ARTIGO
Received: 15 May 2023
Revised: 19 September 2023
Accepted: 23 September 2023
DOI: https://doi.org/10.1590/0104-87752024v40e24028
RESUMO: Em 1798, Portugal implantou as primeiras linhas postais regulares em seus domínios americanos, dando forma a uma rede organizada em torno de dois polos, Belém e Rio de Janeiro. O objetivo era criar as conexões mais rápidas possíveis para atender a administração e o comércio, em um movimento de territorialização e de ordenamento temporal do espaço, de maneira economicamente autossustentável e lucrativa. Para tanto, os governos locais adaptaram as determinações régias às suas realidades, em um processo analisado neste artigo com base em fontes de várias instituições, como Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e Arquivo Público do Estado de São Paulo. Entre as conclusões, observam-se: a) a baixa capilaridade da rede, voltada principalmente para o atendimento às sedes de capitania; b) a dificuldade de rentabilização dos percursos terrestres e, principalmente, dos fluviais; c) a falta de conexão entre as capitanias do Norte e as do Sudeste e Sul, apesar de Goiás e Mato Grosso se ligarem a ambos os blocos; d) o predomínio do Rio de Janeiro nas ligações com o Centro-Oeste, ainda que o Pará almejasse dominar o circuito.
Palavras chave: Reformas Postais, territorialização, cronotopo.
ABSTRACT: In 1798, Portugal implemented the first regular postal lines in its American domains, forming a network organized around two poles, Belém and Rio de Janeiro. The objective was to create the fastest possible connections, to serve the administration and commerce in a movement of territorialization and temporal ordering of space in an economically self-sustainable and profitable way. To this end, local governments adapted royal determinations to their realities, in a process analyzed in this article based on sources from various institutions, such as the Historical Overseas Archive, the National Archive of Rio de Janeiro, the National Library of Rio de Janeiro and Public Archives of the State of São Paulo. Among the conclusions, the following can be observed: a) the low capillarity of the network, focused mainly on serving the captaincy headquarters; b) the difficulty of making profitable the land routes and, mainly, the river routes; c) the lack of connection between the captaincies of the North and those of the Southeast and South, although Goiás and Mato Grosso are connected to both blocks; d) the predominance of Rio de Janeiro in connections with the Center-West, even though Pará aspired to dominate the circuit.
Keywords: Postal reforms, territorialization, chronotope.
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O estudo das dinâmicas logísticas e administrativas dos sistemas de comunicação escrita na América portuguesa ainda é bastante incipiente, apesar de, nos últimos anos, o assunto ter despertado o interesse de alguns historiadores, como Mayra Guapindaia (2019, 2022), Romulo Valle Salvino (2020, 2022), Nívia Pombo (2022) e Thomáz Fortunato (2022). Este artigo busca juntar-se a esse esforço, com foco nas reformas postais da passagem entre os séculos XVIII e XIX. Naquele momento, a Coroa ordenou a instalação das primeiras linhas postais regulares naqueles domínios, uma transformação significativa quando considerada à luz de pesquisas como as de Richard John (1995) e Pérola Goldfeder (2022),1 que têm contribuído para a percepção do papel desempenhado pelos Correios2 na consolidação dos novos estados nacionais americanos.
Os estudos sobre os circuitos postais naquele período, haja vista os seus objetivos específicos, não se preocuparam mais fortemente com o papel das variáveis econômico-financeiras nas reformas, com exceção da tese de Mayra Guapindaia (2019), que trata do assunto com base em informações contábeis, mas sem relacioná-las mais diretamente com algumas questões logísticas, notadamente no que se refere aos possíveis custos dos meios de transporte empregados pelos correios interiores, nem todos contemplados nesse tipo de documentação, e sem abordar os números relativos a São Paulo. Entre esses trabalhos, somente o de Fortunato (2022) voltou-se, com outra orientação metodológica, para a organização temporal do espaço, mas sem se debruçar sobre os possíveis custos das linhas postais. Desse modo, busca-se aqui, com a releitura das fontes e o auxílio de documentos não analisados anteriormente, evidenciar alguns aspectos da articulação entre os elementos topológicos, temporais e financeiros das redes postais então implantadas, de modo a contribuir para uma melhor compreensão dos processos decisórios envolvidos na criação do novo sistema.
Braudel (2016, p. 473-501) destacou que a corrida das cartas é uma luta contra o espaço. Ao propiciar a circulação de informações em grandes áreas geográficas, os sistemas comunicacionais são instrumentos necessários desses processos de transformação política, econômica e simbólica do espaço, chamados de territorialização (Raffestin, 1993, p. 143-144; Haesbart, 2013).
Cumpre lembrar, entretanto, que a corrida das cartas é também uma luta contra o tempo, de modo que as redes postais não podem ser caracterizadas apenas por seus aspectos puramente geográficos, mas também pelos temporais (Salvino, 2020, p. 81-90, 107-111); Venceslau, 2021, p. 21-25; Fortunato, 2022). Correios e prazos são inseparáveis. Como consequência das diferentes distâncias, das velocidades possíveis em cada trecho e das diversas frequências de trocas de informações entre as localidades, estabelecem-se variadas cronotopias, ou seja, modulações estruturantes no continuum espaço-temporal, com tessituras diferenciadas entre as várias regiões.3
Assim, para o estudo de redes postais, tanto quanto sua amplitude e topologia, é crucial caracterizar essas variáveis temporais, que não dependem apenas das restrições geográficas e tecnológicas, da vontade administrativa ou de considerações particulares sobre a importância geopolítica da comunicação, mas também da economicidade das soluções. No período aqui abordado, resoluções sobre os trajetos percorridos, os meios de transporte utilizados (por exemplo, cavaleiros ou mensageiros pedestres) e as frequências das ligações (semanais, mensais ou outras) refletiam-se nas velocidades de comunicação, mas também nos custos operacionais, de modo que a análise dos processos decisórios envolvidos na constituição dos sistemas então estabelecidos deve levar em conta, na medida do possível, tais fatores.
