ENTREVISTA - DOSSIÊ: FORMAS TEXTUAIS, IMAGINAÇÃO E HISTORICIDADE
História, textualidade e responsabilidade: Um diálogo biográfico - Entrevista com Dominick LaCapra
History, Textuality, and Responsibility: A Biographical Q & A - Interview with Dominick LaCapra
História, textualidade e responsabilidade: Um diálogo biográfico - Entrevista com Dominick LaCapra
Varia Historia, vol. 40, e24031, 2024
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais
Received: 30 April 2024
Revised: 6 November 2024
Accepted: 20 September 2024
APRESENTAÇÃO
Dominick LaCapra é professor emérito de História e Literatura Comparada na Cornell University, onde foi titular da cátedra Bryce & Edith M. Bowmar de Estudos Humanísticos. A obra do professor LaCapra teve grande impacto a partir da década de 1980 ao propor uma agenda de afirmação e reformulação crítica da história intelectual dentro da área mais ampla dos estudos históricos, a qual se animava, em boa medida, a partir da interface que o autor buscou estabelecer – e legitimar – entre a história, a teoria crítica e os estudos literários. A partir dos anos 1990, os textos de LaCapra passaram a ter influência importante em discussões em torno dos problemas éticos e epistemológicos levantados pelas práticas de memória relacionadas a eventos traumáticos. O intercâmbio de perguntas e respostas que se segue é de natureza introdutória e biográfica, de modo que nos pareceu mais oportuno deixar as palavras do autor falarem por si e restringir esta apresentação a uma extensão mínima.
LaCapra resume sua formação intelectual e profissional, aqueles que identifica como os principais argumentos de sua obra, bem como as reações mais relevantes a eles. A última pergunta, de cunho mais específico e autoral, foi formulada a partir de um texto que marcou nossa formação como pesquisadores: o livro History and Criticism – pelo qual soubemos, com satisfação, que o professor LaCapra também tem um apreço especial. No departamento de História da PUC-Rio, onde nós três nos formamos doutores em história, a obra de LaCapra teve uma recepção brasileira, salvo engano, relativamente precoce, através dos professores Ricardo Benzaquen de Araújo e Luiz Costa Lima. Sem pretender qualquer privilégio sobre outros problemas frequentados pelo autor, nossa pergunta é expressão de uma maneira de relacionar história e literatura cultivada nesse espaço, a qual, acreditamos, é muito devedora desse momento da trajetória de LaCapra, e que animou a proposta para o dossiê no qual esta entrevista vai publicada.
Um breve apontamento sobre a tradução: Dominick LaCapra tem uma prosa instigante e densa, mas desembaraçada, sempre perpassada por um amplo repertório de referências. LaCapra possui, também, um domínio acurado de uma ampla gama de recursos retóricos, especialmente aqueles relacionados à ironia. Na tradução, foi preciso fazer algumas concessões a diferenças de estilo de pontuação, bem como a certas inflexões divergentes que determinados termos, tempos verbais, ritmos e torneios de frase têm nas duas línguas. De resto, como se pode conferir no cotejo com o original, as escolhas da tradução foram bastante convencionais.
Pode nos falar um pouco do que achar pertinente sobre sua vida pessoal e formação antes de ter começado a lecionar em Cornell?
Meu pai imigrou da Itália ainda muito novo. Minha mãe era de origem parecida e estadunidense de primeira geração. Nenhum dos dois estudou além da escola primária, nem ficou rico. Mas os dois acreditavam muito em cuidar e oferecer apoio emocional para os filhos. Eu tive três irmãs mais novas que, infelizmente, já estão todas falecidas. Tenho uma filha, Véronique, que é repórter de ciências e trabalha no Woods Hole Oceanographic Institution [Falmouth, Massachusetts], e uma enteada, Molly (McLaughlin), que é uma competente tecelã de tecidos finos (ela tem um site). Vivo com minha companheira Jane (Pedersen) há mais de 40 anos. (Ela se aposentou como decana de Administração e Finanças no College of Arts and Sciences de Cornell). Ao longo desse tempo, nós sempre tivemos cachorros, em determinado momento chegamos a ter cinco, mas normalmente dois. Um deles sempre tem sido um chow-chow, uma raça (mas não um nome) surgida na China. Vivemos em Ithaca (cidade onde fica Cornell) por mais de 40 anos, mas em 2012 nos mudamos para Santa Fe, Novo México. Jane cresceu no sul do Novo México, perto da divisa com o Texas, e ir morar em Santa Fe foi uma espécie de retorno ao lar. Eu, por outro lado, nasci e passei minha primeira juventude no Brooklyn [cidade de Nova York], mas já adulto visitava Santa Fe e o Novo México em geral com frequência. Pode ser que nos mudemos outra vez para estar com nossas filhas adultas, que também têm uma ligação especial com seus cachorros.
