). Dessa forma, as antigas “pátrias” que formavam as partes da América portuguesa (Jancsó; Pimenta, 2000) se viram inseridas na experiência insurgente que, por décadas, ameaçou a integridade territorial do Império brasileiro (Barman, 1988; Winter, 2022). Tratando transversalmente da formação das tropas durante os primeiros anos do Império, este artigo também busca contribuir com estudos que analisam a participação popular nos movimentos de independência. Esses estudos vêm demonstrando que a formação das tropas não foi uma atividade unicamente vertical, em que sujeitos passivos eram obrigados a pegar em armas (Kraay, 2002; Nogueira, 2009; Souza, 2022), pois eram atribuídos diferentes sentidos pelos contemporâneos às guerras de independência e que levaram indivíduos de diferentes camadas sociais a tentarem tomar parte nas disputas que marcaram a era das revoluções nas Américas (Adelman, 2008).
A LEGISLAÇÃO MILITAR ENTRE O CENTRO E A PROVÍNCIA
Em janeiro de 1822 a cidade do Rio de Janeiro atravessava o auge, até aquele momento, das agitações relacionadas às ações das Cortes lusitanas e ao vintismo. Em 9 de janeiro, o Príncipe Regente havia anunciado a decisão de permanecer na América, criando uma cisão sem precedentes entre as partes do Reino Unido. Dias depois, um Decreto de 30 de janeiro tentava atender a “urgente necessidade que há, nas atuais circunstâncias”, em aumentar o número “da 1ª Linha da Guarnição desta Corte”, buscando “manter a tranquilidade, e segurança pública”. Ao invés de ordenar o recrutamento forçado, o Decreto visava “sujeitos bem-educados, e com princípios de honra”, determinando que “todo e qualquer indivíduo”, que tivesse assentado praça voluntariamente de 1º de janeiro até o fim de junho próximo, “não seja obrigado a servir mais tempo do que o prazo de três anos, findo o qual, serão impreterivelmente demitidos os que assim o desejarem”4. Naquele contexto, Dom Pedro estava agindo para montar sua base de apoio, o que passava por fazer demonstrações públicas de força ao reunir tropas profissionais, milicianas e da população em geral (Souza, 2022, p. 10-13), contrapondo-se a tropas que se alinharam às Cortes e que exigiam o retorno imediato do príncipe para Portugal.
Quase cinco meses depois, as tropas do Regimento de Infantaria de 1ª linha de Santa Catarina estavam retornando da campanha ao Sul, onde estiveram destacadas desde 1811. Com as fileiras esvaziadas depois de onze anos de campanha, era necessário aumentar o número de praças do Regimento. Em 26 de junho – treze dias depois da chegada do Regimento à Ilha – a Junta Governativa escreveu à pasta da guerra, dizendo que:
Como pode acontecer que haja aqui alguns moços, que queiram assentar praça no Regimento de Linha; para os animar, a Junta solicita de Sua Alteza Real a Graça de fazer extensiva a esta Província a providência dada para a do Rio de Janeiro no Decreto de 30 de Janeiro deste ano, que determina sirvam somente três anos aqueles que voluntariamente se alistarem dentro de um prazo prefixo; e deste modo, talvez se obtenham alguns soldados de boa escolha, o que nunca se conseguirá com recrutamento forçado, que nas circunstâncias em que a Província se acha, não será mesmo praticável.5
Agindo assim, a Junta tentava evitar a retirada de sujeitos de suas atividades produtivas por meio do recrutamento forçado, fazendo com que alguns sujeitos pudessem se apresentar em vista do limitado tempo de serviço ofertado aos voluntários. Para isso, a Junta solicitava que pudesse utilizar, para a sua província, o Decreto de 30 de janeiro, que não foi pensado para ser colocado em prática e que provavelmente não tenha chegado às mãos da Junta Governativa por meios oficiais.