Tendo em vista esses princípios, na primeira parte do artigo, esboçaremos as linhas gerais do sistema logístico então implantado entre Portugal e seus domínios, de maneira a permitir a compreensão de como as redes postais constituídas no interior americano articulavam-se com as rotas transoceânicas. Em seguida, apresentaremos, resumidamente, a implantação dessas redes interiores, de modo a caracterizá-las e a mostrar as principais transformações pelas quais passaram até as vésperas da transmigração da família real para o Rio de Janeiro, um processo que buscava atender às principais necessidades de comunicação da forma menos onerosa possível, ainda que a custo da amplitude da cobertura geográfica do sistema e, às vezes, da rapidez das ligações.
OS CORREIOS MARÍTIMOS
Em setembro de 1796, D. Rodrigo de Sousa Coutinho assumiu a Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar com a missão de reformar os sistemas de comunicação escrita no Reino e nos demais domínios. Coutinho era um homem ilustrado, admirador de D. Luís da Cunha, do Marquês de Pombal e de Adam Smith, de quem, provavelmente, assimilou a proposição de que o serviço postal era uma fonte segura de receitas para o soberano. Interessava-lhe “a reunião e consolidação das vastas e distantes partes da monarquia” (Coutinho, 1993, p. 54), de modo a constituir um “poderoso império”, processo com o qual os Correios poderiam contribuir, ao estimular o comércio e integrar regiões distantes. Esses objetivos foram perseguidos por ele até 1803, quando foi afastado do governo por alguns anos, em meio às disputas entre os partidários de uma aproximação de Portugal com a França ou com a Inglaterra, com os quais se alinhava.4
Em setembro de 1796, em ofício circular enviado aos governadores das capitanias, Coutinho, depois de lembrar a importância da “facilidade e segurança das comunicações” para o desenvolvimento do comércio, pediu informações a respeito dos meios necessários para instalar os Correios e das tarifas a serem cobradas “para indenizar da despesa do estabelecimento e até formar um ramo de renda real nessa capitania”.5 As poucas respostas até agora encontradas, embora confirmassem a utilidade e até mesmo a necessidade do serviço, foram unânimes em apontar as dificuldades de custeio do empreendimento em um continente de grandes distâncias e população diminuta. Um parecer diferente quanto à capacidade de geração de receitas dos Correios constou apenas de um ofício enviado à Lisboa antes da consulta de Coutinho, no qual o vice-rei, Conde de Rezende, defendia, por iniciativa própria, que o estabelecimento do serviço poderia financiar empreendimentos como as obras da nova Sé do Rio de Janeiro.6
A resposta mais completa e circunstanciada veio de D. Francisco de Sousa Coutinho, irmão de D. Rodrigo e governador do Pará. Nela, apresentou uma proposta logística para os Correios, sobre a qual afirmou que, “se tratasse meramente da brevidade das comunicações, o plano proposto não seria por certo o mais vantajoso”, mas que nele deveria ser levado em conta “o presente estado das Colônias, cujas correspondências não julgo que cada uma per si possa pagar [o novo sistema] sem carestia tal que o inutilize”.7
Depois de vários atrasos, em 20 de janeiro de 1798, foi assinado o instrumento fundador do novo sistema postal – doravante, chamado aqui apenas de Alvará dos Correios. Em sua abertura, o documento invocava a economia que o serviço deveria trazer para a Real Fazenda e novamente reafirmava a utilidade dele para o comércio (DOCUMENTOS…, 2008, p. 409). Foi acompanhado de instruções manuscritas, dirigidas aos agentes dos Correios de Portugal e da América, aos comandantes dos navios e às Juntas da Fazenda, que ficaram responsáveis pelo gerenciamento do sistema na América.8
Esse conjunto normativo buscava regulamentar não só os aspectos operacionais, mas também os econômico-financeiros do serviço. Fixaram-se as tarifas para o transporte transatlântico, a serem pagas preferencialmente no destino, embora houvesse a possibilidade de ser na origem, desde que isso fosse consignado nos sobrescritos. Na América, as Juntas da Fazenda deveriam fixar valores complementares, de modo que se “perceba utilidade, e não dano de um tão útil estabelecimento”. O transporte das cartas naqueles domínios deveria “ser o mais breve e econômico que for possível”, e os empregos, criados com a “maior economia” (DOCUMENTOS…, 2008, p. 410-411), razões por que se faz importante a análise dos aspectos financeiros das linhas postais então criadas
Também com o intuito de evitar custos desnecessários, as instruções anexas estabeleciam que “para a condução das cartas no interior, as Juntas de Fazenda adotarão o método praticado com as ordens do Real Serviço”9 – e o mais comum, nesse caso, era o transporte das cartas por soldados, modalidade que continuaria largamente utilizada depois de implantado o sistema. Para evitar uma multiplicação desarrazoada dos gastos, as mesmas instruções complementares determinavam também que os projetos de expansão da rede deviam sempre começar com “pequenos ensaios” e que, “enquanto o produto das cartas não chega, as Câmaras podem licitamente ser convidadas para ajudar as primeiras despesas”.10
A conexão de Lisboa com os principais portos atlânticos se daria mediante o uso de paquetes,11 que sairiam bimestralmente de Lisboa, a partir de março de 1798. A fixação dessa periodicidade foi objeto de discussão desde o primeiro momento, com D. Francisco, por exemplo, a defender viagens mensais.12 Todavia, para isso, seria preciso dobrar a quantidade de recursos, o que deve ter enterrado a ideia. Os navios mercantes, obrigados doravante a levar gratuitamente as malas dos Correios e proibidos de transportar cartas que lhes fossem entregues por particulares, deveriam incrementar essa frequência.