Estudei em escolas paroquiais (católicas) tanto na escola elementar e média [grammar school] (Academia de São Benedito José Labre, com as Irmãs de São José) como no colegial [high school] (Bishop Loughlin Memorial High School, com os Irmãos Cristãos), ambas na cidade de Nova York. Na graduação, estudei na universidade de Cornell, em parte porque eles me ofereciam apoio financeiro suficiente para desincumbir meus pais de qualquer obrigação financeira durante meus anos de faculdade. Cornell se revelou uma boa escolha. Morei por dois anos na Telluride House, que é um tipo de “fraternidade” acadêmica ou, segundo o uso corrente, unidade de moradia [living unit]. Ela oferecia alojamento e alimentação e, mais importante, tinha excelentes estudantes vivendo lado a lado com parte do corpo docente e convidados. Ela era autogerida e era também um lugar onde visitantes destacados se hospedavam ou visitavam a casa. O cientista Linus Pauling era um amigo da casa que aparecia com certa frequência.
Cornell tinha um excelente corpo de professores. Me formei [majored] em Filosofia e Governo, com especialização em teoria política. No meu último ano letivo (1960-61), eu era professor assistente de Walter Berns, que lecionava tanto Teoria Política como Direito Constitucional. Ele foi aluno de Leo Strauss na Universidade de Chicago e me incentivou a ir para lá estudar Teoria Política. Mas decidi trilhar outro caminho no ano após minha formatura, quando tive a felicidade de receber uma bolsa Fulbright para estudar na França. Eu sentia que meu trabalho anterior em Filosofia e Teoria Política seria aplicável no estudo da história intelectual, mas que esta última oferecia um escopo maior para pesquisas interdisciplinares, inclusive em literatura. Um professor de história se revelou muito influente para mim: David Brion Davis, que na época lecionava história intelectual estadunidense, com um forte interesse nas fontes europeias do pensamento estadunidense. (Bem pela época em que eu voltei a Cornell como professor assistente, em 1969, Davis estava se mudando para Yale, onde ele iria realizar trabalhos muito importantes sobre a história da escravidão). Cornell tinha um excelente departamento de filosofia, que foi um fator na introdução da filosofia analítica nos EUA. Fiz um bom número de cursos com John Rawls (que depois iria para Harvard), David Sachs (que depois iria para Johns Hopkins) e Normal Malcolm (que ficou em Cornell e conseguiu que Wittgenstein ficasse lá por um tempo). Também cursei o seminário de pós-graduação de M. H. Abrams sobre o Romantismo e convivi com ele nessa altura e depois, quando voltei a Cornell como docente efetivo. Abrams ajudou a estimular meu interesse em literatura, assim como Sachs, que era um dos poucos filósofos analíticos que dava aulas de estética. Em Cornell, os professores de filosofia pensavam que eu continuaria naquele campo, e alguns se surpreenderam quando eu optei por outro caminho.
Nos três anos que passei na França na década de 1960 (1961-2 e 1965-7), morei em Paris, Lyon e Aix-en-Provence. Eu gostava especialmente do Sul, onde o clima era de certo modo parecido com o de Santa Fe, ensolarado quase todo dia. (Ithaca é bonita, mas frequentemente nublada.) Na França, eu pude ler muito, sobre temas diversos, fazia qualquer curso que eu achasse interessante, e aprendi francês ao ponto de que os “nativos” muitas vezes me tomavam por francês. Toda manhã eu tirava umas duas horas para ler Proust no Jardim de Luxemburgo. Harvard (onde obtive o mestrado em 1963 e o doutorado em 1970) era também bonita no estilo inglês, e lá recebi uma sólida formação profissional em História. Tive a felicidade de poder lecionar como “tutor” não só em história como no programa de excelência [honors program] em Estudos Sociais, que contava com personalidades impressionantes, como Stanley Hoffman e Barrington Moore Jr – este, apesar de politicamente situado à esquerda, era um “patrício urbano” muito rico. (Ele chegou a deixar um estudante de graduação escrever sua monografia sobre “quem governa a América” usar a sua própria carteira de investimentos como referência!) Um dos momentos mais surpreendentes do meu período lá foi quando Moore se virou para mim, no lado oposto da mesa do seminário, e se referiu a mim como um colega.