Esse ofício de 26 de junho teve resposta ministerial escrita em 5 de agosto. Entre essas datas, porém, a conjuntura política havia se radicalizado, e, com ela, também a conjuntura militar. Em 1º de agosto, o Príncipe Regente, como “Defensor Perpétuo deste Reino”, havia determinado “que sejam reputadas inimigas todas e quaisquer tropas, que de Portugal ou de outra qualquer parte forem mandadas ao Brasil, sem prévio consentimento Meu, debaixo de qualquer pretexto que seja”6. Em 5 de agosto, respondendo à Junta catarinense, o ministro Luiz Pereira da Nóbrega de Souza Coutinho (1760-1826) calou sobre o pedido do governo catarinense para aplicar o Decreto dos voluntários nessa província. Ao invés dele, o ministério enviou para Santa Catarina7 as Instruções de 10 de julho, que regulavam sobre o modo pelo qual o recrutamento compulsório deveria ser realizado, bem como apontava as isenções para o serviço militar (Beattie, 2009, p. 59; Mcbeth, 1972, p. 61-63). Em comum com o Decreto de 30 de janeiro, as Instruções de 10 de julho também se referiam apenas à Corte e à província do Rio de Janeiro – sendo, inclusive, uma resposta ao não preenchimento dos corpos da 1ª linha com “as suaves disposições do Decreto de 30 de janeiro”8 -, mas limitavam a possibilidade de tempo reduzido de serviço para praças que se apresentassem voluntariamente9. Ao ignorar o pedido da Junta e ao remeter as Instruções acerca do recrutamento, o ministério deixava implícito que acreditava que, em locais distantes da Corte, o recrutamento compulsório era a maneira mais segura de se aumentar o número da tropa, ainda mais em um momento de tensões crescentes em várias províncias americanas.
Uma característica é marcante nessa questão: a legislação da Corte fazia-se geral, ou seja, imperial e brasileira, em razão das necessidades das províncias, pois foi apenas em 1826 que as Instruções de 10 de julho de 1822 foram oficialmente expandidas pelo Parlamento para as demais províncias brasileiras (Kraay, 2015, p. 271-274; Mendes, 2010, p. 31). Antes disso, portanto, elas poderiam ser repassadas para as províncias que eram alinhadas ao Rio de Janeiro de acordo com as necessidades e conforme as províncias aderissem à independência. No Grão-Pará, por exemplo, a lei de recrutamento de 10 de julho de 1822 entrou em vigor em agosto de 1823, “quando houve a ‘adesão’ à Independência, uma vez que a Junta Provisória, fiel a Portugal”, havia mantido em vigor critérios de recrutamento ainda do século XVIII (Nogueira, 2009, p. 147).
Isso não significa, porém, que as províncias aceitassem as determinações da Corte; ao menos esse não foi o caso da Junta catarinense. Ao receber as Instruções de 10 de julho anexadas ao ofício de 5 de agosto, a Junta Governativa catarinense achou por bem responder, em 16 de setembro, que havia recebido “as Instruções de 10 de julho, feitas para se praticarem na Província da Corte”, mas que entendia que
as referidas Instruções não são aplicáveis a esta província, porque (excetuando alguns poucos vadios espalhados pelos Distritos, que serão recrutados à medida que forem aparecendo), todos os habitantes são lavradores, pescadores, tropeiros, artistas, e tudo o que pode pegar em armas é Miliciano, fardado à sua custa, armado, e do modo possível disciplinado, formando todo dois Regimentos de Infantaria, um de Cavalaria, e dois Batalhões de Caçadores.
A Junta conhece que, nas atuais circunstâncias, é preciso que se aumente a força dos Corpos da 1ª linha da Província, porém conhece também que ela não pode fornecer este aumento de força; e pelo que a experiência tem mostrado em outras ocasiões, está certa de que, ao primeiro anúncio de recrutamento forçado, emigram toda a mocidade, desaparecerão os languidos restos da agricultura, que agora principiava a animar-se, e ficará a Província reduzida à última miséria e consternação. É sabidamente estes desgraçados habitantes [que] tem sido gravados com o Serviço Militar nos onze anos em que aqui não houve tropas de Linha; não sofreram menos com a passagem contínua de expedições do Sul; está devendo o Estado a estes pobres lavradores somas consideráveis de farinha, e outros gêneros que lhe eram extorquidos para o serviço público; e ainda hoje fazem gratuitamente o serviço das Paradas ou Correios para as comunicações oficiais, e os transportes militares. À vista do que, e considerando a Junta que a impossibilidade de fazer recrutamento para as Tropas de 1ª Linha nesta Província é tão conhecida que já o antigo Ministério, mandando-a pôr em estado de defesa no ano de 1819, quando se receava a invasão Espanhola, mandou para aqui reforço de Tropas da Bahia e Montevidéu, não ousa mandar que se proceda a tal recrutamento forçado, mas fez publicar o Decreto de 30 de janeiro, convidando ao alistamento voluntário10 (grifo nosso).