Os paquetes da rota setentrional parariam em Açu (Rio Grande do Norte), Parnaíba (Piauí), Maranhão e Salinas (Pará), de onde voltariam para Portugal. De Açu, as cartas seriam levadas por terra para a Paraíba e Pernambuco; de Salinas, por terra e pelos rios, para Belém.13 Na rota meridional, ancorariam na Bahia (na ida e, sempre que possível, também na volta) e no Rio de Janeiro.
Em busca de receitas e como uma forma de estímulo ao comércio, os paquetes poderiam levar, além de correspondências, pequenas encomendas e produtos da terra, mediante o pagamento de um frete compatível com o do mercado. Com os mesmos objetivos, os governadores deveriam organizar, se possível, recovagens públicas entre as capitanias centrais e os portos, com “toda a segurança para a condução dos gêneros, e efeitos, e cujos fretes de transporte sejam estabelecidos de maneira, que façam conta à Fazenda Real, e sejam cômodos aos particulares” (DOCUMENTOS…, 2008, p. 411).14
A partir desses comandos gerais, deveria ser criado o serviço postal americano, processo que acompanharemos a seguir.
AS REDES POSTAIS MARÍTIMAS LUSAS NO ATLÂNTICO SUL
O sistema previsto pelo Alvará dos Correios foi implantado com modificações. Devido à precariedade do porto de Açu e à sua grande distância em relação aos principais mercados postais, durante o primeiro ano, as chegadas dos paquetes à porção setentrional da América aconteceram na Paraíba e, daí para a frente, em Pernambuco. Por outro lado, previam-se remessas apenas para a América e as ilhas atlânticas, mas, ainda em março de 1798, D. Rodrigo tomou providências para incluir na nova rede postal as possessões africanas e Goa, mediante o uso de navios mercantes e de guerra (Vieira, 1988, p. 200).
As viagens dos paquetes, que sempre partiam em duplas, um para cada circuito, eram informadas na Gazeta de Lisboa.15 Esses anúncios revelam constantes adiamentos e que a frequência bimestral jamais foi atingida. Os melhores resultados aconteceram em 1798 e 1800, com cinco saídas. Em 1801 e 1802, elas resumiram-se a três, até que, em 1803, houve uma única, com destino às capitanias do Norte.16
A partir desse momento até 1808, os paquetes não saíram mais, enquanto os “Avisos dos Correios”, no mesmo jornal, mostravam um número crescente de partidas de navios mercantes integrados ao sistema postal. Independentemente da persistência do contrabando de cartas em mãos de passageiros e tripulantes, a partir de 1801, praticamente todas as embarcações destinadas aos principais portos americanos transportavam oficialmente as malas dos Correios, de modo a garantir uma frequência de ligações superior à dos paquetes, praticamente sem custos para a Coroa. Assim, embora não se possa descartar que o afastamento de D. Rodrigo do governo em 1803 tenha contribuído para a descontinuidade dos giros dos navios exclusivos, ela provavelmente foi impulsionada por esses resultados, bem como pela redução das embarcações disponíveis para os Correios, devido a perdas em naufrágios ou nas mãos de corsários franceses.17
Com a interrupção dos paquetes, a configuração da rede postal entre o Reino e a América passava a ser a mesma da rede mercantil marítima. Não se tratava, contudo, de uma volta à situação anterior às reformas. Conforme previam as instruções anexas ao Alvará dos Correios, as estruturas criadas dos dois lados do Atlântico organizavam agora as trocas postais, com o envio das cartas em malas lacradas e controladas em guias de remessa, para serem enviadas tanto por navios mercantes quanto por aqueles da Coroa.
Entre junho de 1798 e início de 1799, além dos portos visitados pelos paquetes, foram também incluídos na rede Campos dos Goytacazes, Cabo Frio, Paraty, Ilha Grande (todos na capitania do Rio de Janeiro), Santos, Espírito Santo, Santa Catarina, Rio de São Francisco e Laguna (ambos em Santa Catarina).18 Mais tarde, São Paulo criou representações postais em Paranaguá e São Sebastião, que funcionaram, respectivamente, de 1800 a 1803 e de 1801 a 1802, ambas desativadas com a alegação de serem deficitárias.19
Tais estruturas tiveram portes variados. A maior foi a do Rio de Janeiro, que, além do administrador, tinha mais quatro cargos. Na Bahia, foram criados três postos; em Santos, dois. Na Paraíba, Pará, Pernambuco, Maranhão, Parnaíba e Santa Catarina, foram nomeados, de início, apenas os administradores, embora somente no primeiro caso possamos garantir que, pelo menos até 1806, foi mantida essa situação. Em Rio do São Francisco, Laguna, Paranaguá e São Sebastião, a atividade era acumulada por outros oficiais, sem proventos específicos, estruturas denominadas, no caso deste artigo, de representações para distingui-las das administrações locais, também chamadas na documentação de laboratórios, em que os oficiais eram geralmente remunerados. Tanto na Paraíba quanto em Santa Catarina, eles recebiam apenas uma comissão de 20% sobre as receitas obtidas. Entre os aqui listados, na Bahia e em Santos, inicialmente, eram pagos salários fixos, com montantes de 400$000 e 150$000 réis, respectivamente. A respeito das demais, não encontramos quaisquer informações.20
As mesmas fontes até agora arroladas mostram que o Rio de Janeiro era responsável pela conexão entre Portugal e os portos do Espírito Santo, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande de São Pedro, os quais recebiam navios vindos do Reino em menor frequência. Principalmente depois da interrupção dos paquetes, Pernambuco e Maranhão cumpriram o mesmo papel, o primeiro com relação às duas capitanias desmembradas de seu território em 1798 – Paraíba e Ceará – e o segundo com relação a Piauí.