Parte da surpresa vinha de que Harvard era, nessa época, um lugar muito hierárquico, enquanto Cornell tinha pelo menos um estilo democrático, ainda que houvesse uma estrutura de poder dentro dos departamentos e, sob certos aspectos, perpassando a universidade toda. Todo mundo que lecionava História em Cornell tendia a ter responsabilidades similares, e ninguém tinha um monopólio sobre uma dada área de estudos. Votos tinham peso igual na maior parte das decisões colegiadas. Já em Harvard, as reuniões de congregação eram estruturadas de modo que grupos subordinados como professores convidados, instrutores e, normalmente, professores assistentes sem estabilidade saíam das reuniões em diferentes momentos, depois dos quais os docentes efetivos tomavam as decisões mais importantes. Eles tinham até um ranking de estudantes de pós-graduação, que dava àqueles acima de uma certa linha de corte a oportunidade de, depois de obterem seu diploma, a oportunidade de seguir ensinando em Harvard como instrutores. Eu estava apto para isso, mas não aproveitei a oportunidade de ser instrutor. Na verdade, fiquei feliz em voltar a Cornell como professor assistente em 1969, posição que meu orientador de doutorado (H. Stuart Hughes) considerou muito desejável.
Pode falar das instituições onde ensinou e trabalhou como professor?
Como professor, acabei tendo a carreira inteira em Cornell, mesmo tendo recebido ofertas de trabalho como professor efetivo de outras instituições, incluindo a Universidade de Chicago (História), a Universidade da Pensilvânia (Inglês) e Princeton (Literatura Comparada). Meu trabalho tem sido bastante interdisciplinar, e outros departamentos geralmente apoiaram minha indicação por um dado departamento. Alguns professores nos Estados Unidos têm funções em diferentes departamentos, e muitos ensinam em escolas diferentes ao longo de suas carreiras, frequentemente seguindo uma escada da hierarquia consuetudinariamente reconhecida das universidades. Mas eu trabalhava bem em Cornell e tive a felicidade de receber uma cátedra nomeada1 relativamente cedo. Em Cornell, eu viria ainda a ter uma segunda indicação em Literatura Comparada2 e era membro da pós-graduação nas áreas de Romanística e Estudos Judaicos. Além disso, eu sempre tive um grupo significativo de estudantes de pós-graduação que eu não queria desapontar. (Ex-alunos que trabalharam comigo vieram a ser professores efetivos em diversas escolas, incluindo a Universidade de Columbia, a Universidade de Emory, a Universidade de Georgetown, a Universidade Hebraica de Jerusalém, a Universidade de Marquette, a Universidade Nacional de Singapura, a New School for Social Research [dois], a Northwestern University, a Universidade Estadual de Portland, a Universidade de Princeton, a Rice University, a Rutgers University, a Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, a Universidade do Tennessee, a Universidade do Texas em Astin [dois], a Universidade do Texas em Dallas, a Universidade de Wisconsin –Madison, e Yale-NUS [um liberal arts college em Singapura, fruto de colaboração entre a Universidade de Yale e a Universidade Nacional de Singapura].)
Quais foram as suas funções administrativas academicamente relevantes?
Em Cornell, fui, por dois anos, Diretor Interino e, por dez anos, Diretor da Society for the Humanities. Sou senior fellow da School of Criticism and Theory, da qual fui Diretor Associado de 1996 a 2000, e Diretor de 2000 a 2008 . A Society for the Humanities de Cornell foi fundada pelo filósofo Max Black e por colegas de diversos campos, como M. H. Abrams em literatura. Ela se dedica a incentivar trabalhos inovadores em diversas disciplinas humanísticas e tem um robusto financiamento que permite trazer para Cornell pesquisadores de universidades pelo mundo afora, também oferecendo bolsas [fellowships] para docentes de Cornell. Juntos, esses pesquisadores formam um grupo interativo que realiza um seminário semanal para discutir papers apresentados por membros que sejam indicativos de sua abordagem geralmente interdisciplinar aos seus problemas de pesquisa. Eu tive um papel bastante ativo no programa, e frequentemente lia o trabalho dos fellows e lhes escrevia cartas de recomendação. Tive uma atuação comparável na School of Criticism and Theory. Ela foi fundada por um grupo de pesquisadores internacionalmente conhecidos, que incluía Murray Krieger, Geoffrey Hartman, Northrop Frye e Hayden White. Sua tarefa é reunir pesquisadores de todo o mundo para pesquisar e discutir problemas que tipicamente interessam mais de uma disciplina humanística.