Em clara oposição às determinações vindas do Rio de Janeiro, a Junta Governativa alegava que não havia sujeitos em condição de serem recrutados em Santa Catarina, e que a província e seus habitantes já tinham sentido os efeitos prejudiciais das campanhas militares ao Sul. Por isso, informava que, de maneira unilateral, havia feito publicar o Decreto de 30 de janeiro, que permitia o alistamento voluntário no Rio de Janeiro. Assim, as vias para o cumprimento da legislação não eram necessariamente verticais e encabeçadas pelo Rio de Janeiro - apesar de a Corte tentar essa centralização. Mas a autoridade provincial, naquele momento representado pela Junta Governativa, buscava lidar com as determinações de forma a legitimar sua autoridade sem entrar em atrito com o centro de poder; a legislação militar tornava-se brasileira, paradoxalmente contra as determinações do ministério.
A rebeldia provincial era possível pela falta de controle efetivo sobre as províncias, que impossibilitava que o centro conseguisse impor suas determinações sem questionamento. Essa autonomia não significava nada semelhante à existência de um pacto imperial através do qual as elites regionais coligiram para a manutenção da estrutura social e econômica (Dolhnikoff, 2005), pois respondia a necessidades pontuais da guerra que se desenrolava e da qual dependia a existência imediata do novo país. Um fator é importante para explicar o posicionamento das autoridades provinciais e a aquiescência imperial: mesmo sem se poder falar em adesão total e irrestrita da província, já que os projetos de estado e nação eram multitemporais e multifacetados (Pimenta, 2012), Santa Catarina não representou, em nenhum momento, um perigo ao projeto de Dom Pedro, sendo uma das províncias coligadas do eixo Sudeste que primeiro teriam aderido ao Príncipe Regente (Souza, 1999, p. 180; Oliveira, 2022, p. 147; Rodrigues, 2002, p. 25), o que diminuía o temor em relação à sua lealdade. Assim, era importante que ela se protegesse como pudesse contra possíveis invasões, já que havia tropas rebeladas na Província Cisplatina (Ferreira, 2012), e a Ilha de Santa Catarina era local estratégico por estar a meio caminho entre a Corte e Montevidéu, podendo ser invadida ou mesmo servir de ponto de apoio para um ataque ao Rio de Janeiro (Franchini Neto, 2015, p. 574, p. 582; Rodrigues, 2002, p. 220). Era mais interessante para a Corte, e talvez a única maneira pela qual isso fosse viável, que a província estruturasse o recrutamento ao seu próprio modo, traduzindo em termos locais a própria economia moral do recrutamento11, desde que ele fosse efetivo e conseguisse estruturar a defesa militar naquele momento.
Isso é demonstrado pela resposta do ministério da guerra em 25 de outubro, pois, mesmo depois de ter sido desrespeitado em suas determinações, o ministro se limitou a reafirmar à Junta catarinense, em tom tácito, que o Imperador havia ordenado, “quanto às providências sobre o aumento da força militar, que há por bem se cumpram as Instruções de 10 de julho do corrente ano, remetidas para este efeito”12, sem mencionar a negação já explicitada pela Junta em cumprir as Instruções.
Em outubro de 1822, a Corte também tomou outra medida que contrabalançava o poder da Junta, pois nesse mês chegou a Santa Catarina o coronel de engenheiros Aureliano de Souza Oliveira, nomeado como primeiro Governador/Comandante das Armas efetivo da província, e que assumiria a sua jurisdição militar, enquanto a Junta permaneceria com a jurisdição civil13. Assim, a Corte passou a contar com um enviado de sua própria nomeação para organizar a atividade militar, compensando a atuação das Juntas, eleitas dentro das próprias províncias (Slemian, 2007b, p. 43). Com a análise da documentação militar do período, é visível que, enquanto o Comandante das Armas tentou a todo custo aumentar o número da tropa, a Junta tentava dissuadi-lo, buscando demonstrar que a reunião da população em armas quando fosse necessário era o melhor meio para a proteção provincial14.