Rio de Janeiro e Bahia eram os pontos de conexão entre Lisboa e Angola, onde o governador estabelecera uma administração postal e determinara que as malas de correspondências para o Reino seriam encaminhadas preferencialmente por aqueles portos brasileiros, posto que mantinham ligações mais amiudadas com Lisboa (Vieira, 1988, p. 200-208).
Como essas conexões tinham de se submeter aos humores do Atlântico e da navegação mercante, não havia como controlar os prazos nas ligações marítimas. Apesar disso, fora ocorrências excepcionais, elas foram a única opção de comunicação entre todas as localidades da costa Nordeste. Há registros de condução por terra, a partir da Paraíba, por um breve período, principalmente enquanto os paquetes não aportaram em Pernambuco, de modo que era necessário reencaminhar as malas entre as duas capitanias.21 Naquela porção do território americano também não se encontraram quaisquer indícios de terem sido criadas linhas postais para o interior no período aqui estudado.22 D. Fernando José de Portugal, governador da Bahia até 1801, não só defendeu que as comunicações entre Salvador e as vilas já estavam resolvidas pelas soluções tradicionais, com as trocas realizadas principalmente pela via marítima, mas também se mostrou contrário à criação das recovagens públicas e rejeitou o projeto de ligação com Goiás através da Comarca de Jacobina, com a justificativa de serem altos os custos e de pouco o comércio entre as localidades envolvidas.23
AS REDES FLUVIAIS E TERRESTRES ENTRE O NORTE, O LITORAL NOROESTE E O CENTRO-OESTE
O Alvará dos Correios determinava que as capitanias de Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul e São Paulo seriam ligadas ao Rio de Janeiro; e as de Rio Negro e Mato Grosso, ao Pará. Goiás, se fosse “mais cômodo”, poderia ser conectado também com o Reino por meio do Pará (DOCUMENTOS…, 2008, p. 410). Entre elas, apenas o Rio Grande de São Pedro era atendido por mar. Santa Catarina, Espírito Santo e Ceará – que estava sendo desmembrada de Pernambuco naquele momento – não foram mencionadas.
Algumas capitanias estabeleceram linhas postais pelo interior, com certa liberdade, mas sob vigilância do Erário Régio. No caso do Pará, além das conexões explicitamente determinadas pelo Alvará, D. Francisco de Sousa Coutinho propôs ligar Belém a São Luís. A rota, no caso, deveria ser fluvial até Ourém, com o uso de uma igarité (um tipo de canoa), com quatro remeiros e um mestre. Dali, a carga seguiria por terra até Turiaçu, de onde, sob responsabilidade dos Correios maranhenses, continuaria até São Luís. As saídas seriam quinzenais, e o percurso consumiria até trinta dias, embora pudesse ser feito em quatorze, em casos excepcionais.24 Não encontramos indícios de que o caminho em questão fosse usado, de fato, para o transporte regular de correspondências de particulares antes de 1810, mas militares o percorriam mesmo antes das reformas com essa finalidade e ainda servia ao trânsito de correios em 1833.25
No Maranhão e no Piauí, por sua vez, assim como nas capitanias do litoral Nordeste, não há notícias de linhas postais interiores que funcionassem com periodicidade fixa. Eram necessárias ligações entre o porto de Parnaíba e a capital piauiense, Oeiras, mas não há evidências de que fossem regulares. Naquela rota, assim como entre Oeiras e São Luís, existiram linhas de correios militares na década de 1770, mas provavelmente já tinham sido desativadas no período aqui em estudo (Salvino, 2022, p. 11-16).
De acordo com o planejado por D. Francisco, as ligações do Pará com o Rio Negro e o Mato Grosso seriam bimestrais. Um primeiro trecho, pelo Rio Amazonas, até a Barra do Rio Negro, ficaria sob responsabilidade paraense. Dali, a carga seria conduzida, através do Rio Madeira, por homens da capitania do Rio Negro, até o forte Príncipe da Beira, no atual estado de Rondônia. Um último lance, sob encargo do Mato Grosso, seguiria pelos rios Mamoré e Guaporé até Vila Bela. Nesse itinerário final, de acordo com Caetano Pinto de Miranda Montenegro, governador daquela capitania, as igarités deveriam viajar sempre em duplas, acompanhadas de soldados, devido aos riscos da navegação e de ataques indígenas. D. Francisco estimava que as viagens de ida e volta por todo esse percurso deveriam levar cerca de seis meses. Todavia, segundo Melo (2022, p. 170-171), embora fossem necessários pouco mais de dois meses entre Vila Bela e Belém, no sentido contrário, contra a correnteza dos rios, as travessias podiam exigir até seis ou sete meses. Tal estimativa aproxima-se mais daquela de Montenegro, para quem não poderia haver mais de duas ou três viagens anuais. De qualquer forma, para garantir a continuidade do fluxo, com base na previsão dos governadores envolvidos, seriam necessárias, no mínimo, quatorze igarités e 114 homens, com um custo de 4:980$000 réis anuais. Assim, ainda que defendesse a necessidade da rota por razões estratégicas, Montenegro conformava-se que seria deficitária, até por que a quantidade de cartas naquela direção era menor que em outras.26
Problemas semelhantes atingiam o trajeto para Goiás, pelos rios Araguaia e Tocantins. D. Francisco estimava que o giro total demandaria ali cerca de três meses, com um custo de 916$800 réis anuais para uma frequência bimestral de ligações.27 Todavia, de acordo com Doles (1973, p. 88), apenas na segunda metade do século XIX, com o uso de barcos a vapor em alguns trechos, “a viagem [de ida] seria reduzida […] passando de sete a três meses”. Se correta essa previsão, os gastos para manter a periodicidade almejada seriam quadruplicados.