Pode falar um pouco sobre os seus vários livros?
Tenho quinze livros publicados e organizei ou co-editei duas coletâneas (ver a lista abaixo). Todos os meus livros tiveram uma boa distribuição, mas quatro são provavelmente os mais lidos e influentes: Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language (1983), History and Criticism (1987), Representing the Holocaust: History, Theory, Trauma (1994) e Writing History, Writing Trauma (2001, 2014). O livro mais recente, Compreender outros: povos, animais, passados (2018)3 é, de certo modo, uma síntese de ideias desenvolvidas ao longo do tempo, e as apresenta de maneira concisa e, espero, lúcida. Ele é particularmente útil na explicação de meu uso seletivo da desconstrução, da psicanálise e do dialogismo, bem como de minha concepção da historiografia como um empreendimento que envolve auto-implicação, empatia e uma compreensão responsiva a respeito de seus objetos de estudo (incluindo outros animais). Integrei seletivamente às minhas pesquisas em história intelectual desenvolvimentos da teoria crítica, como o pós-estruturalismo e a psicanálise, e tentei mostrar a sua relevância para se repensar a história. Também tentei explorar o uso, nos estudos históricos, de técnicas desenvolvidas, em boa parte ou mesmo principalmente, nos estudos literários e na teoria estética, como a leitura cerrada (close reading) e o papel de uma abordagem crítica à interação entre textos ou artefatos e os seus contextos de produção e recepção. Além de ter tido um papel no campo da história, meu trabalho tem sido amplamente discutido em outras disciplinas humanísticas e ciências sociais.4Meu objetivo geral tem sido cuidadosamente, acuradamente, comparativamente e criticamente investigar processos de pensamento e práticas culturais em vários campos relacionados. Hoje, os limites entre a história e a literatura são, às vezes, não somente permeáveis mas quase apagados, principalmente quando a literatura é tomada como sintomática de outras forças socio-históricas ou econômicas (como ocorre em abordagens importantes do marxismo ou da psicanálise), ou então a história é compreendida como fundacionalmente ou predominantemente fictícia ou literária (como no construtivismo radical). Não penso que a história e a literatura (ou o histórico e o literário) formem domínios discretos ou uma oposição binária. Mas as relações e interações entre elas são complexas, diferenciadas e variadas no tempo. Tentei desenvolver uma abordagem que fosse circunstanciada, exploratória e instigante sem ser reducionista ou propensa a afirmações sensacionalistas.
Seus trabalhos mais recentes se referem com frequência ao “pós-secular”. Poderia desenvolver um pouco esse conceito um tanto intrincado?
A dimensão pós-secular do nazismo concerne aquilo a que Saul Friedländer se refere como antissemitismo redentor, a crença que a eliminação dos judeus é necessária para a redenção ou liberação dos nazistas de suposta contaminação da Volksgemeinschaft (“comunidade popular”) e da servidão que eles acreditavam ter sido instituída para eles a partir da mera existência dos judeus. Nesse sentido, a Endlösung (Solução Final) era a Erlösung (redenção ou liberação). Essa noção era também apocalíptica, uma vez que o fim dos judeus traria a salvação para os nazistas. Esse tipo de pensamento ou ideologia poderia ter outras aplicações, especialmente na noção da regeneração ou redenção pela violência, que é crucial num quadro de referências sacrificial. Penso que isso tem um papel em diversas formas de vitimização, incluindo a “limpeza” étnica. Outro âmbito importante em que foi significativa a regeneração efetuada por meio da violência e da difamação dos outros, frequentemente, convertendo-os em bodes expiatórios, se formou a partir do tratamento genocidário conferido aos nativos americanos, notadamente no caso do dito “destino manifesto” dos Estados Unidos, que se realizaria na conquista, colonização, opressão e assassinato de povos indígenas que habitavam a terra.