No ano seguinte, 1823, ainda reverberava a questão sobre se o Decreto de 30 de janeiro poderia ou não ser adotado em Santa Catarina, no qual adentrava outra autoridade representativa daquele período: o deputado eleito para a Assembleia Constituinte. A convocação da Assembleia Constituinte em junho de 1822 foi uma tentativa de Dom Pedro de enviesar o anseio constitucional representado exclusivamente pelas Cortes lisboetas, sendo expressivo, portanto, da relação desenvolvida entre o Rio de Janeiro e as demais províncias. Em Santa Catarina, o representante eleito para a única vaga que correspondia à província foi Diogo Duarte da Silva (1774-1857), português natural de Setúbal que veio para Desterro por volta de 1811; na votação, organizada pelas câmaras municipais e realizada em 22 de setembro, Diogo Duarte havia empatado em número de votos com o padre Lourenço Rodrigues de Andrade15, e só seguiu para o Rio de Janeiro depois do desempate realizado por sorteio (Cabral; Reis, 2004, p. 162; Piazza, 1985, p. 206). Uma vez na Corte, Diogo Duarte usou de seu cargo representativo para tentar intervir, junto ao ministério, na organização militar da província de Santa Catarina, solicitando que fossem substituídos chefes de corpos de 1ª linha na província, por pretensamente não demonstrarem adesão à causa da independência, indicando militares que teriam demonstrado lealdade nas campanhas ao Sul e que, por isso, em sua opinião, seriam merecedores dos postos de comando.
Quanto à legislação relativa à atividade de recrutamento, Diogo Duarte dizia saber que o “Governo da Província terá fielmente manifestado a V. M. I. a dificuldade do recrutamento para a 1ª linha: seria vantajoso estender-se àquela Província a Graça que Vossa Majestade concedeu aos Voluntários dos Corpos da Corte”16. Mesmo que o pedido não tenha sido atendido pelo ministério, a própria construção de canais de representação que permitiam que representantes eleitos pelas províncias tentassem intervir na distribuição de “graças” relacionadas à legislação militar, é de extrema relevância para a experiência política daquele momento. Assim, o início do funcionamento da Assembleia em 3 de maio de 1823 foi central naquele momento, porque “sinalizava a adesão a um regime que deveria primar pela produção legislativa, bem como pelo estabelecimento de uma Constituição, entendida como pacto fundamental entre partes e indivíduos que deveriam compor o novo Império” (Slemian, 2022, p. 94), do que a atividade militar era face importante, pois a independência não estava garantida, e muito menos a integridade de um território que, na verdade, sequer existia.
Mesmo sem a determinação legal do centro para a aplicação do Decreto de 30 de janeiro sobre os voluntários, ele foi enviado para as vilas da província e teve efeito sobre os habitantes. Nisso também participaram as câmaras municipais, outra autoridade que teria seu papel reposicionado durante a construção do Estado brasileiro. No conjunto, observa-se que as câmaras municipais desempenharam um papel de representatividade no início do período independente. Assim como quando da outorga da Constituição em 1824 – ocasião em que D. Pedro enviou o texto para que fosse apreciado pelas câmaras, mas sem possibilidade de deliberação sobre ele (Barman, 1988, p. 123). Já em 1822, as câmaras desempenharam a função de organizar a festa da aclamação de D. Pedro em 12 de outubro, como ocorreu nas câmaras de Santa Catarina17 (Cabral; Reis, 2004, p. 146-152), bem como tiveram participação nas eleições de diversos representantes naqueles anos (Souza, 1998), que acabaram por constituir, em âmbito geral, as “primeiras instâncias políticas de alcance supralocal” (Comissoli, 2011, p. 138).
Foi no sentido de afirmar-se como um espaço ocupado por indivíduos leais ao herdeiro bragantino que a câmara de São Francisco solicitou, em 19 de setembro daquele ano de 1822 - em mesmo ofício que afirmava ter sido informada do Decreto que declarava inimigas as tropas portuguesas -, que fosse autorizada a criação de uma companhia de artilharia de 1ª linha naquela vila, “para sua efetiva guarnição” e “composta de homens naturais do mesmo país e nele estabelecido”. Dizia que, para esse fim, já haviam se apresentado alguns voluntários, como o próprio presidente da câmara Jacinto Fernandes Dias e seu filho, “em virtude do Real Decreto de 30 de janeiro deste ano, aqui publicado em o dia 15 do corrente”18; exatamente o Decreto que tratava dos voluntários na Corte. Cada autoridade, a seu modo, tentava criar ela mesma os parâmetros que tornavam inteligíveis a gerência militar, e ocupar espaços na administração do novo corpo político que parecia surgir daquela crise.