Enquanto implantavam os Correios, os irmãos Coutinho também procuraram criar, com recursos da Coroa, sistemas de transporte entre o Pará e as duas capitanias centrais, pois acreditavam na sinergia entre ambas as atividades. Tendo como base um plano de D. Francisco, Lisboa determinou que, sob as ordens do governador paraense, Montenegro viabilizasse em sua capitania os recursos necessários. Entretanto, embora tenha se apressado para implantar a linha postal, Montenegro ponderou que a implantação na íntegra do sistema mercante teria de esperar, haja vista a falta de recursos e os riscos de guerra com os espanhóis na fronteira. Lembrou também que a receita calculada por D. Francisco implicava recambiar todo o comércio entre o Mato Grosso e o Rio de Janeiro para o Pará, o que julgava difícil não só porque os fretes para o Sudeste eram menores e as mercadorias vindas de lá mais baratas, mas porque os negociantes fluminenses conseguiam financiar as operações durante os longos tempos entre o envio dos bens e o seu pagamento. Assim, em um primeiro momento, optou-se por criar apenas um posto de apoio no caminho, na Cachoeira do Ribeirão, nas proximidades da atual cidade de Porto Velho.28 D. Francisco chegou a adquirir duas canoas para manter a navegação naquele circuito, mas os indícios são de que, “não obstante os esforços, a comunicação entre essas duas capitanias não parece ter tido resultado de imediato” (Guapindaia, 2019, p. 217-218).
D. Francisco chegou a providenciar também barcos para o transporte de gêneros até Goiás. Em 1803, entretanto, – depois da sua saída do governo do Pará, contemporânea ao afastamento de D. Rodrigo do Erário Régio –, o sistema foi interrompido (Guapindaia, 2019, p. 234), em um sinal de que, no mínimo, não havia consenso sobre seus resultados. O mesmo deve ter acontecido com a troca regular de correspondências naquele trecho, pois, ao descrever as linhas postais existentes em Goiás em 1804, a Junta da Fazenda daquela capitania não arrolou a ligação com o Pará entre elas – o que não quer dizer que o Araguaia não fosse mais percorrido para o trânsito de cartas, mas apenas que não persistiam envios periódicos como se planejara em um primeiro momento.29
D. Francisco previa o aproveitamento dessas mesmas vias fluviais para manter o serviço postal nos povoados do interior do Pará, com exceção daqueles de Joanes (Marajó) e Vigia, que não acreditava serem capazes de indenizar as despesas necessárias.30 Contudo, diferentemente do que acontece com as linhas terrestres no Sudeste e no Centro-Oeste, não encontramos vestígios de um funcionamento regular dessa rede de comunicação, de modo que é difícil assegurar até que ponto as proposições teriam realmente funcionado, inclusive antes da mudança de governo. Os balanços dos Correios paraenses encontrados não consignam quaisquer despesas que possam ser atribuídas às linhas fluviais.31 Elas podem ter sido lançadas em outra conta, referente às embarcações mercantis, mas isso seria mais um motivo para se acreditar que, se chegaram a funcionar, tais linhas em breve foram descontinuadas.
AS REDES POSTAIS ENTRE O SUDESTE, O SUL E O CENTRO-OESTE
Importante conexão marítima, o Rio de Janeiro estabeleceu também ligações rumo ao interior, para São Paulo e Minas Gerais, caminho para os territórios goiano e mato-grossense, além de ter criado um circuito de giro quinzenal para Campos dos Goytacazes, onde foram nomeados um administrador e um segundo oficial (Feydit, 2022, p. 342).
Embora a conexão com o Rio Grande de São Pedro, prevista explicitamente no Alvará dos Correios, fosse realizada por meio de navios mercantes e de guerra, em momentos de maior tensão na fronteira meridional, correios militares encarregaram-se da correspondência de governo, levando-a através das capitanias de São Paulo e Santa Catarina, por uma rota com trechos marítimos e terrestres.32 Teria havido a criação de administrações postais em Rio Pardo e Rio Grande, além de Porto Alegre (Guapindaia, 2019, p. 117), indício de que a rede postal ali ganhara uma razoável capilaridade, talvez em função do caráter estratégico daquela região fronteiriça, em contínua tensão com os castelhanos. Não se encontraram, contudo, maiores informações sobre como o sistema poderia ter funcionado ali naqueles primeiros anos.
As ligações entre o Rio de Janeiro e São Paulo iniciaram-se em agosto de 1798. Para viabilizá-las, além do laboratório de Santos, criou-se outro, na cidade de São Paulo, com três oficiais, cujos salários montavam inicialmente a 278$000 réis anuais. As cartas recebidas por via marítima eram levadas de Santos a São Paulo por dois escravizados a pé.33 A conexão terrestre com o Rio de Janeiro, por sua vez, acontecia pelo Caminho da Piedade. Ali, em 1799, foi construída uma casa para o repouso dos condutores em Lorena, onde se faziam as trocas de malas entre as capitanias.34 O transporte na parte fluminense era realizado por pedestres. O trecho paulista inicialmente contava com quatro soldados a cavalo, que se revezavam, acompanhados por moços chamados de “porta-malas”, mas, em 1799, esse aparato foi reduzido à metade.35 No segundo semestre de 1803, tendo em vista o recorrente prejuízo do serviço, as estruturas em São Paulo e Santos foram resumidas aos administradores, com vencimentos, respectivamente, de 100$000 e 80$000 réis.36 Na mesma ocasião, todos os cavaleiros foram substituídos por pedestres, enquanto a frequência das ligações entre as duas capitais, provavelmente semanal até então, tornou-se quinzenal.37
Além das representações em Paranaguá e São Sebastião, São Paulo estabeleceu outras nas vilas de Itu e Porto Feliz, as quais funcionaram, respectivamente, entre 1800 e 1801 e apenas em 1801.38 Nesses lugares, a atividade provavelmente era acumulada por outros oficiais, assim como a rota talvez fosse percorrida por militares ou escravizados, pois os balanços contábeis registram apenas receitas, sem consignação de despesas com salários ou comissões.39 De Porto Feliz, saíam as monções para Mato Grosso, onde o governador impusera aos monçoeiros a obrigação de levarem gratuitamente as malas postais, de acordo com a mesma lógica do correio marítimo.40 A supressão da representação no porto paulista, contudo, pode ter implicado o fim do procedimento, a menos que os mercadores ficassem também responsáveis pela condução das malas dali para São Paulo.