Houve quem tenha discutido tais fenômenos em termos de uma religião secular ou política. Creio que “pós-secular” é melhor na medida em que aquilo de que trata não é claramente religioso no sentido das religiões tradicionais, ainda que existam similaridades de aspectos com o que se costuma chamar de religiões (por exemplo, o papel do sacrifício, do auto-sacrifício e do zelo missionário no cristianismo). E existem maneiras mais óbvias pelas quais as religiões tradicionais podem estar conectadas com ideologias pós-seculares, por exemplo, quando se trata de antissemitismo e outros preconceitos contra grupos ou pessoas. Noto que o pós-secular não é nem secular, nem especificamente religioso, mas um espaço intermediário. E certas formações pós-seculares podem ser defendidas como desejáveis, por exemplo, perspectivas não desqualificadoras da sacralidade dos outros (pessoas ou animais) e da terra, de modos que possam impedir a sua exploração e depredação, bem como a crença em que certos tipos de rituais são necessários para aspectos transicionais da vida, como nascimento e morte. Algumas religiões tradicionais contêm essas perspectivas ou crenças, notadamente religiões indígenas que veem a vida e certos lugares prediletos como sagrados.
A secularização é normalmente compreendida como o movimento do religioso para o secular, mas ela pode ter dimensões pós-seculares quando o fenômeno supostamente secular é tomado por sagrado ou de alguma forma exaltador ou até transcendente, por exemplo, a arte ou a natureza para muitos dos românticos. Aqui, o livro Natural Supernaturalism de M. H. Abrams é de interesse, assim como outros trabalhos que discuto em diversas publicações. A esse respeito, indico a leitura do ensaio “The Temporality of Rhetoric”, que é um capítulo de Soundings in Critical Theory. Num sentido mais amplo, também mencionaria “The Return of the Historically Repressed” em Representing the Holocaust: History, Theory, Trauma. Mas há outros momentos da minha obra que também vêm a propósito. Aliás, o próprio trauma pode ser sacralizado ou tornado sublime. Tendo a ver o sagrado e o sublime como elementos conectados no âmbito pós-secular, sendo o sagrado frequentemente equiparado ao religioso (de fato, o sagrado era o fulcro da religião para Durkheim e sua escola) e o sublime ao secular, ainda que raramente ele seja tomado simplesmente como secular, a não ser em tentativas céticas de deflacioná-lo. Tendo a ser crítico de sacralizações ou “sublimações” do trauma porque penso que elas tendem a validar e até valorizar a vitimização, incluindo a auto-vitimização. Em geral, tenho me empenhado numa crítica da vitimização em suas diversas formas, assim como da ideia de regeneração, quando não da redenção pela violência.
Seu trabalho também trata do “trans-histórico”, o que também parece desafiador.
Trans-histórico se refere ao que recorre ou se repete com variações ao longo do tempo, incluindo a transmissão transgeracional do trauma e da vitimização. O trans-histórico não precisa ser universal, e a asserção de que ele o é pelo menos em alguns casos ou formas (o “real” lacaniano, ou o pecado original, por exemplo) é discutível. É difícil argumentar, em qualquer sentido empírico, pela universalidade de algo na ausência de conhecimento universal, coisa que eu não pretendo possuir e nem penso ser desejável como um objetivo do pensamento. Indico explicitamente (especialmente em Compreender outros) que eu defenderia, no máximo, que o pecado original tem um status trans-histórico dentro de certas tradições, como a problemática e mal definida tradição ocidental onde ele (ou algum análogo seu) aparece em formas diversas ao longo do tempo. Num outro sentido, eu sugeriria que humanos têm mostrado uma tendência, ou até uma propensão, a serem transgressores e excessivos, o que algumas culturas reconhecem e podem tentar combater. Os Navajo, por exemplo, valorizam o equilíbrio e o “caminhar na beleza”, e os Hopi, assim como outros povos indígenas, têm conceitos comparáveis que são amiúde difíceis de traduzir. No cristianismo, existe também uma tentativa de limitar excessos e condenar transgressões, ainda que haja também uma contratendência a se ver o pecado como relacionado à redenção, na medida em que o grande pecador se torna um grande santo em relatos que se repetem em intermináveis histórias de pecadores que viram santos (Paulo e Agostinho, por exemplo). Eu observaria também algo que talvez apareça de modo obscuro em meus primeiros trabalhos. Acredito que o retorno do recalcado (assim como aquilo que é dissociado) não implica necessariamente que o reprimido se refira apenas a um tempo anterior. Isso pode ocorrer, mas o retorno também pode se referir ao que é reprimido no presente, mesmo quando aquilo que não se reconhece esteja à vista de todos, mas é vivido como “infamiliar”5, dissonante, ou rejeitado com relação à imagem que se gostaria de afirmar de si mesmo ou de um povo. De certas maneiras, isso poderia se aplicar ao racismo e à intolerância em Trump e em seus seguidores frequentemente fervorosos, que fazem referência a legados irresolutos neoconfederados da Guerra Civil e apontam para processos correntes frequentemente