Portanto, mesmo com o surgimento de novos espaços de política que tenderam a relativizar suas atribuições e ensejaram um paulatino desligamento de Lisboa (Souza, 1999, p. 147), as câmaras “ainda funcionavam como portadoras de legitimidade política”, e deveriam ser lembradas por qualquer projeto político que se quisesse legítimo, uma vez que “a novidade constitucional ainda não sedimentara suas próprias bases” (Slemian, 2006, p. 136).
Era visível que no final de 1822, também no âmbito da organização militar, havia uma disputa de legitimidade muito grande entre as câmaras e a Junta Governativa, a ponto de a Junta Governativa catarinense repreender a câmara de São Francisco por esta escrever diretamente à Corte solicitando auxílios em tropa e utensílios para fazer a defesa do porto da vila, depois de receberem o Decreto de 1º de agosto de 1822, que declarava inimigas as tropas portuguesas e ordenava a organização da defesa contra possíveis desembarques19. Segundo a Junta, a câmara deveria ter entrado em contato com ela, e esta sim intermediaria a relação da câmara com a Corte. Em sua explicação, a câmara dizia à Junta que o Decreto de 1º de agosto ameaçava de crime de lesa-Nação as autoridades que não cumprissem decididamente as ordens de organizar a defesa da melhor maneira que conseguissem20, e, de fato, o texto do Decreto era ambíguo o suficiente para supor várias interpretações.
O preâmbulo do Decreto de 1º de agosto afirmava que ele era remetido “às Juntas Provisórias de Governo, Governadores das Armas, Comandantes Militares e a todas as Autoridades constituídas, a quem a execução deste Decreto pertencer”, e adiante afirmava que ficavam “obrigadas todas as Autoridades Militares e Civis, a quem isto competir, a fortificarem todos os portos do Brasil”21. Em seu último artigo, o Decreto mandava que caso
(...) em alguma das Províncias no Brasil não houverem as munições e petrechos necessários para estas fortificações, as mesmas Autoridades acima nomeadas representem logo a esta Corte o que precisam, para daqui lhes ser fornecido, ou deem parte imediatamente à Província mais vizinha, que ficará obrigada a dar-lhes todos os socorros precisos para o bom desempenho de tão importantes obrigações. As Autoridades Civis e Militares, a quem competir a execução deste Meu Real Decreto, assim o executem, e hajam de cumprir com todo o zelo, energia e prontidão, debaixo da responsabilidade de ficarem criminosas de Lesa-Nação, se assim decididamente o não cumprirem.22
Ao escrever à Corte pedindo auxílio, a câmara de São Francisco estava delimitando seu espaço de atuação, já que o Decreto não era explícito em obrigá-la a se comunicar com a Corte por intermédio da Junta; esta, por sua vez, sentia-se ultrajada em sua jurisdição de âmbito provincial. Na resposta à Junta, a câmara manifestava, ainda, que acreditava existir um caminho lógico para as comunicações naquele contexto, pois, após se reunir com as autoridades militares da vila, decidiram “que se dirigisse a câmara [à] S. M. I., o Comandante da Companhia [da guarnição], à Ilma. Junta”, e “o [Comandante] do Batalhão, ao Comandante das Armas”23. Ou seja, agindo assim, a câmara acreditava poder, ao menos para organizar a defesa dos portos do Brasil no contexto da guerra de independência, estar acima da própria Junta Governativa na escala das comunicações com a Corte.
Assim, durante a guerra de independência, ainda não estava delineada formalmente a perda de influência das câmaras municipais, que foi se efetivando na prática e manifestou-se na segunda metade daquela década (Gouvêa, 2008, p. 110-113; Silva, 2013, p. 92; Slemian, 2006, p. 182-192). Naquele contexto beligerante, elas poderiam atuar demonstrando-se leais ao organizarem o sistema de defesa das suas vilas, ou ao aproveitarem-se, como visto, de um Decreto voltado à Corte para oferecer a organização de uma Companhia de 1ª linha. A partir disso, poderiam, também, esperar colher vantagens simbólicas pessoais24.
Nos termos constitucionais daquele período, uma maior uniformidade legal nacional foi dada ao exército pela Carta de 1824. Ela equacionou o tema da formação do exército entre o Executivo e o Legislativo, e deixou o tema do recrutamento a cargo do Parlamento – onde se reuniam os representantes eleitos pelos cidadãos brasileiros -, assim como a fixação do efetivo anual (Kraay, 2015, p. 272). No entanto, como a abertura da Assembleia só ocorreu em 1826, Dom Pedro I teve tempo, sob forte críticas dos liberais, de criar um exército à sua altura, inclusive com aumento de efetivos mercenários estrangeiros e lançando o Império na Guerra da Cisplatina (1825-1828) (Beattie, 2009, p. 61; Mcbeth, 1972, p. 109-110). Não nos adiantaremos temporalmente, pois outras relações desses primeiros anos do Império ainda merecem ser analisadas.