D. Rodrigo de Sousa Coutinho chegou a determinar a criação de recovagens periódicas para a condução de cartas e encomendas de São Paulo para Mato Grosso e Goiás.41 A ideia não se concretizou no primeiro caso, pois os governadores manifestaram-se contrariamente, devido aos custos e aos riscos envolvidos.42 Com relação a Goiás, não encontramos quaisquer manifestações, quer sobre recovagens, quer sobre uma eventual linha de correios para São Paulo.
Por outro lado, até 1807, a condução das malas do Rio de Janeiro até a fronteira com Minas Gerais foi realizada, pelo Caminho Novo, por dois soldados a cavalo, que se revezavam no percurso, enquanto do lado mineiro a formatação do sistema sofreu diversas mudanças, visando à diminuição dos custos daquela que foi a maior rede terrestre de comunicação montada na época.43 Nesses experimentos, as localidades atendidas foram mantidas, mas variaram as estruturas das administrações locais e os recursos empregados no transporte. O laboratório principal, conectado ao Rio de Janeiro, ficava na sede da capitania, Vila Rica, de onde se irradiavam linhas para as outras sedes de comarca (Sabará, São João del Rei e Vila do Príncipe), todas importantes entroncamentos da malha viária. De Sabará, partia uma linha para Paracatu, um ponto estratégico no caminho para Goiás, onde também foi instituída uma administração, responsável por entregar as malas de cartas para os condutores daquela capitania. Dada a grande extensão desse itinerário, criou-se um ponto intermediário no arraial de Bambuí, onde deveriam acontecer trocas de malas (TERMO…, 1901, p. 118-123). Todas as administrações mineiras contavam com dois oficiais, com remunerações escalonadas de acordo com a importância do lugar, resultando em um total de 2:150$000 réis anuais, valor vultoso em relação aos de outras capitanias.
De acordo com o planejado, o transporte em quase todos os ramais mineiros seria realizado por condutores contratados, responsáveis por prover animais e escravizados, resultando em uma despesa anual de 1:568$230 réis. Nos trechos entre Sabará e Paracatu, os mais longos, seriam usados soldados. Além disso, estipulou-se o pagamento de 48$000 réis anuais para o escrivão do registro de Matias Barbosa receber e entregar as malas naquele lugar (TERMO…, 1901, p. 118-123). Todavia, documentação posterior mostra que essa rede entrou em operação somente no início de 1799, já bastante modificada, uma evidência das dificuldades em organizá-la e de uma possível dificuldade de liberação dos soldados pelos seus comandantes. Houve incremento dos recursos na rota para o Rio de Janeiro e inversão entre condutores particulares e militares nas demais, com redução do emprego da mão de obra militar.44
Na metade do ano, a estrutura foi novamente modificada, talvez por ter se mostrado muito onerosa. Eliminaram-se os pagamentos para o escrivão de Matias Barbosa. A rota de Vila Rica ao Rio de Janeiro passou a ser executada por soldados a cavalo; para Bambuí, Paracatu e Vila do Príncipe foram alocados doze pedestres. Ainda assim, o ano foi fechado com um prejuízo de 2:281$965 réis, maior que a receita auferida (2:173$934 réis), um verdadeiro desastre financeiro, principalmente porque as despesas contabilizadas não contemplavam os gastos com soldados.45
Situação semelhante aconteceu em 1800. Ainda que as despesas tenham caído, foi necessário buscar 715$656 réis da Fazenda Real para fechar as contas.46 Assim, em 19 de junho de 1801, o Real Erário exigiu cortes mais severos. Ordenou que todos os condutores fossem substituídos por soldados pedestres, cuja quantidade foi fixada em trinta homens pela Junta da Fazenda local, para garantir o descanso deles e a cobertura de afastamentos por moléstias. As atividades realizadas nas administrações locais passaram, em Vila Rica, para o ajudante da contadoria e, nas cabeças de comarca, para meirinhos ou escrivães da intendência, com o acréscimo de valores aos seus vencimentos normais. Todos os postos exclusivos do serviço foram cortados de início, mas, no ano seguinte, depois de ponderações da Junta mineira de que não havia como acumular a atividade postal com outras, criaram-se cargos de escrivães, mantendo-se a administração dos laboratórios nas mãos dos oficiais anteriormente citados. O custo dessa estrutura, sem contar os gastos com os soldados envolvidos no transporte e incluídos aqueles com papéis e lacres, ficou em 787$600 réis anuais.47
Em 1807, os mineiros tentaram ainda utilizar escravizados na condução das malas, na rota entre Vila Rica e Matias Barbosa, mediante o pagamento de jornais aos fazendeiros da região, que seriam isentos também do fornecimento de cavalos para as paradas militares.48 Diante do desinteresse daqueles proprietários, cogitou-se o arrendamento do transporte naquele trecho, e entre São João del Rei e Barbacena, por 400$000 réis anuais, mas essa ideia também não foi avante, de modo que a atividade continuou a cargo de soldados.49
Em todas as rotas mineiras, as frequências de partidas dos condutores correspondiam ao tempo necessário para percorrê-las, resultando em prazos que variavam de quatro dias, entre Vila Rica e Sabará, até trinta dias, entre Sabará e Paracatu. A periodicidade entre Vila Rica e Rio de Janeiro era quinzenal, ainda que o vice-rei tivesse cogitado em ligações de frequência semanal, ideia abandonada provavelmente em função do custo (TERMO…, 1901, p. 120-122).