invisibilizados na natureza atual dos Estados Unidos, relacionados, por exemplo, ao extremismo de direita, ao autoritarismo e à intolerância. Também sou crítico de perspectivas sobre os nazistas ou sobre outros grupos ou formas de violência como regressões à barbárie ou à animalidade e à “brutalidade”. Penso que essas perspectivas são desinformadas sobre sociedades do passado e sobre animais. Normalmente, não são os animais, mas os humanos que são perversos e brutos. (O termo corrente “tribalismo” também é questionável como referência a um partidarismo sectário. Frequentemente as tribos reais não são “tribais” nesse sentido.) E tais visões degradantes muitas vezes são tentativas de conservar uma ideia demasiado simplificada da modernidade como o palco do progresso ou do avanço da justiça e da misericórdia (vide Charles Taylor em As fontes do self). Mas também penso que tentativas como, a de Zygmunt Bauman, de ver o nazismo como especificamente moderno são também dúbias, e elas amiúde vêm com omissões ou subestimações da dimensão mais “pós-secular” dos processos, como a busca por purificação e regeneração. A tecnologia moderna, ao lado da burocracia, a maquinaria da destruição, a banalidade do mal e assim por diante, podem em maneiras óbvias tornar certos excessos mais possíveis, mas ela não os explica adequadamente. Também procuro resistir a apresentar qualquer dada ideia ou argumento como explicação totalizante ou como necessária e suficiente na compreensão de fenômenos complexos como o Holocausto ou o colonialismo.
Como seu trabalho tem sido recebido?
Comentadores frequentemente identificaram duas fases na minha obra, com relações mútuas significativas. Até por volta de 1990, eu me concentrei em “repensar a história intelectual” na sua relação com a história cultural e social, enfatizando, de modo relacional e crítico, questões que eu pensava serem insuficientemente destacadas no campo, como análise textual cerrada e o problema da interação de textos (no sentido amplo de práticas de significação não restritas a peças escritas) com seus contextos de produção e recepção. Apesar de continuar atento a esses problemas, a partir de 1990, meu trabalho passou a se preocupar (e repercutir) cada vez mais com os estudos do trauma e de sua importância para processos sociais, culturais e ideológicos cruciais como genocídios, culpabilização expiatória [scapegoating] e violência (notadamente mas não exclusivamente em relação ao Holocausto e ao colonialismo). Também tentei manter no horizonte a questão de como diversos artefatos (escritos, testemunhos e outras práticas de significação) respondem a experiências traumáticas pessoais e coletivas. Além disso, dirigi minhas investigações aos problemas do pós-humanismo e do pós-secularismo, incluindo relações com outros animais e o papel de uma espiritualidade não-teocêntrica. Esses dois últimos problemas têm especial destaque no meu trabalho mais recente, incluindo o livro Compreender outros: povos, animais, passados, de 2018. O Holocausto se tornou uma preocupação proeminente depois que eu participei (em 1990) de uma conferência na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) organizada pelo conhecido pesquisador Saul Friedländer. Sua ideia era reunir pesquisadores destacados na área da história do Holocausto, assim como outros (como Carlo Ginzburg, Hayden White e eu) cujo trabalho ele considerava instigante. Seu objetivo era ver se diferentes ângulos de visão poderiam ser produzidos pela interação. Ele foi, penso eu, exitoso, como mostra o livro que ele editou e para o qual Ginzburg, White e eu, entre outros, contribuímos com ensaios, Probing The Limits of Representation.6
Eu notaria, ainda, que a revista Rethinking History (dez. 2004) publicou um ensaio que escrevi a convite dos editores (“Tropisms of Intellectual History”). Nele, eu reflito sobre meu trabalho até aquele momento e indico as direções em que eu tentaria avançar em trabalhos futuros. Meu ensaio é acompanhado de quatro outros que respondem à minha contribuição e oferecem avaliações de meu papel na profissão histórica (os autores são Ernst van Alphen, Carolyn Dean, Allan Megill e Michael Roth). Uma Sessão Presidencial do encontro de 2014 da American Historical Association foi dedicada ao meu trabalho. Ela foi moderada por Carolyn Dean e incluiu apresentações de Martin Jay, Gabrielle Spiegel, Judith Surkis, e uma minha. (As apresentações, assim como os ensaios publicados em Rethinking History, estão na minha página do Academia.edu). Faço uma menção especial a dois tratamentos de meu trabalho. Meus primeiros trabalhos são discutidos num ensaio circunstanciado e perspicaz de Edward Baring (hoje baseado em Princeton), “Intellectual History and Poststructuralism”, publicado em A companion to Intellectual History, organizado por Richard Whatmore e Brian Young (Hoboken, N.J., John Wiley & Sons, 2020). Meu trabalho sobre trauma é tratado com concisão e argúcia em Lucy Bond e Stef Craps no seu livro Trauma: The New Critical Idiom (Nova York, Routledge, 2020). Finalmente, noto que recebi o Clark Award por distinção em docência em Cornell e que sou membro da American Academy of Arts and Sciences.