UMA PARTE DO TODO – O EXEMPLO DE OUTRAS PROVÍNCIAS E AS QUESTÕES INTERNAS
Outras decisões do início da década de 1820 trataram de temas ligados ao exército. O aumento do soldo das tropas brasileiras e a igualdade de pagamentos entre os exércitos de Portugal e do Brasil foi um desses assuntos; durante o ano de 1821, existiu uma série de decretos nesse sentido. Um deles, de 22 de abril, regulava que “todos os oficiais, oficiais inferiores, soldados e mais praças do Exército do Brasil, tenham, da publicação deste Decreto em diante, os mesmos soldos e etapas que vence a tropa do Exército de Portugal”25. Relevante que, nessa mesma data, ocorria na Corte a repressão do exército ao movimento que pretendia, entre outras coisas, forçar a vigência efêmera da Constituição espanhola; repressão que contou principalmente com tropas da porção brasileira do Reino Unido. A decisão relativa ao exército, portanto, demonstra a tentativa de construção de uma base brasileira de D. João e, em seguida, de D. Pedro26, mas sem que ainda se cogitasse a possibilidade de ruptura ou de um conflito aberto.
Mas era difícil para a Corte, ou mesmo desinteressante, que ela ampliasse os conteúdos dos decretos para todas as capitanias/províncias da América. Se o Decreto de 22 de abril de 1821 tinha um caráter geral para todos os membros do “Exército do Brasil”, na prática isso não teve efeito, tendo vigência apenas para as guarnições da Corte e da província do Rio de Janeiro. Apenas pelo Decreto de 11 de novembro de 1822, quando já era inevitável que se considerasse que um conflito iminente fosse uma possibilidade, foi que se igualou os soldos e gratificações dos militares das diferentes províncias, por não ser “de justiça que os militares empregados no serviço e guarnição da Corte e província gozem exclusivamente das vantagens dos Decretos de 7 de março, 22 de abril, 8 de maio e 24 de agosto do ano passado”, devendo, então, as disposições serem “extensivas a todas as províncias do Brasil”27. Esse Decreto foi enviado para a Junta de Santa Catarina já em 16 de novembro de 182228, fazendo extensiva a essa província o teor de vários decretos da Corte29. Porém, por alguma razão – provavelmente pela crônica falta de recursos dos cofres provinciais -, ele não foi cumprido de imediato.
Assim, em setembro de 1823, a Junta Governativa dizia que não havia sido “ordenada nesta Província a execução daquele Decreto [de 11 de novembro de 1822]”, e que “só se pagaram dobradas forragens”; avaliaria, então, a possibilidade de ser pago “o acréscimo desde o dia em que a graça foi feita”30. Mesmo sem um cumprimento imediato, é relevante perceber que as decisões relativas ao exército no Brasil só passaram a ser extensivas a todo o território considerado brasileiro quando se sentiu a necessidade de organizar a defesa, mesmo que eles regulassem – em teoria e não na prática – sobre todas as províncias desde o surgimento.
Em determinadas situações existia também a noção de que os militares da província tinham direito a um tratamento igual ao dado aos militares das demais. Assim, utilizavam-se exemplos de outros locais para o serviço em Santa Catarina, e que eram instrumentalizados para resolverem problemas específicos dessa província. Um bom exemplo disso deu-se em relação à uma autoridade da vila de Lages, que havia sido desmembrada de São Paulo em 1820 para ser anexada à Santa Catarina (Piazza, 1983, p. 244), trazendo consigo uma extensa porção do planalto e dos “sertões incultos” pertencentes a ela. Na primeira metade da década de 1820, os problemas de comunicação entre a Ilha capital e a vila de Lages eram tão sérios que chegavam a impossibilitar que se conhecesse a situação dos corpos de milícia e ordenanças existentes no planalto31.