Em 1805, depois de reclamação do governador de Goiás, as malas passaram a ser entregues a cada dois meses pelos mineiros no registro dos Arrependidos, situado a alguns dias de jornada de Paracatu. Dali eram conduzidas por outros soldados até Vila Boa, capital de Goiás, de onde partia uma ligação bimestral para Cuiabá. Finalmente, condutores saídos mensalmente de Cuiabá e Vila Bela encontravam-se no meio do caminho, em Vila Maria do Paraguai (atual Cáceres, em Mato Grosso), onde se faziam as trocas das malas de cartas.50 Completava-se, assim, um longo percurso por terra, capaz de ligar o Rio de Janeiro à capital do Mato Grosso.
Não se acharam vestígios de outras rotas em Mato Grosso. Em Goiás, todavia, chegou a ser implantada, em 1799, uma estrutura bastante ambiciosa, com o uso de até vinte soldados pedestres para atender todos os povoados, com uma frequência não indicada nas fontes. As representações locais foram acumuladas, sem proventos adicionais, pelos coletores dos Direitos das Entradas. Todavia, o sistema foi descontinuado, no início de 1804, por decisão da Junta da Fazenda, com a justificativa de ser inútil para a população e de dar prejuízo aos cofres públicos.51 Depois disso, apenas no final de 1805, foi criada uma linha de correios bimestral, com o objetivo de levar ouro das minas do norte da capitania até Vila Boa, devido ao fechamento da Casa de Fundição antes existente no arraial de Cavalcante. Era conduzida por soldados, com itinerários diferentes no inverno e no verão, ambos com previsão de doze dias de viagem.52
RESULTADOS DAS REFORMAS ATÉ 1807
O mapa da Figura 1 representa os principais circuitos postais restantes em 1807, depois da interrupção das linhas dos interiores paulista e goiano. Tendo em vista a fragmentação das fontes, não há como asseverar que não houvesse outros, ou mesmo que alguns deles estivessem inoperantes, mas, dada a amplitude da documentação consultada, o mapa aqui apresentado deve aproximar-se bastante da realidade em suas linhas principais. Todas as rotas marítimas e fluviais tinham frequência irregular. Embora provavelmente as linhas entre o Pará e o Centro-Oeste não estivessem mais em funcionamento, ou sequer tivessem operado realmente como planejado de início, foram mantidas no mapa, haja vista a comparação, mais à frente, com a alternativa terrestre.

Observa-se que a rede postal marítima, baseada nas ligações comerciais, preservava uma divisão histórica do litoral brasileiro, fruto do regime de correntes marítimas e das calmarias que assolavam a porção mais setentrional da costa em boa parte do ano (Russell-Wood, 2016, p. 63-65). Isso pode explicar por que as Juntas da Fazenda de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, assim como o vice-rei do Brasil e o governador de Angola, acertaram entre si pormenores operacionais, sem que se tenham encontrado iniciativas semelhantes a incluir os dirigentes de Piauí, Maranhão e Pará.53 Essa cisão era reforçada pela topologia física das linhas interiores, organizadas em torno de dois nós principais, Belém e Rio de Janeiro.
Como resultado da escassez do tráfego de cartas, da preocupação com os custos e da efemeridade de parte das linhas de transporte criadas no primeiro momento, verifica-se uma baixa cobertura da malha urbana então existente pela rede postal. Entre 1802 e 1808, a percentagem das unidades locais dos Correios em relação ao total de vilas e cidades (cerca de 207) caiu de 17,62% para 13,19%, uma redução explicada na documentação pela necessidade de rentabilizar o negócio.54 É a mesma explicação que surge também nas fontes para a ausência dos Correios em importantes eixos econômicos, como entre Bahia e Minas Gerais ou entre São Paulo e Minas Gerais.
A Tabela 1 estampa os resultados financeiros naquelas capitanias em que encontramos pelo menos um balanço contábil das operações postais. As receitas de São Paulo englobam as de Santos e das representações locais fechadas até 1803; as de Minas Gerais, as de todas as administrações do interior. As variações nas despesas refletem também períodos em que determinados cargos ficaram desocupados, defasagens nas ativações das linhas, além das mudanças de estruturas já descritas. Os gastos com os paquetes referem-se a práticos para guiá-los nos portos e reparos nos navios. Nas despesas atribuídas aos laboratórios, incluem-se equipamentos, livros, lacres, malas e aluguéis, além dos salários. Naquelas de transporte, no caso de Minas Gerais, somaram-se as estimativas dos gastos com os militares encarregados da condução das malas, embora apenas em São Paulo tenham sido contemplados alguns desses valores nos balanços dos Correios emitidos na época.

Bahia, Pernambuco e Paraíba, capitanias sem entregas no interior, cujos dados não se encontram detalhados na Tabela 1, desde cedo registraram lucros, principalmente depois que cessaram os paquetes, quando os dispêndios locais ficaram restritos ao pagamento do pessoal e à compra de insumos, como lacres e malas.56 Nos balanços do Pará, as informações de transporte aparecem como “correio de terra”. Tendo em vista seu baixo valor, provavelmente referem-se à ligação entre o porto de Salinas e Belém, ou seja, não estão contempladas as linhas fluviais de interiorização, um provável sinal de que talvez não tenham chegado a funcionar no período enfocado, com a troca de cartas entre Belém e as capitanias interiores a depender das irregulares viagens de comércio.
Mesmo em Minas Gerais e São Paulo, administrações oneradas pelos custos de linhas postais terrestres, inferiores àqueles da navegação pelo Madeira e pelo Araguaia, foi necessário reduzir os efetivos das unidades locais e os respectivos salários, bem como atribuir o transporte a soldados, majoritariamente pedestres. Os esforços para contenção de gastos em ambas as capitanias, já aqui descritos, importaram uma redução deles, mas sem que se pudessem gerar, de forma sustentada, as rendas inicialmente esperadas pela Coroa como já observado por Guapindaia (2019).