Seu livro History and Criticism foi escrito e publicado na década de 1980, quando a historiografia europeia e estadunidense enfrentava diversos desafios nascidos de desenvolvimentos em outros campos, como o pós-estruturalismo francês e a virada linguística, que demandavam algum tipo de resposta da disciplina histórica. O que seu livro parece sugerir, contudo, é que as respostas da historiografia profissional foram superficiais, já que a disciplina foi, na sua visão, incapaz de repensar sua tarefa de modo crítico. Alguns temas e linhas de força do primeiro ensaio, “Retórica e História”7, reaparecem em partes posteriores do grupo: o questionamento da auto-evidência do que seu texto chama de “modelo documental” de conhecimento e a falta de um autoentendimento da própria prática pelo historiador. Além de tolher a pesquisa histórica, reduzindo-a a uma investigação estritamente empírica (esta, uma dimensão que seu argumento reconhece como fundamental, mas não exclusiva do ofício do historiador), esse modelo também restringe o discurso histórico a alguns imperativos relacionados, por sua vez, a objetivos que a disciplina, tal como compreendida em manuais conhecidos, toma como essenciais, como a produção de um senso de continuidade entre passado e presente, dada a necessidade de criar uma identificação do leitor com a história a partir desse tipo de nexo (e não de outros), uma identificação que nasce quando o historiador dota esse passado de totalidade, aparente objetividade e unidade absoluta. Se, de fato há, ao final desse capítulo inicial, uma espécie de programa teórico-metodológico para a historiografia, baseado numa crítica do estado do campo e num investimento renovado na retórica, é nos dois ensaios que se seguem, a saber, as apreciações críticas de Robert Darnton, Carl Schorske e, principalmente, Carlo Ginzburg8, que a disposição polêmica do livro se torna evidente, à medida que o texto elege praticantes particularmente virtuosos do tipo de noção de história ao qual se opõe para um minucioso escrutínio. Há, na sua leitura desses autores, uma crítica a uma falta de responsabilidade cognitiva, associada tanto ao tratamento do passado pelo pesquisador, quanto – e aqui chegamos ao ponto visado pela pergunta – à solicitação empática vicária que eles terminam impondo ao leitor, um efeito que parece apaziguar o que o seu livro denomina “a ansiedade da transferência”. Tendo em vista sua demanda por responsabilidade cognitiva, pedimos que fale um pouco mais detidamente sobre as questões éticas potencialmente preocupantes relacionadas com a identificação vicária com o passado, do ponto de vista do leitor. Ou, dito de outro modo, sobre como esse sentimento vicário restringe a imaginação histórica, excluindo o que é potencialmente produtivo no deslocamento que a transferência produz. Finalmente, gostaríamos de saber a que público se destinava a natureza assumidamente polêmica e crítica do seu livro – seria o leitor implícito de History and criticism um historiador profissional, ou uma pessoa comum de interesses variados?
Na sua resenha de meu livro mais recente, Compreender outros, Herman Paul faz um comentário com o qual concordo:
Uma ideia que tem permeado o trabalho de Dominick LaCapra desde o começo é que textos históricos lançam perguntas aos seus leitores. Eles põem pressupostos em questão, tornam estranho o familiar e desafiam hábitos de pensamento contemporâneos. Historiadores não podem, portanto, se contentar em “colocar textos no seu contexto”, como se textos fossem adequadamente compreendidos uma vez que as influências que atuam sobre eles tenham sido mapeadas. (American Historical Review, 2020, p. 1812).