Em janeiro de 1823, para amenizar intrigas que ocorriam entre o Comandante da vila e suas autoridades civis, a Junta Governativa nomeou o tenente – logo capitão - Leandro da Costa para o comando militar da vila de Lages, por ser “prudente, desinteressado, e ativo32. Até então, Leandro da Costa era comandante da 6ª Companhia do batalhão de caçadores de 1ª linha, sediado em Desterro, e recebia uma gratificação por esse comando. Porém, quando foi enviado para Lages, a Junta da Fazenda, responsável pelo orçamento provincial, deixou de pagar para Leandro a gratificação pelo comando da companhia. O presidente provincial João Antônio Rodrigues de Carvalho, que havia substituído a Junta Governativa33, então saiu em defesa do capitão em agosto de 1824, escrevendo ao ministério da Guerra, embasando sua solicitação do que já sabia que havia sido determinado para outra província: “Regulando-me pelo que Sua Majestade Imperial resolveu na Portaria de 23 de janeiro de 1823 em o mesmíssimo caso para Minas, era de voto que se lhe pagasse a gratificação”34.
Ou seja, ao ser contrariado pela Junta da Fazenda, que se negava a pagar ao capitão Leandro a gratificação pelo comando da companhia da qual estava afastado, o presidente apelou ao ministério com base em determinações que, ele sabia, haviam sido expedidas para os mesmos casos, mas para outros locais do Império. A postura do presidente deu certo, pois, no mês seguinte – em 30 de setembro -, o ministro respondeu que o Imperador houve “por bem determinar que o mencionado capitão continue a perceber a gratificação respectiva como Comandante de Companhia, não obstante achar-se empregado em outra comissão”35. Assim, explicitava-se a ideia de que, se uma das unidades que formava o corpo político gozava de certas prerrogativas, os mesmos preceitos deveriam valer também para as demais. Esse princípio certamente tornava-se mais evidente com a definição de quais províncias estavam inegavelmente alinhadas ao projeto do Rio de Janeiro e conforme os presidentes de províncias, que se esperavam fiéis ao Imperador porque escolhidos por ele (Slemian, 2007a, p. 26-27), eram enviados para as províncias do Brasil e passavam a intermediar a relação com a Corte.
Levando em conta o grau de autonomia das autoridades provinciais para a tomada de decisões relativas às questões militares, é possível perceber que a primeira experiência administrativa do Estado que surgia não passava por qualquer experiência ligada a uma elite administrativa altamente treinada e que estruturou o Estado nacional brasileiro (Carvalho, 2010), mas estava relacionada a atores políticos que se entendiam como representantes de determinados projetos políticos e que, no contexto da guerra de independência, podiam agir com grande grau de autonomia.
Outro fator é interessante na discussão entre os diferentes espaços em que a província estava inserida. Em termos relativos, a distância que Santa Catarina estava de outras províncias do Império poderia ser menor do que a distância entre a capital da província e as vilas do interior36. A principal razão do envio de Leandro da Costa para Lages foi manter o controle e facilitar as comunicações com Lages, uma vila interna e “que existe como separada desta província”37, sendo que, em 1824, ele já estava encarregado e trabalhando no conserto da estrada que ligava Lages a Laguna38, uma importante via de comunicação com a capital39, e que estava quase intransitável. Em 1824, as autoridades de Desterro pouco sabiam sobre o que se passava em Lages, mas estavam inteiradas das determinações que a Corte no Rio de Janeiro passava para autoridades militares de Minas Gerais, e se sentiam impelidos a solicitar a graça – ou direito – de se fazer cumprir para a província de Santa Catarina aquilo que valia para os militares de Minas Gerais: fazer pagar a gratificação do comando de Companhia a um oficial, mesmo estando ele afastado da função. Os portos, portanto, constituíam-se em importante porta de entrada para mercadorias e notícias que chegavam de forma oficial, mas, principalmente, que eram transmitidas de maneira oral ou por papéis impressos e manuscritos que informavam sobre o estado de coisas em outras partes do espaço Atlântico (Levati, 2015; Soriano, 2018, p. 153).40
Enfim, a dificuldade de comunicação com o interior é evidenciada no Decreto Imperial de 1º de dezembro de 1824, que, ao padronizar pela primeira vez a numeração dos regimentos, corpos e batalhões de 1ª e 2ª linhas do território brasileiro, mencionava apenas as três vilas catarinenses litorâneas, mas não citava nenhuma unidade organizada na vila de Lages41. Em 1º de agosto de 1824 o presidente provincial não sabia o estado das Milícias e Ordenanças em Lages para informar ao Supremo Conselho Militar, por não poder obter informações, mas dizia saber que “há em Lages um corpo de Milícias, talvez indeterminado”42.