A Tabela 2, por sua vez, traz estimativas dos custos de transporte e alguns indicadores relativos à circulação da informação entre os principais nós do sistema na última configuração operacional observada antes de 1807. Devido às variações e às lacunas nas fontes, utilizamos em algumas rotas tanto os menores quanto os maiores tempos de percurso documentados, enquanto, em outras, estimamos esses valores com base nas velocidades verificadas nas demais. Nos casos em que dispúnhamos de uma única informação, ela foi considerada nas colunas de menor e de maior valor. As periodicidades dos trechos marítimos foram calculadas com base nos dados de chegada dos navios no porto de Lisboa entre os anos de 1805 e 1807 (Frutuoso, Guinote, Lopes, 2001, p. 543-580), tendo sido desprezados os valores extremos de acordo com critérios estatísticos.

O resultado é um quadro que busca retratar o que foi planejado na época, sem contemplar variáveis como atrasos nas linhas postais de interiorização e retenções indevidas de cargas nos pontos de conexão. As despesas de transporte, quando não explicitamente indicadas nos balanços contábeis, foram calculadas com base nos recursos necessários e em previsões de custo indicadas nas fontes disponíveis, a contemplar também os trechos sob reponsabilidade de Mato Grosso e Goiás, capitanias não incluídas na Tabela 1 por não termos encontrado nenhum documento contábil delas.
Sob a rubrica de “Defasagem informacional”, indicamos as diferenças temporais planejadas entre o envio e a recepção das informações em cada itinerário, sendo que o menor e o maior valor referem-se, respectivamente, à informação mais recente que poderia vir em uma remessa e à mais antiga que só poderia vir nela, e não em uma anterior, correspondentes, no primeiro caso, ao tempo de percurso e, no segundo, à combinação desse tempo com o período (intervalo) entre as ligações. No caso de Minas Gerais, a periodicidade registrada foi aquela anterior a 1807, haja vista que não sabemos com certeza o momento da efetiva implantação das alterações da linha postal determinadas naquele ano.57
O Centro-Oeste poderia ser uma via de ligação entre os dois blocos em que se dividia a rede postal, já que conectado a ambos. Todavia, a Tabela 2 demonstra que o envio mais rápido e barato de uma carta entre o Pará e o Rio de Janeiro passava por Lisboa, para onde continuavam a confluir as principais linhas de comunicação. Mostra também que, se consideradas as previsões mais otimistas de D. Francisco, as comunicações de Mato Grosso e Goiás para Lisboa seriam mais céleres por meio de Belém, porém a realidade se tornaria outra se consideradas as informações disponíveis em outras fontes. Para essas conexões, em termos de custos, o Rio de Janeiro levava vantagem em relação à via paraense, de modo que a solução mais óbvia parecia ser orientar o tráfego regular para aquela cidade – para onde corriam também os principais fluxos de negócios – e deixar as conexões fluviais via Belém como alternativas a serem acionadas quando necessário o envio de mensagens urgentes à Lisboa entre as partidas normais das linhas postais terrestres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fora as conexões com as sedes das capitanias, explicitamente determinadas pelo Alvará dos Correios, a preocupação com os custos resultou no estabelecimento de poucas ligações interiores, em um processo de territorialização ainda tímido. Pela mesma razão, as frequências das ligações regulares permaneceram bastante reduzidas, em um quadro complicado pelas grandes distâncias envolvidas e pela precariedade dos caminhos, a determinar uma baixa velocidade da circulação de informações, mesmo nos casos das localidades diretamente conectadas. Desse modo, tanto a topologia quanto a organização cronotópica da rede foram diretamente afetadas pela busca de um equilíbrio entre os aspectos de brevidade e economia assentados pelo Alvará, resultando em um sistema com marcadas diferenças nos prazos praticados entre as várias regiões.
Apesar de ainda orientadas para Lisboa, as novas linhas postais contribuíram com uma geopolítica de informações em que, antes mesmo da transferência da família real, o Rio de Janeiro tinha reforçado seu papel estratégico, pois, além das ligações marítimas com as regiões Sul e Nordeste e daquelas terrestres com Minas Gerais, São Paulo e Goiás, previstas pelo Alvará dos Correios, estava conectado também com Cuiabá e Vila Bela por uma solução de mais baixo custo do que a do Pará.
Ainda que mais próximas da sede imperial, as capitanias do litoral Noroeste e da região amazônica permaneciam desconectadas de grande parte da América lusa. Se as ligações fluviais dessa região com o Centro-Oeste ganhavam, cada vez mais, importância como um instrumento para fortalecer a presença portuguesa diante da cobiça castelhana, continuariam a ter uma baixa viabilidade técnica e econômica durante muito tempo. No final do século XIX, a ainda incerta navegação comercial do Araguaia e do Tocantins acabou praticamente interrompida e seria retomada de forma mais regular apenas no período republicano (Doles, 1973, p. 138). Por outro lado, as linhas criadas entre as capitanias do Centro-Oeste e o Rio de Janeiro através de Minas Gerais forneceriam as bases de parte significativa do sistema postal em operação até o início do Império, ainda que com ajustes de percurso.
A transferência da Corte para o Brasil em 1808 aumentou o afastamento geográfico de Belém do centro de poder, tornando premente a ligação daquela cidade com o Rio de Janeiro. Naquele momento, a busca de uma conexão entre ambas por um caminho flúvio-terrestre através de Minas Gerais, Bahia e Goiás aumentaria a importância das linhas postais mineiras, mas esses são desenvolvimentos que ultrapassam os objetivos deste artigo.58
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