Nesse comentário, está implícita a minha afirmação de uma relação dialógica com o passado, que envolve o que M. M. Bakhtin denomina “compreensão responsiva”. Essa afirmação não exclui a contextualização e a pesquisa empírica em geral como elementos cruciais do ofício do historiador, mas as concebe como componentes de uma abordagem mais abrangente e atada à implicação do historiador no processo da investigação. Essa implicação do self e do outro é o que eu relaciono à “transferência” no sentido que Freud dá ao termo. Ela significa que o questionador também está envolvido e em questão nas questões que lança ao passado. Estar em questão significa que o relato que se faz deve se empenhar em ser cognitivamente responsável e eticamente responsivo de uma maneira que combine empatia ou compaixão com um escrupuloso apuro para não distorcer o passado de modo a servir aos próprios interesses particulares, ou àqueles do grupo ao qual se pertence, ou a “teorias da conspiração” convenientes. Identificação não se confunde com empatia ou compaixão, ainda que um modo de identificação cuidadosamente controlado e autoquestionador possa ser uma corrente num campo de forças mais abrangente que envolva crítica e autocrítica. Identificação não qualificada rapidamente leva à projeção, a falar pela voz do outro, e num enfraquecimento da habilidade crítica de (a) identificar as limitações de uma abordagem, como uma que se pretenda puramente objetiva, ou (b) de procurar ver as limitações da própria abordagem que se adotou, ainda que este último caso seja mais evidente em respostas de outros ao nosso próprio trabalho, incluindo o modo como ele apresenta o trabalho de outros. Minha abordagem não é, penso eu, puramente polêmica, mas tem uma dimensão polêmica. Ela inclui o debate [argument], notadamente com outros historiadores ou intérpretes, em torno de como compreender questões e, de modo mais geral, como elaborar uma abordagem do passado que esteja atenta à própria implicação nas suas disputas e em debates ou processos contemporâneos que frequentemente repetem, de modo deslocado e às vezes disfarçado, debates do passado. Essas repetições e variações incluem a relação entre o secular e o religioso, as exigências de uma comunidade política democrática, por oposição ao ensimesmamento do autoritarismo, assim como as possibilidades e limitações de uma disciplina como a história, que não é fundada na fé nem um sucedâneo da religião. Devo acrescentar que vejo muita coisa de valor no trabalho de historiadores como Darnton, Schorske e Ginzburg. E repetiria algo que já disse anteriormente: uma análise crítica cuidadosa e não arrogante deve ser dada e recebida como um presente que, nos melhores casos, instiga e convida a pensar além, e até a repensar aquilo que se havia pensado antes. Acrescento que o público a que me dirijo é dividido, ou compartimentado, e se compõe de historiadores profissionais (ou, de modo mais geral, daqueles com formação especializada nas áreas que discuto) e também de um público mais geral daqueles que se interessam pelas questões de que trato, e que, eu espero, têm interesse no modo como eu as trato.
Poderia oferecer ao leitor uma lista dos seus livros?
Emile Durkheim: Sociologist and Philosopher (Cornell University Press, 1972; reeditado em 1985 pela University of Chicago Press; revisado e reeditado em 2001 por The Davies Group);
A Preface to Sartre (Cornell University Press, 1978);
Madame Bovary on Trial (Cornell University Press, 1982);
Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language (Cornell University Press, 1983);
History & Criticism (Cornell University Press, 1985);
History, Politics, and the Novel (Cornell University Press, 1987);
Soundings in Critical Theory (Cornell University Press, 1989);
Representing the Holocaust: History, Theory, Trauma (Cornell University Press, 1994);
History and Memory after Auschwitz (Cornell University Press, 1998);
History and Reading: Tocqueville, Foucault, French Studies (University of Toronto Press, 2000);
Writing History, Writing Trauma (Johns Hopkins University Press, 2001; reeditado com um novo prefácio em 2014);
History in Transit: Experience, Identity, Critical Theory (Cornell University Press, 2004);
History and Its Limits: Human, Animal, Violence (Cornell University Press, 2009);
History, Literature, Critical Theory (Cornell University Press, 2013);
Understanding Others: Peoples, Animals, Pasts (Cornell University Press, 2018; ed. bras. Autêntica, 2023).
Livros organizados
(Com S. L. Kaplan), Modern European Intellectual History: Reappraisals and New Perspectives (Cornell University Press, 1982);
The Bounds of Race: Perspectives on Hegemony and Resistance (Cornell University Press, 1991).
Notes
Author notes