Nos anos de criação do Estado independente, a estrutura militar tornava-se mais complexa por terem sido organizadas algumas unidades especiais que visavam garantir a participação de uma ampla gama de sujeitos nas fileiras (Nogueira, 2009, p. 142). Em Santa Catarina, entre 1822 e 1823, tentou-se a efêmera organização de um Corpo de Libertos que, ao ser desmobilizado, evitou uma ameaça à ordem racial e social estabelecida, como ocorreu na Bahia (Kraay, 2002, p. 119-120; Schmitt, 2021). Em outras províncias, em 1822 e 1823, também foram organizados grupos armados intitulados de Guarda Cívica. Esta foi primeiramente criada na província de São Paulo, por autorização do príncipe regente em 9 de setembro de 1822, com o intuito de “defender a Independência do Brasil” e “sua tranquilidade interna”. Submetida ao Governador das Armas, não deveria compreender os indivíduos vinculados às 1ª ou 2ª linhas43, ou seja, visava aqueles que pudessem ficar à margem. Na Corte, a Guarda Cívica foi criada em 25 de setembro, sob o pretexto de que Portugal estaria tramando para reduzir o “Brasil ao abjeto antigo estado de colônia”; sua duração dependeria “das circunstâncias que lhe deram origem”, e os 1718 integrantes - entre oficiais e soldados dos corpos de infantaria e cavalaria – tinham autorização para serem reunidos somente em razão de “iminente perigo da Pátria”44. Outras Guardas congêneres foram criadas em Minas Gerais e na Bahia45.
Em Santa Catarina, a Guarda Cívica também foi criada, por atuação do Governador das Armas Aureliano de Souza Oliveira, que logo ao chegar na província, em 14 de outubro de 1822, requisitou que formassem “os cidadãos privilegiados uma Guarda Cívica”46. Seu funcionamento, porém, parece ter tido pouca relevância. Em 19 de outubro, a Junta Governativa, sempre buscando intermediar a relação de recrutamento entre aquele Comandante militar e a população, escrevia a Aureliano para que ele “passe as ordens para a formação da Guarda Cívica”, fazendo-se “preciso que V. S. dê o plano de sua composição, e modo de se armar, e que nomeie autoridade, a quem se devem apresentar os privilegiados para se alistarem”. Entretanto, dizia saber que “pouco numerosa poderá ser aqui”47. No que as fontes indicam, foram poucas as ações para uma efetiva formação da Guarda, principalmente no relativo ao recrutamento. Uma das poucas atividades que se identificou nesse sentido foi quando um Alferes, chamado Antônio Francisco Rios, foi demitido do serviço, provavelmente por deserção. Ordenava-se, então, que ele, “bem como os outros que se acharem em idênticas circunstâncias, deverão alistar-se na Guarda Cívica, para dali serem chamados e empregados, segundo as ocorrências e préstimo que tiverem”48. Porém, não há maiores informações sobre a atuação dessa força, e os esforços para recrutamento parecem ter se concentrado sobre os demais corpos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nestas páginas, esperamos ter contribuído para demonstrar o quão complexa foi a formação do estado imperial brasileiro em seu início. Preocupado com a consolidação da sua própria existência enquanto corpo político autônomo, as partes do Império que surgia se relacionavam com o centro, enxergavam as demais províncias, e estruturavam-se internamente, tendo em vista o novo modelo que surgia da crise do Antigo Regime.
Os argumentos apresentados contribuem para a discussão em torno da questão territorial que delibera se eram as províncias brasileiras que garantiriam a viabilidade do Império brasileiro, como queria o projeto de Constituição apresentado em 1823, ou se o Império era a unidade primordial e formado pelas províncias, como outorgado na Constituição em 1824 (Gregório, 2022, p. 19-21). A aparente diferença formal carrega em si o próprio cerne da construção estatal brasileira, cujas interpretações podem delegar maior ou menor espaço para as províncias como palco de estruturação política brasileira a partir de uma relação menos ou mais horizontal com o centro. A função de coordenar os preparativos de defesa, como principal atividade daquele momento, é uma lente quintessencial através da qual este objeto pode ser observado, pois, dentro das províncias, as autoridades também se readequavam às novas possibilidades e procuravam garantir seu espaço como representantes do Imperador e organizadores da defesa provincial.
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